sábado, 5 de março de 2022

DIZERES DE UMA IMAGEM

Cruzeiro da Fortaleza - segunda metade da década de 1960 (Arquivo Ana Fernandes)


      Passeando pelo blog Ubatubense, do estimado Silvio Fonseca, me detive na imagem acima. Trata-se de um grupo no cruzeiro da capela São João Batista, na praia da Fortaleza. Aninha, menina criada na Prainha do Padre, naquele época era aluna das madres, da A.L.A (Assistência ao Litoral de Anchieta), cujas edificações, da década de 1950, permanecem em uso até os dias atuais. Hoje funciona a Secretaria da Educação e a Escola Olga Gil. Ou seja, a Congregação das Cônegas de Santo Agostinho se foi, mas seus alicerces ainda sustentam muitas ações em prol dos moradores de Ubatuba, da nossa cidade.
  
   Na fotografia a Ana está com lenço branco na cabeça. O homem de camisa branca, de manga comprida, é um franciscano conventual por nome de Frei Francisco. Creio que ele seja o único estranho à cultura caiçara. No lado oposto ao frei, os mais próximos do mar estão tio Tonico e  seo Antônio, o "Pernambuco" (de camisa escura e calça preta).

  Quando eu era criança, assim que comecei a entender sobre a Geografia, eu me perguntava acerca do "Pernambuco", de como ele, de tão longe, veio constituir família naquela nossa praia distante, na Fortaleza, com a Francisca, a Chica, filha da tia Maria da Barra, a tia Iaiá. Um dia, ao perguntar isso à mamãe, escutei a explicação: "Aconteceu de a Chica ir trabalhar em São Paulo, naquela cidade grande. Lá ela conheceu o Antônio. Depois que ela resolveu voltar para a nossa terra, ele veio junto, se casaram, tiveram os filhos e filhas e aqui ficaram. Serviço nunca faltou para ele que trabalha de pedreiro, que constrói casas. Ela também, até hoje, continua trabalhando para fora, fazendo faxina para gente rica, desses turistas que estão com casas por aí".

   Mais tarde eu fiquei sabendo que não foi só a Chica que fez isso (de sair do litoral e ir trabalhar em São Paulo). Mas como elas tiveram essa coragem de deixar um lugar isolado e se estabelecer na capital paulista? "Não tiveram", me garantiu a querida Fátima de Souza. "Elas foram levadas por gente rica para serem criadas deles, como muitos trabalhadores desse grande Brasil que ainda vivem em situações análogas à escravidão. Minha mãe e minhas tias também passaram por isso. Algumas dessas mocinhas levadas de Ubatuba nunca mais voltaram". Pois é! Quem diria! Eu creio que junto ao desejo de ter uma trabalhadora com pouco custo, uma criada, também havia uma espécie de assistencialismo nessas famílias ricas. Nunca ouvi falar que alguma dessas  caiçaras tiveram oportunidades de estudar e seguir outro rumo que não fosse os serviços domésticos. Ou seja, se aproveitaram delas. As que eu conheci voltaram apenas mais idosas e desgastadas pela rotina na cidade grande. A A.L.A. foi a primeira instituição voltada à formação escolar e profissional para as filhas deste chão caiçara. Tenho amigas, primas e tias que não precisaram ser levadas pelos ricos e serem empregadas domésticas porque puderam estudar com as madres agostinianas. No caso da família da Aninha foi o inverso, mas isso é história para outra ocasião.

3 comentários:

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  2. Acabei de ler Cartas a uma negra, que Françoise Ega escreve para Carolina Maria de Jesus. Nesse romance a autora, que é martinicana, mostra a exploração por que passam as antilhanas levadas para a França para trabalhar como domésticas. Guardadas as proporções, o drama da Chica e de outras caiçaras pode ser compreendido em comparação ao que viviam as personagens do referido livro.

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  3. Legal, Jorge. Vou ler. Imagine o quanto de situações semelhantes, de exploração, etc. se multiplicam por este mundo afora. E elas passam muitas vezes sem serem registradas. Temos, no caso de Ubatuba, uma veia a ser explorada por pesquisadores sociais.

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