sábado, 31 de agosto de 2024

COR IGUAL, TONS DIFERENTES

 

Carga pesada - Arquivo JRS

  

     É noite, poucos carros rodam no espaço mais perto, mas estão aos milhares mundo afora. Acordo. Pelo barulho sei que um caminhão segue seu destino com pesada carga. Faz-me lembrar de uma recente visão numa subida de serra: numa dessas peculiares cargas, acondicionada num tanque especial sobre forte chassi, recorreu-se de uma obra de arte religiosa que servia para disfarçar a aparência da máquina e revelar a devoção do condutor (ou do dono da empresa de transportes). Eram duas imagens sobrepostas: a Virgem Maria e Jesus. Achei bonito o trabalho, tive tempo para admirar porque não era possível a ultrapassagem naquele trecho da estrada.

  Tendo à minha frente aquela pintura, até me esqueci da feiúra da carga. Bem podia ser um produto químico perigoso, inflamável. Foi quando comecei esta reflexão acerca da existência de doze homens (Simão Pedro, Tiago, filho de Zebedeu, João, André, Filipe, Bartolomeu, Tomé, Mateus, Tiago, filho de Alfeu, Judas Tadeu, Simão Cananeu e Judas Iscariotes) e do nascimento do cristianismo, do catolicismo. Imaginei a Igreja Católica começando  a sua história e inspirando obras de artes como aquela retratada na traseira do caminhão.

    Nessa igreja, derivação do judaísmo, surgiram as divisões e cismas, pequenas seitas se desprenderam de seu tronco, se constituíram em novas doutrinas, novas orientações religiosas. Igrejas aos milhares se formaram da Igreja Católica. Era inevitável. Afinal, entre os doze nomes, seguidores de Jesus, havia um discordante, que não foi santificado pela instituição.

   Igrejas aos milhares...nomes diversos, estranhos. Penso na dificuldade de escolher um nome do agrado, encontrar uma denominação que ainda não exista. De uns tempos para cá tenho elencado nomes de igrejas: Portas Amarelas, Semeando Fogo Entre As Nações, INOVI (Igreja Nova Vida), Sarça Ardente, Bola de Neve, Betesdá, da Cidade, Leão de Judá etc. Uma última, de acordo com o “Tio Chico” da Pedreira Baixa, ostenta o expressivo nome: Sob Nova Direção. Interessante, né? Quer mais? Dá uma volta por aí, sobretudo nos bairros pobres, para ver outros nomes que nomeiam espaços de oração. E pensar que, na metade do século passado, eu apenas via em Ubatuba, além da tradicional católica, a Presbiteriana, a Assembleia de Deus e a Congregação Cristã do Brasil. Me parece que Jesus disse  algo assim: “Nenhum reino dividido entre si mesmo subsistirá”. Os poderosos sabem que é preciso dividir para dominar!


   Em tempos de novidades, de disputa por informações e clientes, eu proponho um nome para quem for criar novíssimo ramo desse tronco alimentado pelos apóstolos: Igreja da Publicidade.

 Em tempo: "Tio Chico", deixou um comentário: "Pelo número de pastores candidatos para as eleições que se aproximam, acho que o faturamento tá minguando".


domingo, 25 de agosto de 2024

A CORRIDA CUSTA....


Riquezas na mata - Arquivo JRS


   Meu saudoso tio Nelson, na maior parte da vida, foi motorista de praça, taxista. Começou ali, na Praça Nóbrega, onde é atualmente a sede da Fundart (ex-Fórum, ex-teatro), bem defronte. Ainda hoje existe ali o ponto de táxi que marcou o início da vida dele nessa profissão. Na metade da década de 1970, seus principais contratantes às corridas eram funcionários da empresa que abria a estrada (BR 101 - trecho Ubatuba-Paraty).

    Por um breve período, no início da profissão, tio Nelson morava com a gente, no Perequê-mirim, pois a praia da Fortaleza, sua comunidade originária, era longe, com acesso horrível. Assim que chegava de mais um dia de trabalho, ele sempre pedia para dar uma limpeza na kombi. Era quando eu aproveitava para ler os jornais deixados nos assentos. Aprendi muito, me alfabetizei na política mundial e nacional através das matérias jornalísticas. Mesmo controlado pela censura vigente, os textos citavam os movimentos que se opunham aos governos militares, principalmente as articulações dos estudantes, dos povos das periferias, das pastorais sociais e dos operários do ABC paulista com suas greves por melhores condições de vida

  De vez em quando, no tempo em que eu já estava frequentando o ginásio, me detinha junto dele e dos outros companheiros de profissão (Ireno, Boy, Freitas, Renatinho, Moura, K. Okase,  Espigão...) apenas para escutar as novidades. Conversavam de tudo. Ah! De quantas fofocas eu fiquei sabendo naquelas prosas dos taxistas! “Acho que nem em barbearia corre tanta fofoca assim”, gostava de repetir o titio. As interrupções importantes era uma só, quando chegava alguém perguntando: “Quanto custa a corrida até tal lugar?”.

     Eu achava engraçado o termo “corrida”. Anos, décadas se passaram. Meu tio e quase todos os companheiros dele daquela época já se foram. De repente, um escritor português me aclara o dito termo: “Ainda se usa hoje essa linguagem de cocheiro e sota”. Pois é! Faz tempo que se foram das cidades cavalos, cocheiros, charretes, sota, etc., mas a palavra “corrida” ainda vigora, convive com taxímetros, gps de última geração, câmeras e por aí vai. Mesmo existindo um visor mostrando o preço do serviço, o passageiro ainda pergunta: “Quanto custou a corrida?”


domingo, 18 de agosto de 2024

TIO MANECO

Vem sol - Arquivo Clóvis 


   Tio Maneco Armiro, da praia da Fortaleza, era, conforme diziam, “aceso, assanhado”. Dele, do seu jeito muito peculiar, eu me lembro muito bem desde a minha tenra meninice. Era casado com tia Aninha.

    Tio Maneco e tia Aninha eram os cuidadores da capela São João Batista, bem defronte ao mar. Cansei de ver os dois nas tardes tranquilas cuidando do local com toda dedicação: varrendo, tirando pó, lavando, carpindo, podando, plantando flores, pintando etc. Eu, criança de tudo, pedia-lhes as bençãos, me detinha um pouco por ali, mas logo seguia meu caminho em busca de brincadeiras e de artes a fazer. A praia era logo ali,  quinze metros depois.

    Não sei se me entendem aqueles que estão longe dessas coisas antigas, desse mar, desses lugares tranquilos que um dia foram nossas praias e nossas comunidades caiçaras por toda a extensão de Ubatuba. Afinal, muita gente veio depois disso tudo. Podem até dar nomes da nossa gente a logradouros diversos, mas desconfio que pouca gente saiba de quem se trata, de como cumpriram papeis importantes na sociedade de seu tempo, como viveram como trabalhadores e como festeiros que queriam um mundo melhor.

  "Aceso e assanhado” combinava com o tio Maneco. Eu não me esqueço dele me respondendo: “Eu durmo com o pilão, meu filho!”. O contexto? Na época, a tia Aninha precisou ser internada devido a um tombo na descida da casa de farinha. Eu, então, quis saber como ele estava se virando sozinho, sobretudo à noite, quando tinha de ir para a cama sem a companhia da esposa, sem o seu calor aconchegante. Ri muito com isso, com a resposta dele. Imaginei o titio abraçado ao pilão.  Deixei a moradia deles rindo sozinho. “Eu posso com isso?”.

   Termino esta crônica com um poema do mano Mingo:


Descendo a estrada

que leva à capela

de São João Batista

lá vai Tia Aninha

levando um buquê de flores,

justamente para pôr no altar

do criador de todas as flores.


sábado, 10 de agosto de 2024

A DEFESA DA PAZ


Flor no chão  - Arquivo JRS

  Ao ler uma crônica de José Saramago, me transportei aos jogos olímpicos que estão acontecendo na França. Nos estádios, piscinas, ringues, campos e por aí vai, estão disputando resultados, buscando medalhas para si e seus países. Diz a História que desde os primórdios, na Grécia Antiga, até as guerras eram temporariamente suspensas para que os povos, as pessoas se confraternizassem nos esportes. Isto continua ocorrendo? É assim ainda hoje? Não! Com jogos ou sem jogos muitas guerras e golpes contra a soberania de povos seguem seus cursos no mundo, sob patrocínio de alguns países ricos que almejam se enriquecer ainda mais. Não importa se isto se dá com a miséria e morte alheia. Para isso essas nações vendem armamentos, emprestam somas altíssimas a juros, acorrentam povos a dívidas eternas. Não deixarão de cobrar.

   Neste  momento de atletas subindo ao pódio em terras francesas, muitas guerras continuam levando povos ao extermínio. Com jogos olímpicos ou sem eles não há trégua aos genocídios planejados/motivados pela ganância. Neste momento, no Brasil, indígenas estão sendo atacados no Mato Grosso, no Paraná e em outras regiões. Querem ocupar o chão que lhes pertencem antes mesmo da existência da nação brasileira. Neste momento, no Brasil de tantas medalhas olímpicas, fazendeiros estão praticando crimes e sendo aplaudidos por muitos. Vão cercando e matando, reproduzindo "Faixas de Gaza" pelo território nacional. Na certa ainda receberão medalhas! É isto: não há trégua olímpica. Vai se matando...Vai se morrendo... Uma questão irônica: matar o último dos povos originários resultará em medalha de ouro? Também resta refletir sobre quem lucra mais com essa lei de armas e munições para todos (incentivada por um líder inominável sob patrocínio de poderosos industriais, banqueiros etc.). Quem perde sempre nós já sabemos!

   Quero finalizar com a mesma utopia do fantástico escritor português: “A paz é possível. A sabedoria do homem há de ser uma sabedoria de paz, não de guerra”. Porém, a realidade ainda é esta: enquanto os estádios vibram com os esforços dos atletas, as iniciativas criminosas, repletas de injustiças, ocupam pensamentos e ações, inclusive entre a minha gente brasileira, todos nós que somos o resultado do caldo cultural dos europeus que avançaram em outras terras buscando riquezas, dos indígenas de Pindorama e dos  filhos da Mãe África.


sexta-feira, 2 de agosto de 2024

BOSQUE DA RUA

 

Década de 1970 - Prefeito Basílio Cavalheiro hasteia bandeira - Arquivo Ubatuba


   Eu estava podando as plantas da calçada, mas o trabalho não rende porque sempre tem alguém parando para uma prosa. Acho é pouco  e quero é mais! Tem quem se enverede em coisas de religião, outros contam da saúde, do trabalho que está fazendo depois de um tempo sem emprego etc.

   Renan é vizinho de algumas ruas depois. Ontem ele parou para comentar das terras que a finada mãe tinha: “Sabe aquela área ali no Mato Dentro? Era dos meus parentes. Tio Zé Raié tinha bananal ali. Tudo aquilo, onde tá cheio de casas e de comércio agora, era dele. Depois vendeu para Fulano, que vendeu para Sicrano, que mais tarde vendeu para Beltrano. Este pagou com drogas que trazia de longe. Sicrano se acabou no vício. Quem comprou dele agora tá rico, não precisa mais se preocupar nesta vida com dinheiro”. Quando ele acabou de explicar tudo, perguntei: “Então quer dizer que o crime compensa?”.  Ele parou, ajeitou os óculos e respondeu: “É, compensa. Sabendo fazer... compensa! Peguei esse exemplo vivido num fim de semana para refletir sobre ideologia com alguns adolescentes. Afinal, acredito eu que, se a pessoa estudar a sério, consegue refletir melhor e perceber as ideologias no seu caminhar, escolher o que compensa ou dizer “não é por aí o caminho”.

    Ideologia é um modo de justificar as palavras e atitudes  que norteiam a nossa vida: para alguns é a política nessa ou naquela direção, para outros é a religião com sua doutrina que tem a palavra final. Na pandemia da covid, quantas pessoas deixaram as orientações científicas de lado e se deram mal? Uns seguiram as falas descabidas do chefe da nação, outros deram ouvidos a seus líderes religiosos...Diziam que era tudo para salvar a pátria, as cores da nossa bandeira. Eu tenho a certeza de que se não fosse a vacina, outros milhares teriam nos deixado. O que faz as pessoas abraçarem ideias absurdas, serem comparados a rebanhos que obedecem cegamente essa ou aquela linha de pensamento?  Tem gente que passa olhando o meu trabalho com as plantas, diz que melhor seria cortá-las e cimentar tudo.  De onde vêm tais convicções? Ainda bem que são minoria! É disso que se trata ao refletir acerca de ideologia: de como chegamos às escolhas desse ou daquele caminho!

   As minhas escolhas (cultura popular, preservação do meio ambiente, políticas sociais etc.) me trazem satisfação. Exemplo: Notei há muito tempo, dentre muitos exemplos, que a Dona Maria, moradora antiga no bairro, faz questão de passar bem devagar na nossa calçada, como se estivesse contemplando. Logo depois da prosa com o Renan, ela estava retornando do mercadinho. Parou perto de mim e fez este comentário: “Eu chamo está calçada de Bosque da Rua. Adoro esse frescor, essas plantas. O senhor está de parabéns”. Tem coisa melhor do que um elogio-agradecimento pelo espaço que cultivamos? Tem coisa melhor do que aproveitar a folga para cuidar das nossas plantas e prosear com as pessoas?

    Eu acho é pouco  e quero é mais!