quinta-feira, 6 de setembro de 2012

CARTA DA ILHA GRANDE

Saco do Céu: a natureza que inspira o Magalhães.


                 Eu gosto de ler. Ao apreciar um texto, presto atenção nas inspirações, no olhar sobre a natureza e o homem, sem me descuidar da concepção do bem e do mal, mas com um detalhe: a moral tem diferentes faces porque ninguém tem acesso absoluto a ela.  Por isso, ao ler o escrito do Magalhães Netto, me recordei das acolhidas que os caiçaras faziam em outros tempos aos visitantes que se encantavam com as inigualáveis praias, com a limpidez das águas do mar e dos rios.

                Eram atitudes cativantes para retornos futuros, capazes de justificar horas de viagens em péssimos acessos. Ou seja, o povo caiçara, por si mesmo,  era um importante chamariz. Só assim dá para entender porque muitos, depois de um primeiro contato, não conseguiram mais viver desapegado desse ambiente natural e cultural. Influência semelhante tem o Saco do Céu ao nosso autor de hoje.

              CARTA DA ILHA GRANDE

              Saco do Céu, 30 de julho de 2012.

                BRUNO & BIANCA,  E VINÍCIUS.

               Faz parte da cultura (?) brasileira o desprezo por tudo que é antigo, velho,   tradicional, em suas diversas variantes. É uma característica negativa de nosso povo, diametralmente contrária ao que acontece em muitos outros  países, sobretudo nos europeus e asiáticos, herdeiros de civilização mais evoluída. Cada geração esmera-se em minimizar a importância ou simplesmente esquecer as coisas do passado, sem lembrar que assim agindo será também esquecida pelos que virão depois. Poder-se-ia exemplificar à larga  essa falha de procedimento em muitos outros aspectos, mas, para não me alongar   demais, vou ater-me apenas ao desrespeito que mostramos em relação aos nomes históricos de logradouros públicos e dos acidentes   geográficos.

                No assunto, um fato marcante ficou em minha memória. Em certa fase dos tempos passados, aluguei um pequeno, modesto apartamento numa esquina da  Rua da Consolação, na capital paulista. Não no setor movimentado, comercial, que liga o centro da cidade à Avenida Paulista, mas naquele trecho aprazível,  à época quase que somente residencial, na qual ela desce da Paulista até encontrar seu final na Rua Estados Unidos. Certo dia, reparei num pessoal da prefeitura municipal retirando as velhas, enferrujadas placas indicativas   do local. A intenção não era substituí-las respeitosamente por outras mais  legíveis: o nome nas novas, reluzentes placas era outro. Rua Padre Donizetti Tavares de Lima. Vereadores ansiosos por captar votos dos admiradores do padre milagreiro, ou o próprio prefeito, acharam por bem modificar o nome de   parte da tradicional via pública. Quando não há disponível uma rua ou avenida com nome sem importância histórica, adequada a uma alteração sem   maior oposição pública, ou uma avenida arterial  ainda não batizada   em novo loteamento, é o que fazem os políticos paroquiais: dividem uma   via importante ao meio de sua extensão, e lascam num dos trechos resultantes o  nome do homenageado.

                Só que, em nosso caso, calcularam mal o ânimo tradicionalista,   preservacionista dos moradores. Já no dia seguinte surgiram,  esticadas nas fachadas de residências próximas às chamativas placa novas, faixas com dizeres que traduziam a revolta da população local. Lembro em particular de uma delas: " A Rua da Consolação será sempre Rua da Consolação". E houve quem chegasse a atitudes mais drásticas, arrancando das paredes das esquinas as   ditas novas placas ali pregadas.

                 Apesar de a esse tempo meio alienado em relação a coisas distantes de meu   interesse principal - seja a sobrevivência econômica e o estudo - e   não me dizendo diretamente respeito o fato, já que tinha ali um   residência provisória, ainda assim a atitude dos governantes municipais me havia desagradado profundamente. Se fossem formados piquetes populares para mostrar nossa disposição, eu certamente me incluiria neles. Mas não foi necessária essa modesta adesão: as autoridades voltaram atrás, e a Rua   da Consolação continuou sendo Rua da Consolação em toda a sua extensão.  

                  Ao meritório prelado, cuja beatificação foi acelerada pelo atual dirigente máximo da Igreja Católica, ficaram ao que verifiquei muitas outras homenagens   toponímicas em vias importantes de cidades espalhadas pelo nosso   território. Talvez mesmo tenham os políticos achado na própria capital  estadual  outro local, com moradores menos aguerridos, para ali mostrar   sua (duvidosa) veneração.

                 A vitória obtida nesse entrevero não é a regra, foi a exceção dela.   Normalmente os donos do poder de mudar mudam sem problemas. Mas vamos a casos   mais proximamente relacionados com nosso interesse pelo litoral, pelo mar. Já   mencionei ("Caranguejo de Praia", capítulo "Viagem Sentimental") um exemplo típico de outras motivações menos religiosas para alteração de nomes   de logradouros públicos. Em Itanhaém, litoral paulista, havia em tempo   antanho a Praia do Meio. Era a praia de banho dos poucos veranistas que ali  chegavam no trenzinho sacolejante que partia diariamente de Santos, ou enfrentavam as incertezas de varar com seu veículo as muitas dezenas de quilômetros rodando sobre as areias traiçoeiras da Praia Grande. E não é que algum hoteleiro ou dono de restaurante achou sem graça esse nome, não era   suficientemente chamativo para atrair o turista, aumentar-lhe a freguesia, e   inventou uma tal Praia do Sonho? O nome bobo pegou, e é como a praia do Meio é conhecida desde essa época.

                O curioso é que os nomes antigos quase sempre são, mesmo no aspecto   turístico, mais interessantes do que aqueles que os mudancistas  interesseiros criam. Normalmente estão relacionados com características próprias do local, ou a atividades que ali eram exercidas em tempos perdidos na memória. Soam, via de regra, simpáticos em sua simplicidade. Rua da   Pimenta,  Ladeira do Escorrega , Largo da Passarada, Beco do Ferreiro   - não são nomes de muito maior força do que aqueles que tomarão seu lugar? Mesmo assim serão logo substituídos, salvo talvez o último  - um   beco será considerado muito pouco importante para lembrar um falecido ou   para constar de roteiro turístico.

                Em Ubatuba também anotei vários casos de modificação tola, injustificável de  nomes consagrados pelo longo uso. Quando comecei a frequentá-la, havia a Rua  da Praia, também chamada Estrada da Praia, que ligava o   reduzido amontoado de casas que constituíam o centro urbano à Praia   Grande, esticando-se depois até a Enseada, por onde se fazia o embarque do necessário à manutenção do Presídio da Ilha dos Porcos. Casas  muito rarefeitas, uma verdadeira estradinha vicinal. Com o passar dos  anos, essa Rua da Praia ganhou o status de avenida quando foi calçada e   alargada, e finalmente veio a chamar-se Leovigildo Dias Vieira.  

                É onde se situa, em seu canto  direito, nosso pequeno clube náutico. Resultado: tenho grande  dificuldade quando pronuncio esse nome para preenchimento de nosso   endereço nas notas fiscais das compras que fazemos. Já descobri que a única maneira de me fazer entendido, sem precisar soletrar trabalhosamente o nome   complicado, é decompô-lo. Leo-vi-gildo. Todo mundo conhece um Léo, e Gildo também não é nome incomum, então meu interlocutor consegue escrever certo o  conjunto. Sem fazer pouco do homenageado, do qual não tenho informação alguma, acho que quem carrega um nome assim devia pagar mais imposto. Inclusive o conhecido e competente Junior, flamenguista de antiga cepa, agora jogando somente entre veteranos e atuando como comentarista futebolístico, a quem   os pais pespegaram tal prenome.

                E a Ilha dos Porcos, mencionada acima? Quando a visitei pela primeira vez, havia realmente porcos por lá. Cliquei nesses dias uma boa fotografia em preto e branco das árvores à beira d’água, ao lado do semidestruído edifício  do presídio onde ocorreu a célebre revolta dos internados. Com muitos porcos  refugiados à sombra delas, justificando a denominação. Mas virou Ilha  Anchieta, apesar de que como nossa Marinha é também conservadora, a carta   náutica da região ainda consagra o nome antigo.  Nada contra homenagear o padre,   pacificador dos belicosos índios Tamoios, mas há que se respeitar a memória, o   desejo dos que primeiro a nomearam.

                Não é a única com esse nome no município. Ao norte, a caminho de Paraty, está   plantada outra ilha com igual denominação. Bem menor, foi usado para  diferenciá-la o nome de Ilha dos Porcos Pequena. Com o passar do tempo, veio   a corruptela: Ilha dos Porcos Pequenos. Esse nome pouco atraente, esse detalhe foi, por estranho que pareça, determinante  de meu abandono da ideia de adquiri-la. Quando ensinava os segredos do mergulho em aulas na Associação Cristã de Moços paulistana, dando-me conta da necessidade de criar   meios para evitar a dispersão dos alunos depois de terminados os   cursos, propus a uma das centena e meia de turmas, talvez a mais   animada delas,  a compra dos   direitos de ocupação da ilha, que estavam à venda.    Havia nela uma praia bonita, oferecia bom abrigo para desembarques, sua costeira de água limpas favorecia o mergulho.

                Foi então que um de meus alunos, engenheiro e depois reitor da Universidade Mackenzie, e que já ocupava uma certa liderança no grupo, veio com uma objeção lamentosa, julgada pelos demais importante: "Diabo, Magalhães, você não pode nos arranjar uma ilha com outro nome? Ilha dos Porcos Pequenos ... Ilha dos Porcos Pequenos ... se formarmos   um clube de mergulho nela, logo ele passaremos a ser conhecidos como Clube dos  Porquinhos !!!"

                E com isso a coisa esfriou. Anos depois a ideia de criar uma entidade   esportiva para congregar meus ex-alunos se concretizaria em terra continental, na citada avenida Leovigildo. E a ilha em questão terminaria em mãos de um de nossos associados, que ergueu ali uma bela e espaçosa   vivenda. Uma de suas providências foi procurar mudar o nome comprometedor.   Passou a designá-la Ilha da Almada, o mesmo de uma das praias próximas. Creio que a próxima geração já terá esquecido o desagradável toponímico original.

                Mas, saindo das praias paulistas, vamos finalmente ao que motiva estas   escrevinhações.  Há vinte e seis anos comprei esta propriedade na Ilha   Grande. Trezentos e tantos metros de frente para águas encalmadas e  transparentes, um local de beleza rara, com uma pequena praia   encastoada na montanha coberta do verde de uma floresta densa e alta. Na  verdade havia ali em tempos muito distantes um sítio,  criava-se   animais numa várzea à meia altura, e plantava-se cana e uma agricultura de   subsistência. Depois, com a saída dos antigos proprietários e o relativo abandono a que o releguei, a floresta voltou a avançar firme, cercando a   pequena casa, um rancho erguido no aterro centenário protegido do mar por muro   de pedra.

                O nome da praia, que consta inclusive de antigas escrituras, confirma as histórias ouvidas sobre piratas que ali se escondiam para surpreender as   naus que levavam de Paraty para o Rio e para a metrópole lusitana o ouro   de Minas Gerais e os produtos da agricultura regional. Praia da Aguada. Aguada, o local em que se abastecem de água as embarcações. Era ali, naquele remanso no qual o líquido cristalino caia da montanha junto ao mar e   escorria pela areia, o ponto mais indicado para servir de refúgio às   embarcações rapinantes. Praia da Aguada.

                Porém não interessa respeitar a tradição, quando se visa lucro. E, com o   desenvolvimento súbito, desenfreado, do turismo náutico na Ilha   Grande, novos nomes de acidentes geográficos foram imaginados para atrair   os visitantes aos passeios embarcados. Surgiu uma tal Lagoa Azul, depois veio   a Lagoa Verde. E até a pequena praia sobre a qual se encarapita meu rancho,  trinta e poucos metros de areia junto à mata exuberante, já   normalmente, pela sua beleza, visitada antes por um número apreciável de   embarcações, também ganhou um novo nome. Praia do Amor.

                Até nos roteiros turísticos, nos mapas da ilha pintados em locais públicos,   aparece o novo designativo. Praia do Amor. Existe algo mais cafona? E não ficou nisso, não bastou isso. Logo foram espalhada uma estória que os agentes e os pilotos das embarcações de turismo esmeram-se em contar   a seus passageiros. Criou-se uma lenda pouco imaginativa, mas bem comercial, pela qual nomes de enamorados, se escritos na areia naqueles metros de   praia, resultarão em uniões felizes e duradouras a seus portadores. E então desembarcam das lanchas e escunas dezenas de garotas esperançosas, seus bumbuns desvestidos pelo fio dental à mostra quando se inclinam para   escrever com os dedos ou com um graveto ali achado, dentro dos traços do   tradicional coração estilizado, as iniciais ou os nomes completos dos   candidatos à felicidade amorosa.

                De início, nesse novo período de ocupação da casinha, irritei-me com a frequência maior de visitantes e com a bobagem dos nomes rabiscados na areia.   A alguém que me perguntava se era ali a Praia do Amor, respondia: "Não, a do Amor fica depois da próxima esquina. Aqui é a Praia do Ódio.” Realmente, mesmo   não chegando a odiá-los, causavam-me aversão os farofeiros que se achegavam a   este paraíso com sons em volume máximo e se jogavam à areia com uma garrafa de   cerveja à mão.  Mas além de reconhecer-lhes o direito ao desembarque,  percebi com o tempo   que começavam a me respeitar, as escunas já não colocavam seus alto-falantes a   plena potência, abaixavam o som quando eu lhes fazia sinal. E acabei por constatar que, desde que não me invadissem o entorno da casa e minha   privacidade, não faziam estrago - só uma lata de cerveja eu recolhi da praia   nestas últimas excursões à ilha. Acostumei-me ao movimento maior de forasteiros nos finais de semana e dias feriados, e até a entreter conversa,   esclarecendo sua curiosidade, com  alguns deles que se acercavam de forma   respeitosa.

                Mas não aderi à nova denominação de minha querida prainha. Para me contrapor àquelas invencionices de caráter mercenário, fiz mais: confeccionei em Ubatuba uma placa com o nome verdadeiro a praia, na intenção de prendê-la a uma das palmeiras que se debruçam sobre a areia. Ficou bonita, recebeu um fundo sugestivo, achei que merecia uma   moldura. E ontem no início da tarde estava justamente terminando a pintura dessa moldura, elaborada, carpinteiro amador que sou, com uns sarrafos sobrantes da reforma do rancho, quando uma lancha turística aproximou-se.  

                Já fora do período de férias, era a única visitante, apesar do sol hibernal que, devido à limpeza da atmosfera,   ardia mais do que o dos meses quentes. Não lhe dei maior atenção até que um  rapaz de seus trinta ou trinta e cinco anos, alto, com fisionomia agradável, e   que tinha desembarcado sozinho,  virou-se para a lancha, ancorada a   uns trinta metros, e gritou a plenos pulmões, entusiasmado, sem notar ou se   incomodar com minha presença no terraço:

                - Querida, querida! Pra provar meu amor por você, vou escrever nosso nome na   areia. Pra provar meu amor por você!"

                Parei meu serviço, olhei para a embarcação. Nela, além do barqueiro, que  certamente contara a seus passageiros sobre a tal crendice oportunista, estava uma moça, uma bonita moça, cuidando de duas crianças. Achei simpática a sem-cerimônia, a espontaneidade do rapaz, num contexto em que o verdadeiro   romantismo já quase não existe mais, soçobrou no   materialismo vigente. Mas não deixei passar a oportunidade de fazer graça. Quando ele, arcado em sua altura, terminou de escrever o que se   propunha, usando os dedos, levantei o pincel e disse, sentencioso:

                - Desculpe-me a intromissão, mas me deixe esclarecer isso que você deve   ter ouvido por aí. Na verdade,  na verdade, o amor escrito nessas areias   terá realmente alguma duração. Terá duração até a próxima maré alta que vai   lavá-lo!

                O visitante hesitou alguns segundos, olhando-me fixamente. E então soltou uma   longa, sonora, gostosa gargalhada. Não esperava tal receptividade a meu   comentário jocoso, ele poderia ter sido tomado como uma atitude descabida ou   até provocativa de um estranho. Senti-me animado a  animá-lo:

                - Mas não fique decepcionado com isso não, o que vale não é a duração, é a   intensidade do sentimento. Lembra aquele final do Vinícius de Morais em seu   Soneto de Fidelidade? Aquele poeminha famoso, uma obra  prima   dele?

                   E declamei, a memória de dias já idos me voltando nos versos antes tão mentalmente   repetidos:

                "... Eu possa me dizer do amor   (que tive)

                Que não seja imortal, posto que é   chama

                Mas que seja infinito   enquanto dure."


      O cidadão ouviu, ficou pensativo, pareceu mergulhar na profundidade do   pensamento do poeta. Aí, virou-se novamente para o barco, e gritou, gritou   novamente, mais entusiasmado ainda:

                 - Querida! Querida! Além de tudo, meu amor por você é infiniiito! E   imortal!!!

                 Fiquei surpreso. Não pude evitar um sorriso largo. O rapaz não entendera nada,  não compreendera nada da intenção do Vinícius. Cocei a cabeça, divertido, e voltei à minha pintura. Depois que eles se foram, e meu trabalho terminado, desci à praia e fui ver o que ele tinha escrito. Bruno e Bianca. A preamar da noite não atingiu os nomes rabiscados na areia, mas eles não resistiram à do dia seguinte.

                Espero, sinceramente, ter estado errado em meu vaticínio. E que o simpático  Bruno e a bela Bianca continuem juntos, e felizes. Felizes um com o outro.   Para todo o sempre.

                                                                                                                                                                                                                       Magalhães Netto

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