Saco do Céu: a natureza que inspira o Magalhães. |
Eu gosto de ler. Ao apreciar um texto, presto atenção nas inspirações,
no olhar sobre a natureza e o homem, sem me descuidar da concepção do bem e do
mal, mas com um detalhe: a moral tem diferentes faces porque ninguém tem acesso
absoluto a ela. Por isso, ao ler o
escrito do Magalhães Netto, me recordei das acolhidas que os caiçaras faziam em
outros tempos aos visitantes que se encantavam com as inigualáveis praias, com
a limpidez das águas do mar e dos rios.
Eram
atitudes cativantes para retornos futuros, capazes de justificar horas de
viagens em péssimos acessos. Ou seja, o povo caiçara, por si mesmo, era um importante chamariz. Só assim dá para
entender porque muitos, depois de um primeiro contato, não conseguiram mais
viver desapegado desse ambiente natural e cultural. Influência semelhante tem o
Saco do Céu ao nosso autor de hoje.
CARTA DA ILHA GRANDE
Saco
do Céu, 30 de julho de 2012.
BRUNO
& BIANCA, E VINÍCIUS.
Faz parte da cultura (?) brasileira o
desprezo por tudo que é antigo, velho,
tradicional, em suas diversas variantes. É uma característica negativa
de nosso povo, diametralmente contrária ao que acontece em muitos outros países, sobretudo nos europeus e asiáticos,
herdeiros de civilização mais evoluída. Cada geração esmera-se em minimizar a
importância ou simplesmente esquecer as coisas do passado, sem lembrar que
assim agindo será também esquecida pelos que virão depois. Poder-se-ia
exemplificar à larga essa falha de
procedimento em muitos outros aspectos, mas, para não me alongar demais, vou ater-me apenas ao desrespeito
que mostramos em relação aos nomes históricos de logradouros públicos e dos
acidentes geográficos.
No
assunto, um fato marcante ficou em minha memória. Em certa fase dos tempos
passados, aluguei um pequeno, modesto apartamento numa esquina da Rua da Consolação, na capital paulista. Não
no setor movimentado, comercial, que liga o centro da cidade à Avenida
Paulista, mas naquele trecho aprazível,
à época quase que somente residencial, na qual ela desce da Paulista até
encontrar seu final na Rua Estados Unidos. Certo dia, reparei num pessoal da prefeitura
municipal retirando as velhas, enferrujadas placas indicativas do local. A intenção não era substituí-las
respeitosamente por outras mais
legíveis: o nome nas novas, reluzentes placas era outro. Rua Padre
Donizetti Tavares de Lima. Vereadores ansiosos por captar votos dos admiradores
do padre milagreiro, ou o próprio prefeito, acharam por bem modificar o nome
de parte da tradicional via pública.
Quando não há disponível uma rua ou avenida com nome sem importância histórica,
adequada a uma alteração sem maior
oposição pública, ou uma avenida arterial
ainda não batizada em novo loteamento,
é o que fazem os políticos paroquiais: dividem uma via importante ao meio de sua extensão, e
lascam num dos trechos resultantes o
nome do homenageado.
Só
que, em nosso caso, calcularam mal o ânimo tradicionalista, preservacionista dos moradores. Já no dia
seguinte surgiram, esticadas nas
fachadas de residências próximas às chamativas placa novas, faixas com dizeres
que traduziam a revolta da população local. Lembro em particular de uma delas:
" A Rua da Consolação será sempre Rua da Consolação". E houve quem
chegasse a atitudes mais drásticas, arrancando das paredes das esquinas as ditas novas placas ali pregadas.
Apesar de a esse tempo meio alienado em
relação a coisas distantes de meu
interesse principal - seja a sobrevivência econômica e o estudo - e não me dizendo diretamente respeito o fato,
já que tinha ali um residência
provisória, ainda assim a atitude dos governantes municipais me havia
desagradado profundamente. Se fossem formados piquetes populares para mostrar
nossa disposição, eu certamente me incluiria neles. Mas não foi necessária essa
modesta adesão: as autoridades voltaram atrás, e a Rua da Consolação continuou sendo Rua da
Consolação em toda a sua extensão.
Ao meritório prelado, cuja beatificação foi
acelerada pelo atual dirigente máximo da Igreja Católica, ficaram ao que
verifiquei muitas outras homenagens
toponímicas em vias importantes de cidades espalhadas pelo nosso território. Talvez mesmo tenham os políticos
achado na própria capital estadual outro local, com moradores menos aguerridos,
para ali mostrar sua (duvidosa)
veneração.
A vitória obtida nesse entrevero não é a
regra, foi a exceção dela. Normalmente
os donos do poder de mudar mudam sem problemas. Mas vamos a casos mais proximamente relacionados com nosso
interesse pelo litoral, pelo mar. Já
mencionei ("Caranguejo de Praia", capítulo "Viagem Sentimental")
um exemplo típico de outras motivações menos religiosas para alteração de
nomes de logradouros públicos. Em
Itanhaém, litoral paulista, havia em tempo
antanho a Praia do Meio. Era a praia de banho dos poucos veranistas que
ali chegavam no trenzinho sacolejante
que partia diariamente de Santos, ou enfrentavam as incertezas de varar com seu
veículo as muitas dezenas de quilômetros rodando sobre as areias traiçoeiras da
Praia Grande. E não é que algum hoteleiro ou dono de restaurante achou sem
graça esse nome, não era
suficientemente chamativo para atrair o turista, aumentar-lhe a freguesia,
e inventou uma tal Praia do Sonho? O
nome bobo pegou, e é como a praia do Meio é conhecida desde essa época.
O
curioso é que os nomes antigos quase sempre são, mesmo no aspecto turístico, mais interessantes do que aqueles
que os mudancistas interesseiros criam.
Normalmente estão relacionados com características próprias do local, ou a
atividades que ali eram exercidas em tempos perdidos na memória. Soam, via de
regra, simpáticos em sua simplicidade. Rua da
Pimenta, Ladeira do Escorrega ,
Largo da Passarada, Beco do Ferreiro -
não são nomes de muito maior força do que aqueles que tomarão seu lugar? Mesmo
assim serão logo substituídos, salvo talvez o último - um
beco será considerado muito pouco importante para lembrar um falecido
ou para constar de roteiro turístico.
Em
Ubatuba também anotei vários casos de modificação tola, injustificável de nomes consagrados pelo longo uso. Quando comecei
a frequentá-la, havia a Rua da Praia,
também chamada Estrada da Praia, que ligava o
reduzido amontoado de casas que constituíam o centro urbano à Praia Grande, esticando-se depois até a Enseada,
por onde se fazia o embarque do necessário à manutenção do Presídio da Ilha dos
Porcos. Casas muito rarefeitas, uma
verdadeira estradinha vicinal. Com o passar dos
anos, essa Rua da Praia ganhou o status de avenida quando foi calçada
e alargada, e finalmente veio a
chamar-se Leovigildo Dias Vieira.
É
onde se situa, em seu canto direito,
nosso pequeno clube náutico. Resultado: tenho grande dificuldade quando pronuncio esse nome para
preenchimento de nosso endereço nas
notas fiscais das compras que fazemos. Já descobri que a única maneira de me
fazer entendido, sem precisar soletrar trabalhosamente o nome complicado, é decompô-lo. Leo-vi-gildo. Todo
mundo conhece um Léo, e Gildo também não é nome incomum, então meu interlocutor
consegue escrever certo o conjunto. Sem
fazer pouco do homenageado, do qual não tenho informação alguma, acho que quem
carrega um nome assim devia pagar mais imposto. Inclusive o conhecido e
competente Junior, flamenguista de antiga cepa, agora jogando somente entre
veteranos e atuando como comentarista futebolístico, a quem os pais pespegaram tal prenome.
E
a Ilha dos Porcos, mencionada acima? Quando a visitei pela primeira vez, havia
realmente porcos por lá. Cliquei nesses dias uma boa fotografia em preto e
branco das árvores à beira d’água, ao lado do semidestruído edifício do presídio onde ocorreu a célebre revolta
dos internados. Com muitos porcos
refugiados à sombra delas, justificando a denominação. Mas virou Ilha Anchieta, apesar de que como nossa Marinha é
também conservadora, a carta náutica da
região ainda consagra o nome antigo.
Nada contra homenagear o padre,
pacificador dos belicosos índios Tamoios, mas há que se respeitar a
memória, o desejo dos que primeiro a
nomearam.
Não
é a única com esse nome no município. Ao norte, a caminho de Paraty, está plantada outra ilha com igual denominação.
Bem menor, foi usado para diferenciá-la
o nome de Ilha dos Porcos Pequena. Com o passar do tempo, veio a corruptela: Ilha dos Porcos Pequenos. Esse
nome pouco atraente, esse detalhe foi, por estranho que pareça,
determinante de meu abandono da ideia de
adquiri-la. Quando ensinava os segredos do mergulho em aulas na Associação
Cristã de Moços paulistana, dando-me conta da necessidade de criar meios para evitar a dispersão dos alunos
depois de terminados os cursos, propus
a uma das centena e meia de turmas, talvez a mais animada delas, a compra dos
direitos de ocupação da ilha, que estavam à venda. Havia nela uma praia bonita, oferecia bom
abrigo para desembarques, sua costeira de água limpas favorecia o mergulho.
Foi
então que um de meus alunos, engenheiro e depois reitor da Universidade
Mackenzie, e que já ocupava uma certa liderança no grupo, veio com uma objeção
lamentosa, julgada pelos demais importante: "Diabo, Magalhães, você não
pode nos arranjar uma ilha com outro nome? Ilha dos Porcos Pequenos ... Ilha
dos Porcos Pequenos ... se formarmos um
clube de mergulho nela, logo ele passaremos a ser conhecidos como Clube
dos Porquinhos !!!"
E
com isso a coisa esfriou. Anos depois a ideia de criar uma entidade esportiva para congregar meus ex-alunos se
concretizaria em terra continental, na citada avenida Leovigildo. E a ilha em
questão terminaria em mãos de um de nossos associados, que ergueu ali uma bela
e espaçosa vivenda. Uma de suas providências
foi procurar mudar o nome comprometedor.
Passou a designá-la Ilha da Almada, o mesmo de uma das praias próximas.
Creio que a próxima geração já terá esquecido o desagradável toponímico original.
Mas,
saindo das praias paulistas, vamos finalmente ao que motiva estas escrevinhações. Há vinte e seis anos comprei esta propriedade
na Ilha Grande. Trezentos e tantos
metros de frente para águas encalmadas e
transparentes, um local de beleza rara, com uma pequena praia encastoada na montanha coberta do verde de
uma floresta densa e alta. Na verdade
havia ali em tempos muito distantes um sítio,
criava-se animais numa várzea à
meia altura, e plantava-se cana e uma agricultura de subsistência. Depois, com a saída dos
antigos proprietários e o relativo abandono a que o releguei, a floresta voltou
a avançar firme, cercando a pequena
casa, um rancho erguido no aterro centenário protegido do mar por muro de pedra.
O
nome da praia, que consta inclusive de antigas escrituras, confirma as histórias
ouvidas sobre piratas que ali se escondiam para surpreender as naus que levavam de Paraty para o Rio e para
a metrópole lusitana o ouro de Minas
Gerais e os produtos da agricultura regional. Praia da Aguada. Aguada, o local
em que se abastecem de água as embarcações. Era ali, naquele remanso no qual o
líquido cristalino caia da montanha junto ao mar e escorria pela areia, o ponto mais indicado
para servir de refúgio às embarcações
rapinantes. Praia da Aguada.
Porém
não interessa respeitar a tradição, quando se visa lucro. E, com o desenvolvimento súbito, desenfreado, do
turismo náutico na Ilha Grande, novos
nomes de acidentes geográficos foram imaginados para atrair os visitantes aos passeios embarcados.
Surgiu uma tal Lagoa Azul, depois veio
a Lagoa Verde. E até a pequena praia sobre a qual se encarapita meu
rancho, trinta e poucos metros de areia
junto à mata exuberante, já
normalmente, pela sua beleza, visitada antes por um número apreciável
de embarcações, também ganhou um novo
nome. Praia do Amor.
Até
nos roteiros turísticos, nos mapas da ilha pintados em locais públicos, aparece o novo designativo. Praia do Amor.
Existe algo mais cafona? E não ficou nisso, não bastou isso. Logo foram
espalhada uma estória que os agentes e os pilotos das embarcações de turismo
esmeram-se em contar a seus
passageiros. Criou-se uma lenda pouco imaginativa, mas bem comercial, pela qual
nomes de enamorados, se escritos na areia naqueles metros de praia, resultarão em uniões felizes e duradouras
a seus portadores. E então desembarcam das lanchas e escunas dezenas de garotas
esperançosas, seus bumbuns desvestidos pelo fio dental à mostra quando se
inclinam para escrever com os dedos ou
com um graveto ali achado, dentro dos traços do tradicional coração estilizado, as iniciais
ou os nomes completos dos candidatos à
felicidade amorosa.
De
início, nesse novo período de ocupação da casinha, irritei-me com a frequência
maior de visitantes e com a bobagem dos nomes rabiscados na areia. A alguém que me perguntava se era ali a
Praia do Amor, respondia: "Não, a do Amor fica depois da próxima esquina.
Aqui é a Praia do Ódio.” Realmente, mesmo
não chegando a odiá-los, causavam-me aversão os farofeiros que se
achegavam a este paraíso com sons em
volume máximo e se jogavam à areia com uma garrafa de cerveja à mão. Mas além de reconhecer-lhes o direito ao desembarque, percebi com o tempo que começavam a me respeitar, as escunas já
não colocavam seus alto-falantes a
plena potência, abaixavam o som quando eu lhes fazia sinal. E acabei por
constatar que, desde que não me invadissem o entorno da casa e minha privacidade, não faziam estrago - só uma
lata de cerveja eu recolhi da praia
nestas últimas excursões à ilha. Acostumei-me ao movimento maior de
forasteiros nos finais de semana e dias feriados, e até a entreter
conversa, esclarecendo sua curiosidade,
com alguns deles que se acercavam de
forma respeitosa.
Mas
não aderi à nova denominação de minha querida prainha. Para me contrapor
àquelas invencionices de caráter mercenário, fiz mais: confeccionei em Ubatuba
uma placa com o nome verdadeiro a praia, na intenção de prendê-la a uma das
palmeiras que se debruçam sobre a areia. Ficou bonita, recebeu um fundo
sugestivo, achei que merecia uma
moldura. E ontem no início da tarde estava justamente terminando a pintura
dessa moldura, elaborada, carpinteiro amador que sou, com uns sarrafos sobrantes
da reforma do rancho, quando uma lancha turística aproximou-se.
Já
fora do período de férias, era a única visitante, apesar do sol hibernal que,
devido à limpeza da atmosfera, ardia
mais do que o dos meses quentes. Não lhe dei maior atenção até que um rapaz de seus trinta ou trinta e cinco anos,
alto, com fisionomia agradável, e que
tinha desembarcado sozinho, virou-se
para a lancha, ancorada a uns trinta
metros, e gritou a plenos pulmões, entusiasmado, sem notar ou se incomodar com minha presença no terraço:
-
Querida, querida! Pra provar meu amor por você, vou escrever nosso nome na areia. Pra provar meu amor por você!"
Parei
meu serviço, olhei para a embarcação. Nela, além do barqueiro, que certamente contara a seus passageiros sobre a
tal crendice oportunista, estava uma moça, uma bonita moça, cuidando de duas crianças.
Achei simpática a sem-cerimônia, a espontaneidade do rapaz, num contexto em que
o verdadeiro romantismo já quase não
existe mais, soçobrou no materialismo
vigente. Mas não deixei passar a oportunidade de fazer graça. Quando ele,
arcado em sua altura, terminou de escrever o que se propunha, usando os dedos, levantei o pincel
e disse, sentencioso:
-
Desculpe-me a intromissão, mas me deixe esclarecer isso que você deve ter ouvido por aí. Na verdade, na verdade, o amor escrito nessas areias terá realmente alguma duração. Terá duração
até a próxima maré alta que vai
lavá-lo!
O
visitante hesitou alguns segundos, olhando-me fixamente. E então soltou
uma longa, sonora, gostosa gargalhada.
Não esperava tal receptividade a meu
comentário jocoso, ele poderia ter sido tomado como uma atitude
descabida ou até provocativa de um
estranho. Senti-me animado a animá-lo:
-
Mas não fique decepcionado com isso não, o que vale não é a duração, é a intensidade do sentimento. Lembra aquele
final do Vinícius de Morais em seu
Soneto de Fidelidade? Aquele poeminha famoso, uma obra prima
dele?
E declamei, a memória de dias já idos me
voltando nos versos antes tão mentalmente
repetidos:
"... Eu possa me dizer do amor (que tive)
Que não seja imortal, posto que é chama
Mas
que seja infinito enquanto dure."
- Querida! Querida! Além de tudo, meu amor por
você é infiniiito! E imortal!!!
Fiquei surpreso. Não pude evitar um sorriso
largo. O rapaz não entendera nada, não
compreendera nada da intenção do Vinícius. Cocei a cabeça, divertido, e voltei
à minha pintura. Depois que eles se foram, e meu trabalho terminado, desci à
praia e fui ver o que ele tinha escrito. Bruno e Bianca. A preamar da noite não
atingiu os nomes rabiscados na areia, mas eles não resistiram à do dia
seguinte.
Espero,
sinceramente, ter estado errado em meu vaticínio. E que o simpático Bruno e a bela Bianca continuem juntos, e
felizes. Felizes um com o outro. Para
todo o sempre.
Magalhães Netto
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