Bica da Bidu: pare e beba escutando a memória caiçara. |
Quando
criança, eu não era de muita conversa. Acho que foi porque eu comecei a falar tardiamente,
por volta dos quatro anos de idade. Porém, eu tinha a vontade de andar bem
ativada. A mamãe me chamava de andejo, batedor de perna, vento noroeste (porque
passava rapidamente em todo lugar) etc. Tendo essas marcas registradas eu
escutava muitas histórias e conhecia muitos lugares.
A
casa da dona Maria Bidu era um dos pontos mais distantes nas minhas andanças de
criança. Eu andava sempre por ali porque brincava com o seu neto Anginho. De
vez em quando éramos chamados para tomar café com biju. Naquele tempo o bolo
achatado que provinha da goma da mandioca era o nosso pão.
A
gente sentava em mochos (pequenos e baixinhos bancos de madeira), em pedras ou
em tocos que sempre tinha por perto, se grudava numa caneca de ágata cheia de
café cheiroso e ficava roendo a parte que nos cabia. Nessa hora, aproveitando
que os meninos tinham “assentado o rabo”, a vó de Anginho contava coisas que
sabia.
Foi
numa dessas ocasiões de merenda que, olhando para o lado da sua praia de origem
(Caçandoca), ela falou de algumas festas antigas que aconteciam por perto de
casa. Também frisou que todos daquele tempo gostavam de festar, inclusive em outros
lugares, mesmo que não fosse perto de onde moravam. Um exemplo: quando ia ter
festa na Praia Grande do Bonete, bem distante da Caçandoca, o sinal era feito
por fumaça um dia antes. Depois de confirmado o evento, o pessoal do lugar se
ajuntava e saía num grande grupo disposto a se divertir. Imagine uma boa
quantidade de gente se deslocando quilômetros e quilômetros a pé somente pela busca do
prazer. Eles levavam ao menos um tambor. Iam cantando e dançando pelo lagamar e
pelos caminhos de servidão. De longe se escutava a empolgação. Mais tarde o
Virgílio da Praia Grande confirmou isso tudo. "Essa gente descendente de escravos gosta muito de festa".
No
lugar onde acontecia a festa, no caso do exemplo da Praia Grande do Bonete, havia uma expectativa
crescente conforme aumentava o som das batidas do instrumento. Todos esperavam
na praia, no ponto de chegada do caminho. Em seguida eram acolhidos, “repartiam
entre si a comidoria e alguns descansavam para a função na noite”. Era a noite toda de
dança. Só depois de clarear o dia era oferecido o café como despedida. Então,
novamente o grande grupo retornava à Caçandoca. A dona Maria dizia que parecia
até “um monte de bicho de frieira” que se deslocava molemente ao som dos cantos
e danças. Conforme as suas palavras, “era nessas ocasiões que a gente namorava
bastante”.
A
fotografia que ilustra o texto de hoje (ano de 2012) é da Bica da Bidu. Ela
continua saciando os caminhantes do íngreme caminho que liga as praias da
Fortaleza e Grande do Bonete. Se você silenciar bem ainda poderá escutar uma
voz melodiosa e o som de panelas sendo areadas no tempo d’antes sob a cobertura
da mata.
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