segunda-feira, 13 de maio de 2024

O AVÔ DO MARX

 




Marx Aparecido - Arquivo Marcos


   Foi-se o Dia das Mães. Digo sempre: mais importante que o presente é a presença. Por isso sempre estou recordando da minha saudosa mãe. Tendo me encontrado com a Jandira, uma antiga amiga dela, a prosa em torno das lembranças da convivência entre as duas brotou com muita força.

   Jandira, esposa do finado Zé Emboava, também morava no bairro do Perequê-mirim. Eliana, a filha mais velha deles era minha amiga desde o primeiro ano escolar. Crescemos juntos naquela comunidade em que todos se conheciam. Aos finais de tarde a criançada, todos nós, brincávamos bastante. Era escuro quando nossas mães nos chamavam - muitas vezes! -  para o banho e jantar. Foi em torno desse tempo que conversamos com muita empolgação (eu, Jandira e Eliana). Recordamos dos demais vizinhos, de quem já morreu, mas nos demoramos mesmo foi nos vivos. Até marcamos uma tarde para um reencontro com bolo e café.

   Eu conheci os pais do Zé Emboava: Dona Júlia e Seo João. Naquele tempo o Seo João Emboava já estava na cadeira de rodas, ficava sempre debaixo se uma goiabeira, cumprimentando os transeuntes, contando de outros tempos, quando morava na praia da Enseada. Dizia com saudades dos bate-pés que aconteciam nas casas: na sua, na do Dito Góis e na de outros. “O assoalho aguentava os trancos, meu filho. Esse meu povo era festeiro” – dizia ele sempre – “Não passava uma semana sem dança amanhecendo o dia. Só o tempo da quaresma era guardado”.

    Isso tudo fez parte da prosa no dia de ontem. Jandira fez questão de dizer o quanto era forte a amizade dela com a mamãe:    “A Laura era amiga de verdade. Quando eu tinha criança, estava de resguardo, ela ia até a minha casa para lavar roupas e fazer outros serviços. Ela se preocupava com as pessoas e queria ajudar o tanto que fosse possível”. Muito mais momentos daquele tempo ela fez questão de nos contar. De vez em quando eu e Eliana pedíamos apartes, lembrávamos de fatos (Dia das Jabuticabas na terra do Velho Hyasa, Festa de Santana na capela...).  Logo chegou outra filha da Jandira, a Viviane. Eu tive a oportunidade de ser apresentado ao seu esposo Edinho, saber que, como o meu primo Marcos, ele trabalha no SAMU (Serviço de Atendimento Móvel de Urgência, um importantíssimo programa criado pelo Presidente Lula em sua primeira gestão). Dele veio a informação a respeito do amigo fiel do Marcos: “Eu que dei para ele aquele cachorro, o Marx”. Logo enviei a seguinte mensagem ao primo: “Conheci o Edinho, ‘avô’ do Marx Aparecido”. Ele ficou contente, confirmou que o Edinho e Viviane são os ‘avós’ daquele cachorro tão especial.


sábado, 11 de maio de 2024

O VELHO AINDA NÃO MORREU

  

Jorge Ivam - Arquivo JRS

     O velho ainda não morreu e o novo está em busca de expressão, buscando formas novas de dizer as antigas percepções (éticas, políticas, religiosas etc.). Foi a partir deste pensamento que eu comecei a me aproveitar, a desfrutar da fala do amigo Jorge Ivam no dia de ontem (10/5), por ocasião do lançamento oficial do seu romance Safira não nasceu assim, ocorrido no espaço cultural Impact HUB, localizado na Rua Guaicurus, 310, no Itaguá. (Na realidade, aquela localidade é chamada de Barra da Lagoa pelos caiçaras de Ubatuba).   Eu gostei de ler mais essa obra desse meu grande amigo, professor que agora goza de merecida aposentadoria, mas segue se entristecendo pelos descaminhos da educação pública no Estado de São Paulo e no país todo. Seu talento e seus temas represados até pouco tempo agora vão florindo as nossas vidas, sua técnica acumulada em décadas de migrante ministrando aulas vai nos conduzindo pelos caminhos da literatura, sua humanidade e sua maravilhosa família seguem nos cativando. Que maravilha tê-los entre nós! É gente assim, imbuída de renovadas narrativas libertadoras, que contribui com o desenvolvimento da cidadania dos ubatubenses, da cidade e do mundo!

    Jorge, acompanhado merecidamente pelas interpretações do filho e ator Caio Ferreira, começou dizendo do seu berço na cidade de Iaçu, na Bahia, do trabalho do pai como vaqueiro que estimulava os filhos aos estudos e ao trabalho, de como aproveitou da convivência na fazenda do patrão onde sempre havia algo para ler. Pela minha interpretação, foram os estudos, as leituras e o protagonismo facilitado na família que estimulou esse nosso amigo baiano, da caatinga espinhenta, a se aventurar em São Paulo, na capital paulista espinhosa, onde a sua sede pelo saber se fortaleceu e o conduziu ao engajamento comunitário e aos estudos superiores. Assim se tornou professor, Mestre no ensino da nossa língua.

    Safira não nasceu assim foi inspirado numa história real da região nordestina do sertão baiano, numa pessoa que tinha uma deformidade física, cuja mãe, valentemente (como a maioria das mães)  foi o esteio, o sustentáculo de toda a família. Resumindo: o enredo se desenvolve, tem como pano de fundo um acidente que muda drasticamente o destino de uma moça. Eu recomendo a leitura deste tema e de outros que vão se manifestando, vindo da trajetória do velho Jorge para o novo Jorge.   Na verdade, eu gostaria que todos lessem a maravilhosa produção do talentoso baiano que segue se acaiçarando, a começar pelo SERTÃOMAR escrito em parceira com o saudoso professor Pedro Paulo (que atualmente empresta seu nome ao teatro municipal de Ubatuba).     

   Para encerrar: o melhor de tudo foi ter reencontrado amigos, amigas e toda a família do Jorge (esposa e filhos queridos) no evento. Ah! Já estou aguardando a edição do próximo livro!

 

quinta-feira, 9 de maio de 2024

ÉRAMOS JOVENS

 

Amanhecer caiçara - Arquivo Clóvis 

    Éramos jovens. Duas canoas estavam preparadas para nós: uma menor, para duas pessoas, outra maior que aguentava até o dobro com segurança. Dia de pescaria, de acordo com o nosso costume caiçara. Na embarcação menor fui eu e Fabinho; na outra foi o primo Zé Roberto e mais dois companheiros. O mar não estava manso, se apresentando muito enlodado. Embarcamos e rumamos em direção à costeira da Enseada.  De repente, reparando melhor, além da água turva, barrenta, o mar parecia estar farelado. Explico: uma sujeira fina corria junto, encorpava o lodo. “Que é isso?” - perguntou alguém. Foi o Zé Roberto que respondeu: “É farelo de serragem. Deve estar vindo da serraria, ali da outra praia”. Na hora eu imaginei o tanto de madeira serrada para produzir tanto material assim. “Eu já disse que o mar estava bravo, sem chance de pescar sossegado”. Se dependesse de mim a gente voltaria dali mesmo, adiava a pescaria, mas já sabemos da paixão do meu povo por pescaria, pelo prazer de remar e apreciar a visão de tudo a partir do largo enquanto dá um rumo na canoa. E, depois, quando esta já está fundeada, a prosa é sempre muito gratificante!

     Rema que rema, com disposição de chegar logo ao local da pescaria. Ondas levantam e abaixam as canoas. “Força aí, pessoal” - eu grito para incentivar, mas todos sabem, desde criança, que nessas condições de revolta nas águas não se pode fazer corpo mole mesmo. É preciso usar toda força! Porém, aquele dia não era mesmo para a gente enfrentar o mar. Percebemos a realidade pior do que era quando atravessávamos a Laje Grande. Na verdade, tentávamos atravessar por lá. As imensas ondas nos levavam contra as pedras, pulavam para dentro das canoas. Íamos alagar, com certeza. Larguei do remo uns instantes para esgotar a água da nossa embarcação. O jeito foi conduzir as canoas cheias de água para a praia da Santa Rita. Conseguimos. Ufa! E aí vem a decisão que nenhum caiçara gosta de tomar: abortar a pescaria, chegar de mãos abanando na praia, encalhar a canoa sem nada dentro para mostra ao pessoal que, no jundu, sempre está aguardando a sua volta desejando ver o resultado da pescaria. “É, não deu” - exprime o primo - “Só nos resta ir para casa, tomar um banho e saborear um gostoso café, bem quentinho, feito no capricho pela mamãe”. E assim se foi a pescaria que não aconteceu. Ah! E quantas vezes isso se repetiu em nossas vidas!?!

Em tempo: naquele época, quando nem se falava em consciência ambiental, nenhum de nós ficava refletindo sobre desmatamentos, destruição de mangues, aterramento de brejos para atender a demanda imobiliária advinda com o turismo etc. Aquela serragem no mar era apenas um detalhe “sem importância” diante da realidade dos esgotos nas praias e costeiras nos dias atuais. 

quarta-feira, 8 de maio de 2024

INDRUMISTO

 

Joaninha linda - Arquivo JRS

            O texto de hoje é relativo à palavra indrumisto que está sumindo, deixada de ser falada, mas continuada a ser praticada, fazer parte do ser de muita gente da comunidade. É uma contribuição da minha querida esposa Gláucia. Concluímos que a maior indrumista que conhecemos até hoje foi a vovó Martinha, nascida na praia do Pulso, em Ubatuba. Boa leitura. 


   É uma palavra da minha infância: indrumisto. Talvez - ou provavelmente - eu tenha sido acusada injustamente de ser indrumista, com o que eu não podia concordar. Porque criança é curiosa, o que é bom e saudável, a curiosidade faz parte do desenvolvimento. Porém, se na minha autoanálise infantil, eu não era indrumista, conhecia várias pessoas que podiam ser classificadas assim. Ainda hoje esse adjetivo me vem à mente diante de atitudes de algumas pessoas que pretender saber detalhes da vida alheia, questionam, especulam, enfim, metem o bedelho onde não lhes diz respeito. Agora que digo isso, me dou conta que a palavra bedelho também anda sumida dos meus ouvidos. Sempre a ouvi somente na expressão “meter o bedelho onde não é chamado”.

   Se as pessoas não usam uma determinada expressão ou uma palavra, ela vai se perdendo. Dizemos que cai em desuso. É assim mesmo, a linguagem é viva, está em constante transformação.

   Percebi recentemente que não ouço mais ninguém dizer indrumisto. Acho que os jovens não sabem o que significa. Então preciso explicar. Indrumisto é a mesma coisa que enxerido, fofoqueiro, intrometido. Mas o fato é que essas outras palavras não dizem exatamente a mesma coisa. Indrumisto vai um pouquinho além, é o sujeito que fica escarafunchando (mais uma palavra antiga), quer dizer, buscando insistentemente saber mais e mais. Olha por cima do muro, por baixo da cerca, estica o pescoço, apura o olhar e afia a língua para a necessidade premente de comentar os fatos reais ou imaginários da vida dos outros. 

   Tenho uma certa nostalgia de ouvir a palavra indrumisto. Mas o que me deixou chocada foi não encontrar essa palavra nos dicionários onde procurei. Procurei no Google também. Nada. A tal inteligência artificial da internet insinuou que é uma palavra do Esperanto. Não sabe nada...

    Não é o dicionário que diz se uma palavra existe ou não existe. Primeiro vem o uso, a linguagem na vida real, os significados na comunicação. Só depois é que os dicionaristas recolhem e descrevem nos verbetes. Nenhum desses estudiosos escreveu indrumisto? Nenhum deles esteve na minha casa, na minha rua, no meu bairro, nem viveu naquela época para ouvir minha mãe dizendo para minha tia o quão indrumisto era o vizinho?

segunda-feira, 6 de maio de 2024

CONSCIÊNCIA POLÍTICA

Madeira rachada - Arquivo JRS

      Eu aprendi, na formação escolar, que esse modelo de gestão política que predomina no mundo nasceu no Egito por volta de 4 mil anos. O faraó, devidamente orientado pelos sacerdotes e escribas, centralizou o poder. Pronto! Nasceu o modelo piramidal, onde um todo poderoso controla a vida dos demais. Demorou tempo para que os gregos viessem com outra proposta, com a tal de democracia. Na praça pública, os atenienses se reuniam para discussões e votações. Os debates, acreditavam eles, conduziriam à verdade, ao que é melhor para a coletividade. Infelizmente, no processo civilizatório que foi se desenvolvendo, privilégios de quem domina foram defendidos, se impondo como moral sobre as consciências. Prevaleceu a moral dos senhores do poder. A força da linguagem é determinante! Assim nascem as ideologias. Há muito tempo, para a maioria das pessoas as desigualdades sociais são vontades divinas, inevitáveis, oportunidades para a depuração da alma que pretende merecer o paraíso após a morte. Entendeu até aqui? Simples, né? Por isso que a consciência política e o acesso ao conhecimento são afrontados, caluniados e combatidos pelos senhores do poder. Para isso, sobretudo na onda reacionária que avança sobre o Brasil e o mundo, o sentimento religioso está sendo usado para "fazer a cabeça dos mais pobres", para manipulá-los. É por isso! Estou me referindo à carência de consciência política, da urgência dos empobrecidos acreditarem na união, no direcionamento de suas forças para as transformações sociais e para novas posturas ambientais tão prementes nos dias atuais. Eu creio que somente os poderes (das palavras, dos saberes e dos pensamentos direcionados para o bem comum) resultarão no pleno desenvolvimento da humanidade. É, o pensamento pode ser muito perigoso. Ousemos pensar!

sábado, 4 de maio de 2024

SENTADO NO ROÇADO (III)

 

Mandioca - Arquivo JRS

    Impressionante como tem negacionista! Um dos absurdos nessa categoria de gente é dizer que isso de aquecimento global é mentira, que essa preocupação com desmatamento, poluição etc. é coisa de esquerdista, de comunista, de quem não tem o que fazer. Por influências perversas, gente assim deixa de usar a razão como instrumento de libertação. No momento, vendo o desastre causado pelas fortes chuvas na região sul do Brasil, me pergunto se esses negacionistas farão uma revisão de seus pensamentos, de suas condutas, serão solidários com as vítimas etc.

    A razão deve nos trazer a felicidade porque é capaz de olhar o mundo de outro modo, de buscar consertá-lo. Me disseram o seguinte: o relatório da ONU afirma que, no momento, 55 conflitos (guerras) acontecem no mundo. Diante de coisas simples ou de coisas absurdas, a consciência segue conversando com o corpo físico, elaborando narrativas morais, suportando tudo que acontece na existência. Conforme o ditado, são “unha e carne”. Nisto se dá o nosso ordenamento, a nossa direção, o rumo da nossa canoa. Os acertos, recorrendo à razão, podem prevalecer.

     O nosso fim vai se aproximando. O meu fim chegará, mas a memória que por ventura os outros tenham de mim - que agora preenche o meu ser - continuará atuando. A cultura individual, soma de tudo que faz parte do meu ser, ganhará autonomia. Os vestígios dela (gravada, escrita...) poderão continuar acessíveis às gerações vindouras. Isto é, assim dizendo, as contribuições  de um ser que, mesmo ausente, segue contribuindo com a humanidade, compartilhando o seu espírito (soma das vivências, das experiencias). Não é o saber acumulado desde os tempos mais antigos que nos conduziu até aqui? Não sei como essa gente consegue, apesar de tudo, continuar sendo negacionista.

sexta-feira, 3 de maio de 2024

SENTADO NO ROÇADO (II)

         

Frutinhas azuis - Arquivo JRS

    Surgiu o homo sapiens. Pronto! Dizem que este estágio na nossa existência se deu por volta de 100 mil anos. As pesquisas apontam: uma brevidade de tempo se comparado a outras espécies de viventes desta Terra. O nosso cérebro cresceu graças aos estímulos.  Viver no chão, usar as mãos, recorrer a tudo para sobreviver foram essenciais naquele começo, naquele estágio vivencial.        

      Ainda hoje necessitamos muito dos estímulos para não regredirmos.  Essa máquina chamada cérebro se tornou complexa graças às técnicas, ferramentas, falas, memórias etc.; permitiu revoluções diversas nesse pouco tempo de vida no planeta. Agora leio e fico imaginando a evolução desde o surgimento da linguagem, da fala que possibilitou a vida coletiva, em grupos. Depois se deu a invenção dos alfabetos, a produção de livros, chegando à tecnologia moderna que não cessa de se desenvolver. Antes de cada  amanhecer tenho em mãos um aparelho que armazena centenas de obras, tal como as grandes bibliotecas existentes. Não é maravilhoso ler e escrever, compartilhar ideias de/com alguém que apenas é acessível pelas letras imprimidas, digitadas ou gravadas porque mora distante de nós, até mesmo no outro lado do mundo?

     É isto: os livros, sob as múltiplas formas, serão sempre revolucionários!

quinta-feira, 2 de maio de 2024

SENTADO NO ROÇADO

 

Teia de aranha - Arquivo JRS

 

    A idade avança. Tenho a necessidade de descansar mais entre as enxadadas. Observo e sigo cultivando. Duas sementes brotaram. Logo as duas plantinhas estavam crescendo com este detalhe: uma bem forte e outra mais fraca, como se estivesse doente. A água é exígua. O que fazer? Distribuí-la igualmente entre as duas ou escolher uma delas? Será que não deveríamos se devotar à mais forte, irrigá-la bem com a pouca água para que se desenvolva ao máximo e dê muitos frutos? Ou temos esperança de que a mais fraca se recomponha com a partilha da pouca água e também deixe a sua contribuição ao planeta?

     Privilegiamos os “bem-nascidos” ou incluímos os desfavorecidos, os injustiçados? Pois é! O maior desafio é resgatar o valor da vida. Disto vem a pergunta inevitável: do que o nosso corpo precisa para viver, para compor o nosso espírito (ser humano completo, que se constitui com narrativas, memórias, técnicas, momentos etc.)?    Usemos a inteligência para valorizar mais a vida.

   Como se inicia, se desenvolve a inteligência humana? Uma possibilidade, além de outras, foi observando os outros seres e os fenômenos que nos rodeavam, que estavam na nossa vivência nos primórdios: a armadilha estendida por uma aranha, um bicho que come um mato contra um incômodo que sente, um pássaro que evita degustar determinada fruta, os cuidados que uma cachorra dispensa às crias, inclusive as estratégias para que aprendam a sobreviver na natureza e na coletividade, uma manada que determina no relevo o seu carreiro etc. Em seguida, sinal notório da inteligência prática: as ferramentas vão sendo criadas. Pode ter sido por acaso este importante passo, mas não podemos descartar   a possibilidade de ser imitação de outros animais. (Me recordo de uma cena onde um macaco recorria a uma pedra para quebrar um coco e se servir do alimento). E, assim, um ser dentre os demais seres evolui: surge o homo sapiens. De lá para cá evoluímos muito, mas - acredite! - tem gente que, manipulada por interesses perversos, ainda defende a Terra plana. É mole?

 

segunda-feira, 29 de abril de 2024

OCASO

 

Ocaso - Arquivo JRS

   A filósofa brasileira Viviane Mosé escreveu   a respeito da cultura: "que ela tenha como alvo dar continuidade à obra da natureza no mundo dos humanos, como um modo de afirmar a vida, de fortalecê-la". Portanto, a pedra fundamental, o alicerce da cultura é a afirmação da vida. De qualquer cultura, seja ela caiçara, caipira, indígena, afrodescendente, nordestina, ribeirinha etc. De qualquer cultura!

   Vida de quem? Vida de todo mundo, inclusive dos demais seres que garantem a existência humana! Então, sempre foi urgente aprender sobre a vida, fazer a leitura dela. Nisto transcorrerá a nossa existência  até que chegue o ocaso, quando o sol que clareava o dia cederá espaço ao anoitecer. A arte é essencial nessa trajetória. Agora, por exemplo, completando cinquenta anos da Revolução dos Cravos ocorrida em Portugal, me vem à mente a música Tanto Mar, na voz de Chico Buarque, naquela ocasião (1974) que continua me emocionando  demais. 


Foi bonita a festa, pá
Fiquei contente
Ainda guardo renitente
Um velho cravo para mim

Já murcharam tua festa, pá
Mas certamente
Esqueceram uma semente
Em algum canto de jardim

Sei que há léguas a nos separar
Tanto mar, tanto mar
Sei também quanto é preciso, pá
Navegar, navegar

Canta a primavera, pá
Cá estou carente
Manda novamente
Algum cheirinho de alecrim

Canta a primavera, pá
Cá estou carente
Manda novamente
Algum cheirinho de alecrim

domingo, 28 de abril de 2024

VIDRAÇA

 

Mosca na vidraça - Arquivo JRS

     Uma mosca diferente tentava se  livrar do ambiente da cozinha. Tentei uma fotografia; não consegui uma boa imagem, mas não me importei muito porque nem amador eu sou. Pode criticar, Ernesto. Afinal, és um fotógrafo profissional. Voltando à imagem do inseto na vidraça, embora não fosse abelha, me recordei de um poema, um haicai  antigo do mano Mingo que sempre me faz divagar. Ei-lo aqui:

 

Na nuvem que passa

Passeia uma abelha

Pela vidraça.

 

 

quinta-feira, 25 de abril de 2024

DISCURSOS E COMPROMISSOS

Alguém cortou e marcou - Arquivo JRS


      Ubatuba, tal como quase todas as cidades litorâneas estabelecidas pelos “descobridores” portugueses no início da colonização, passou por várias crises econômicas. Os motivos foram diversos: esgotamento do pau brasil, clima inadequada para o cultivo da cana, solo empobrecido pelo cultivo intenso de café, invasão de terras no interior do país (novas áreas agrícolas), descoberta do ouro nos sertões, falta de vias adequadas para acesso ao porto marítimo, decisões arbitrárias de governantes etc. Por consequência, uma população pobre precisou se agarrar firmemente nas tradições básicas de sobrevivência, tal como caça e pesca, cultivo da mandioca, banana etc.

     Já aprendemos que, na história do Brasil, neste contexto acima, não havia educação básica. A catequese dos padres até podia alfabetizar, mas a intenção maior era “conquistar almas para Deus”, expandir a religião católica, tornar as pessoas conformadas aos ditames dos poderosos políticos, dos que detinham o poder econômico. Os filhos destes (“senhores da terra”  que se aproveitavam do suor dos indígenas, negros e brancos marginalizados) tinham a chance de irem morar em cidades grandes e até na Europa para prosseguirem nos estudos. Dá para imaginar, então, quais eram as perspectivas dos trabalhadores e suas famílias que apenas tinham o trabalho, a preocupação com a sobrevivência? Nenhuma! Aqui, nem os padres, primeiros professores deste território imenso, se atreveram a pensar na educação da população. Pelas leituras, eu pude concluir que apenas no final do século XIX apareceu gente que se voltou para essa questão da educação escolar. Foi o médico Esteves da Silva e outras pessoas instruídas da cidade que se debruçaram sobre a preocupação da falta de escolarização e fundaram o Ateneu Ubatubense.        

       No livro do Seo Filhinho, Ubatuba Documentário, tem uma passagem interessante, ocorrida em 1881, quando pouco mais de doze lampiões de querosene foram instalados no centro da cidade, nas esquinas principais, para iluminarem as noites. Eles duraram décadas. Era a iluminação pública que fazia sucesso. À querosene! Mas escolhi o referido evento porque os vereadores produziram um texto na ocasião da inauguração, cujo último capítulo é o seguinte: 

Esta Câmara saúda a Associação do Ateneu Ubatubense à frente da qual se acha o seu mui digno e ilustrado Presidente Dr. João Diogo Esteves da Silva, pelo projeto da criação da aula noturna para adultos, melhoramento intelectual de grande alcance, pois que esta Câmara está convicta de que a maior riqueza das nações e assim das frações desta é a instrução derramada pelo povo e os melhoramentos materiais para o bem-estar do mesmo povo.

       Posso inferir que o jeito foi começar alfabetizando adultos, sensibilizá-los para, no futuro, incluir a educação às crianças. Caso contrário, somente quem pudesse pagar por aulas particulares seria alfabetizado. Certamente o médico, proveniente da cidade do Rio de Janeiro, trouxe uma bagagem repleta de livros e aqui encontrou outros homens - pouquíssimos! - influentes com farto material enfeitando estantes. Se entrosaram e fundaram o Ateneu. Pronto! O saber lançou raízes, se expandiu!

      Quisera eu que não fosse esquecida  a última parte do texto inaugural: “...esta Câmara está convicta de que a maior riqueza das nações e assim das frações desta é a instrução derramada pelo povo e os melhoramentos materiais para o bem-estar do mesmo povo”. Ubatuba é uma fração desta nação. Os legisladores atuais da cidade pensam assim ou seus discursos são apenas palavras ao vento, sem comprometimento ?

segunda-feira, 22 de abril de 2024

COMO VAI A EDUCAÇÂO?

      

Aurora maravilhosa - Arquivo Clóvis 

      Em tempo de responsáveis pela Educação Escolar dispensando estudiosos/pesquisadores dos temas pedagógicos, didáticos, históricos, filosóficos, matemáticos etc., para imposição de material retirado da inteligência artificial, cabe reflexão sobre o que, de fato, pretendem tais líderes. Não podemos nos esquecer: os mesmos são remunerados pelas contribuições da classe trabalhadora, pelo suor dos pobres. É o nosso trabalho que sustenta este modelo de estado, de governo.

     As máquinas, os computadores que dispõem essa dita sabedoria, começam prestando um favor: dispensar trabalhadores do setor, desde operários das gráficas até os que se debruçam nos estudos, nas teorias que fazem a diferença no rendimento escolar. Em seguida, livres das mediações de textos atualizados até mesmo no momento das aulas, certamente haverá a censura prévia, tipo “isso pode isso não pode”, com objetivo de reforçar um predomínio ideológico, de conter a autonomia do pensamento. Assim, o que os docentes e discentes receberão nas escolas também reduzirá a capacidade crítica, limitará as motivações para futuras pesquisas e estudos. No momento em que no Brasil e no mundo cresce a onda reacionária, recrudesce os movimentos políticos de extrema direita, essa opção pelo uso da inteligência artificial em vez dos livros didáticos se torna um perigo, pois estará a serviço, sendo usado por essa tendência nefasta contra os menos abastados. Quem está gostando disso são aqueles professores que se acomodam, não querem ler mais e, constantemente, perguntam: “Para que o filho do pobre precisa estudar isso?”. É isto: são docentes que servem aos interesses de quem domina os rumos da sociedade e querem apenas trabalhadores que cumpram ordens, sendo um exército de reserva de mão de obra barata que vai continuar garantindo os lucros e o domínio político de uma minoria. Tenho a certeza de que as boas escolas particulares, que atendem os mais endinheirados, não seguirão essa imposição pedagógica/didática.

      Às vezes fico imaginando a história da humanidade, de quanto nós fizemos para escapar da malha da natureza, recorrendo desde as técnicas simples até a moderna tecnologia. Quanto discursos foram criados (e continuam!) para que as mentalidades se moldassem às diversas sociedades e dessem suas contribuições à evolução geral? Sem dúvida alguma que a formação escolar, o saber acumulado pelo tempo, influenciou muito. Agora, a humanidade e o meio ambiente estão em perigo, exaustos. O ser humano dá mostras de que está regredindo, se recusando a refletir. Prova disso é o crescimento e o apoio de movimentos reacionários no mundo todo.  Situações de estrema brutalidade se recrudescem, até pessoas ditas religiosas apoiam a violência contra pobres e marginalizados e o uso de armas para sustentar perseguições/mortes aos frutos da desigualdade social; aplaudem o fim dos direitos sociais conquistados a duras penas pela classe trabalhadora; não se importam com o  extermínio de povos originários etc. Em suma: o pobre está contra ele mesmo. Parece o fim de tudo aquilo que sustentava a esperança num mundo melhor. Como deixamos isso acontecer? Pode ser que transferir a formação escolar para a responsabilidade das máquinas, da inteligência artificial, possa agravar ainda mais esse quadro tenebroso.

sábado, 20 de abril de 2024

ERA PEDRO

    

Treporeba - Arquivo JRS

     Pedro era o nome dele. Há anos viera da cidade de Piquete para ficar mais perto do mar, experimentar outra rotina diferente daquela de viver no Vale do Paraíba, divisando com o Sul de Minas. Escolhera, dentro das possibilidades, de viver no bairro do Ipiranguinha, onde nos conhecemos. Éramos vizinhos nesses anos todos.

    Pedro era o nome dele. Trabalhara por anos, na sua cidade natal, na Indústria de Material Bélico do Brasil (IMBEL). Em Ubatuba, desempenhava a profissão de jardineiro num condomínio de luxo no Morro das Moças, onde era admirado pela sua dedicação profissional e companheirismo. Ele também fazia uns bicos como pedreiro.

     Pedro era o nome dele. Junto com Dorinha e Pedrinho formavam uma linda família, eram estimados por todos nós. Dele, numa ocasião, enquanto eu cuidava das plantas na calçada de casa, escutei a seguinte história que deveria nos conduzir a sérias reflexões, sobretudo a respeito dos direitos trabalhistas, dos descasos com a vida dos operários, das condições insalubres: 

“Durante muitos anos eu trabalhei naquela fábrica de armas, de produção de pólvora e mais coisas. Eu fazia parte de uma equipe de serviços gerais. Éramos, mais ou menos, trinta companheiros nessa função. Dias desses, ao saber da morte de um ex-colega da fábrica, parei para pensar, fui colocando na conta o tanto de antigos companheiros que se foram antes dos sessenta anos. Sabe que mais de vinte já faleceram, Zé? Será que essa situação tem a ver com o ambiente de trabalho dentro da fábrica naquele tempo?”.

 Não passou muito tempo para o Pedro também adoecer. De um dia para outro desapareceu aquele homem forte, animado para as atividades da comunidade. Emagreceu, amarelou; definhou rapidamente. Fui pesquisar sobre a citada fábrica.

Dentre os diversos produtos comercializados pela IMBEL®, alguns deles de emprego dual, destacam-se: Fuzis de Assalto e carabinas 5,56 IA2; pistolas de diferentes calibres e características; facas; Sistemas de Abrigos Temporários de alto desempenho (SATi), nas versões de Campanha e Defesa Civil; equipamentos-rádio; Sistema computadorizado para direção e coordenação de tiro de artilharia; munições de grande calibre para morteiros, canhões e obuseiros; emulsões e explosivos diversos, iniciadores e demais componentes.

      Era Pedro. Para nós ficou a memória de uma pessoa decente, exemplo de cidadão na vida comunitária. Perdemos um amigo sincero, que cultivava plantas e amizades; que se devotava à família. Lembrei-me agora da música Pedro Pedreiro, de Chico Buarque. Dela vem a minha homenagem ao amigo Pedro:


Pedro não sabe, mas talvez no fundo

Espere alguma coisa mais linda que o mundo

Maior do que o mar

Mas pra que sonhar

Se dá o desespero de esperar demais

Pedro pedreiro quer voltar atrás

Quer ser pedreiro pobre e nada mais

 

sexta-feira, 19 de abril de 2024

LARGO DA IGREJA DOS PRETOS

 

Paisagem - Arte: Maria Eugênia

   Eu estava de passagem, indo na direção da praia. Pretendia contemplar o mar e seguir ir até o Mercado de Peixes para comprar camarão e rever velhos conhecidos. Ouvi um alarido, fui me aproximando. Tambores falavam alto, pessoas dançavam vestidas em suas roupagens variadas, alegres. Sacerdotes estavam no meio daquilo tudo, muito simples, com pessoas bem animadas. Coisa bela! Era uma celebração confirmando a participação de crenças em união, sincretismo religioso num ato que recordava determinado aspecto da história do município de Ubatuba. Alguém próximo comentava a importância de tudo aquilo:  

"É para marcar, não deixar apagar a memória de que aqui os negros escravizados tiveram uma igreja católica quando não podiam frequentar o mesmo templo que os senhores brancos. Aqui, nesta praça era a igreja de Nossa Senhora do Rosário dos Homens Pretos. Ela foi demolida há muito tempo, tendo algumas de suas partes aproveitadas para a conclusão da Igreja Matriz, o local sagrado dos homens brancos logo ali. Esta celebração puxada pelo grupo de maracatu e pastoral católica é para reavivar, resgatar a história deste lugar”. 

    Achei o máximo. Passava da hora de não deixar apagada um importante fato da nossa história. A municipalidade bem que poderia formar uma junta de pesquisadores, escavar, deixar um espaço protegido para que as pessoas apreciassem possíveis vestígios que estão debaixo da estátua da Nossa Senhora da Paz de Iperoig, produzir um marco histórico, fazer constar no calendário cultural etc. É isso mesmo! Estou me referindo à praça que se localiza na zona central da cidade de Ubatuba, próxima do mar, do casarão da Fundart e da igreja matriz; local que já recebeu a denominação de Praça do Rosário, Praça Marechal Deodoro, Praça da Bandeira e, finalmente, Praça de Nossa Senhora da Paz de Iperoig.  Vamos fazer uma análise do discurso? Religião e politica estão de mãos dadas. Predominava, possivelmente, apenas a denominação de largo da igreja dos pretos. Depois da destruição do templo, a religião católica determinou a homenagem à prática devocional do rosário. Vencida a monarquia, os republicanos a batizaram com o nome do marechal. Em seguida, na onda do civismo, se voltaram ao símbolo da Pátria (tão vilipendiada nos dias atuais por aqueles que são a favor da entrega de nossas riquezas aos grupos estrangeiros, mas se dizem patriotas, destroem a capital federal, cultuam o sionismo, são contra a democracia, espalham mentiras para alienar mais gente etc.). Por fim, os senhores da terra outorgam a Nossa Senhora como interventora na submissão e destruição da etnia Tupinambá, sob a classificação de paz. Paz para quem? Certamente não é para os povos originários, nem para os descendentes dos africanos que foram tornados escravos. É isto: será que não está na hora de voltar a ser o Largo da Igreja dos Pretos? 


sábado, 13 de abril de 2024

CAMINHO DA RUINDADE

 



Vô Estevan e o mano Guinho - Arquivo JRS

    Meu avô Estevan contava histórias. Nunca me esquecerei das tardes, apreciando o mar, eu e mais pessoas se postando ao lado dele para escutar as empolgantes narrativas. Criado pela casa dos outros devido a morte precoce dos pais, não sei dizer como ele aprendeu tanta coisa, tinha na memória tantas narrativas fantasiosas, de causos e fatos. Desconfio que eu herdei um pouco desse espírito dele. 

   Dos fatos históricos, sobretudo do território da Caçandoca, onde nasceu o querido vovô, mais tarde, escutando os moradores mais antigos, eu pude confirmar muitas passagens das narrativas dele. Histórias de negros eu escutei muitas. Hoje, relendo um documento de 1834, falarei a respeito do tráfico negreiro em Ubatuba, nas terras da Caçandoca e adjacências. Creio que ajudará muita gente a conhecer um pouco mais da nossa história, rever posicionamentos ideológicos, além de pretender fomentar o turismo cultural nesse município litorâneo. O ponto de partida é o Caminho da Ruindade, como os mais velhos a chamavam. Ela ainda faz a ligação entre o litoral e a Serra Acima! Originalmente ele partia do Saco das Bananas, atravessava o Sertão da Quina e chegava na Vargem Grande, no município vizinho de Natividade da Serra.  Era por esse caminho que se fazia a condução dos negros escravizados para a venda no "planalto" (Vale do Paraíba, Sul de Minas etc.), escapando das autoridades, principalmente a fiscalizadora e cobradora de taxas. (Lembremos que, em Ubatuba, a Casa de Barreira ficava onde atualmente está a estátua do Pescador, na rotatória de acesso à rodovia Oswaldo Cruz). Pelo mesmo caminho, na serra íngreme, passavam produtos e pessoas. Foi por ele que muitos caipiras vieram se juntar aos caiçaras, se miscigenaram e expandiram nossas raízes culturais, se enriqueceram mutuamente nos diversos bairros (Corcovado, Sertão da Quina, Maranduba...). Mas vamos ao documento. Trata-se do Conselho de Governo, uma espécie de Congresso Nacional da época, se dirigindo à Câmara Municipal:

Por mui circunstanciadas informações e documentos autênticos, a omissão do Juiz de Paz e Suplente dessa Vila no cumprimento de seus deveres e execução da Lei, sobre a introdução de escravos africanos que se tem realizado por diversos pontos do Distrito dessa Vila, no entretanto, que o dito Juiz asseverava ao Governo que nenhum indício havia de semelhante crime, aliás de notoriedade pública, e tanto que dois dos referidos escravos, evadindo-se do lugar em que se achavam retidos, foram apresentar-se a bordo da Escuna FLUMINENSE, que cruzava na costa por ordem do mesmo Governo e fizeram conhecer ao comandante que na Enseada do Bananal [Saco das Bananas] existia grande número deles (...). E sendo, portanto, ambos [Juiz e Suplente] na forma da Lei solidariamente responsáveis, o referido Conselho os suspendeu no exercício do cargo de Juiz de Paz para responderem em Juízo competente por uma tão criminosa omissão no cumprimento de seus deveres e observância da Lei.

    Portanto, Ubatuba foi sim um ponto dessa vergonhosa criação que é a escravização humana, dos africanos. Muitas das autoridades constituídas fizeram o que puderam para continuação dessa vergonhosa página da nossa História. Nos dias atuais vemos uma tendência reacionária muito forte na política brasileira atuando para retirar as conquistas trabalhistas, negar os direitos humanos, exterminar os povos originários, perseguir as minorias sociais etc. Tudo isto não é uma versão atual do Caminho da Ruindade?

Etempo: o Caminho da Ruindade hoje é a Trilha do Campo que liga o Sertão da Quina à Vargem Grande. É de difícil acesso, mas continua lá. Tudo lindo por lá! 

quinta-feira, 11 de abril de 2024

PLANTANDO DÃO

 

É serão, vem a noite - Arquivo JRS

     Acordei com a parte da música Capim Guiné, de Raul Seixas, que diz "nem um pé de passarinho veio a terra semear". Então me veio à mente o tanto de gente que tem uma sensibilidade com a terra e as plantas, que sempre está fazendo algo de bom para cultivar árvores frutíferas para nós, às aves e aos animais. Gente que passa por nós e faz questão de prosear nesse tema, dar sugestões que melhoram o nosso desempenho, traz mudas etc. Adoro esse pessoal!

   Dias desses, um senhor, empurrando uma bicicleta, se deteve na beira da via e comentou: "Pelo jeito o senhor gosta de plantar. Tenho umas mudas lá em casa, posso lhe dar. O senhor aceita?". Prontamente disse que sim. Estabelecemos nova amizade. Não é bom isso? O nome dele é Altair, sempre foi da roça. Está chegando aos oitenta anos e continua trabalhando para os outros, cuidando de chão que não lhe pertence. Em poucas palavras ele resumiu o seu percurso de lavrador: "Sempre trabalhei na roça, mexendo com cultivo e animais. Por muito tempo fui empregado do Novaes, trabalhei na fazenda dele. Agora, tem poucos anos, a terra foi comprada por um estrangeiro. Fiquei desempregado, mas nunca parei de fazer o que eu fiz a vida inteira". Passado uns dias, lá vem o Altair com várias mudas. Adorei. E tome mais prosa sobre plantação, costumes etc. É assim que eu vou estabelecendo amizades prazerosas, de olhares, gestos e falas cativantes; não deixando de continuamente  aprender com quem tem vivência intensa com a natureza. 

   Altair. devido ao sistema no qual vivemos, precisa continuar servindo aos outros, pois apenas um lote lhe pertence. Quantos nem isto têm? Sei que muitos trabalhadores do campo, por injustiças várias, migraram para as cidades, continuam sendo explorados e vivendo em péssimas condições. Eu conheço uma grande quantidade levando a vida assim, sobrevivendo "aos trancos e barrancos". Por isso é louvável os esforços de grupos organizados, de políticos comprometidos com as questões fundiárias, com a reforma agrária. Terra é para quem trabalha. Finalizo com a frase do estimado alfaiate caiçara Isaías Mendes: "Nesta terra, plantando dá. Não plantando, dão". O meu mais recente amigo planta e dá. Vida longa a ele é o que desejo.

sábado, 6 de abril de 2024

ESCURIDÃO CIVILIZATÓRIA

 

Entre arames - Arquivo JRS

     A madrugada é silenciosa, me faz divagar, refletir a respeito de tantos caminhos e de muita gente que fez ou faz ainda parte deste caminhar que é a nossa vivência. Tudo começou em nosso lar, com nossos pais e parentes (a família expandida) convivendo numa comunidade que era interdependente da natureza, vivendo praticamente da pescaria e do roçado. Em seguida, fomos aprendendo que nossas vidas se contextualizavam numa realidade maior de município litorâneo que se voltava à economia turística. Aí veio o despertar político. Ainda era a década de 1960, quando comecei a entender um tal de governo militar que se impôs pelo recurso vergonhoso de um golpe de Estado. Na década seguinte, já frequentando o nível ginasial, no grande colégio da cidade, onde o Exército tinha o seu representante, sargento-professor para "vigiar a ordem", entendi melhor as razões, os temores que resultaram numa escuridão civilizatória na História do Brasil. Depois, convivendo com pessoas comprometidas, na busca de melhores rumos democráticos, fiz a minha opção política mais condizente com a minha classe social, com os caminhos que eu trilhara até então.  Foram as prosas e convivências que me motivaram a ler mais e a escrever. Foram exemplos de vidas bem próximas de mim que me engajaram em tantos mutirões, em movimentos populares em defesa da vida. 

      Neste momento, passados sessenta anos do Golpe Militar, faço questão de transcrever um testemunho do Washington de Oliveira, o Seo Filhinho, relacionado à já citada noite de trevas, à escuridão que atendia, sobretudo, interesses externos, de determinadas nações que ainda querem explorar a classe trabalhadora brasileira, o nosso povo, as riquezas deste Brasil. Na época, na ocasião do Primeiro de Abril que fechou as portas democráticas, o nosso farmacêutico caiçara era presidente da Câmara Municipal. Por aqueles dias precisou se ausentar da cidade para fazer uma cirurgia, deixando um aviso na porta da farmácia: "Por motivo de força maior, esta farmácia ficará fechada por alguns dias".  Imagine o alvoroço, as interpretações, os temores de que o braço militar houvesse chegado à nossa pacata localidade. E chegou! 

      De acordo com o Seo Filhinho, "foram levados pela polícia o chefe político Verano Damas, o Antônio Barbosa, vulgo Antônio da Barra, o Amaro do Bar, o Benedito Livramento, o João Theófilo - vulgo João do Campo - e o Benedito Fragoso - vulgo Filhinho. (...) Em Santos, foram levados à presença de um delegado de cara fechada, voz forte, gestos largos:

    - Vocês, hein, caiçaras de meia-pataca, comunistas! Vocês ao menos sabem o que é ser comunista?

    - Mas nós, doutor, não somos comunistas... - atreveu-se interromper um deles. Nós somos veranistas...

      - Veranistas?! Cínicos e atrevidos é o que vocês são! Ainda têm a coragem de vir aqui com essas caras deslavadas dizer-me que são veranistas?

     - É sim, doutor. Nós somos aqui do grupo do Verano... Somos veranistas...

  No dia seguinte seriam recambiados a Ubatuba".


   É isto: cultivemos também as tristes memórias políticas para que elas não voltem a acontecer. Ninguém merece retornar à escuridão, ser direcionado, reduzido a um reles analfabeto político. 

   Feliz daquele que teve a oportunidade de se acomodar na Praça da Matriz e ouvir as prosas do Seo Filhinho!

sexta-feira, 5 de abril de 2024

HOUVE UM TEMPO...

 

Caminhos no mar - Arquivo JRS

     Houve um tempo em que grande parte da riqueza produzida nas cercanias, desde o Sul de Minas até o Vale do Paraíba e adjacências, saiam pelo porto desta cidade (Ubatuba), sobretudo aquela relacionada ao contexto da mineração e da cafeicultura. O governo provincial garantia um controle fiscalizador para evitar evasão de taxas. Na rotatória da referida cidade, onde atualmente se encontra a estátua do pescador, estava localizado o primeiro posto de controle; subindo a serra, quase chegando em Taubaté, no atual Bairro do Registro, ficava outro. No acesso para Passa Quatro, indo para os sertões das Minas Gerais, controle maior se fazia necessário. Para isso, a via (que passava por São Luiz do Paraitinga e ganhava o interior) precisava estar sempre recebendo melhorias para não perder a devida movimentação portuária na localidade litorânea. No livro de Registro de Correspondência da Câmara Municipal de Ubatuba aparece a reclamação dos vereadores contra o município vizinho que não cumpre com a obrigação de cuidar da via em seu território. Isto no ano de 1838. Era notório que os interessados (fazendeiros e comerciantes que utilizavam o acesso à saída marítima) não podiam ter outra saída, deixarem de garantir os lucros que movimentavam a vida da sociedade ubatubense. Mas...segundo a farta documentação, a coisa desandou. A movimentação foi se dirigindo a outros acessos. Exemplos: Paraibuna e Paraty. Tem um trecho documentado que deixa bem claro a afirmação da Estrada Real no território fluminense: 

"Pouco a pouco derivando as tropas que se dirigem a este já florescente porto vai se encaminhando para Parati, que como é sabido, vantajosamente seus habitantes sob a proteção do Governo, vão pondo suas estradas no maior grau de perfeição, enfraquecendo e diminuindo por consequência o produto das Rendas Nacionais..."

quarta-feira, 3 de abril de 2024

DOCUMENTOS A SEREM MOSTRADOS

 

Casarão - Arte da Adriana na Toninhas

     Neste blog eu já escrevi a respeito de diversas ruínas de fazendas que tive oportunidade de conhecer em Ubatuba, desde a mais famosa (do capitão Romualdo/Estevené, na Lagoinha) até a desaparecida dos Antunes de Sá na Caçandoca. Porém, tenho consciência de que  outras ainda nem foram tiradas do mato. Pressinto que, nessa onda de invasões de posses antigas e até mesmo de destruição da mata nativa, corre-se o risco de mais documentos desse município sejam destruídos.

   Eu tenho as ruínas como documentos, como provas de um outro tempo. Dias desses, passando pela Estação Experimental, na rodovia Oswaldo Cruz, pensei na capela na beira da estrada, onde outrora abrigava um cemitério de escravizados. Isso mesmo! Antigamente, as pessoas brancas eram sepultadas na cidade, mas os negros que produziam as riquezas jaziam em terrenos reservados nas fazendas. Na mata da Raposa, no morro da Lagoinha e em outros sítios, trabalhadores e trabalhadoras tinham o seu descanso eterno.

   Se tinha escravizados, tinha fazendas, era produzida riqueza. Prova disso era o casario no centro da cidade que, infelizmente, somente os mais idosos podem se recordar, pois não houve preservação para a posteridade. A cana, no século XVIII, foi intensamente  cultivada, principalmente para a produção de aguardente. Um golpe à economia local veio por uma medida governamental, do governador Bernardo José de Lorena, obrigando os produtos serem negociados apenas no porto de Santos. Mais tarde, na fase cafeeira, um ressurgimento econômico anima a população. Pelo porto dessa cidade, grandes carregamentos garantem patamares extraordinários. No biênio 1835/1836, Ubatuba desponta como maior exportador de café do país, conforme os dados fornecidos por Afonso Taunay. É, sobretudo nessa época, que  despontam as grandes fazendas. As ruínas são as provas. Portanto, deveria ser de interesse histórico e econômico (turístico) o mapeamento desses vestígios, os tombamentos dessas áreas e um redirecionamento, inclusive na área da educação escolar. Somente tais medidas preservariam esses tesouros tão destratados até então. São documentos a serem mostrados.

segunda-feira, 1 de abril de 2024

HISTÓRIA DO BRASIL


Europeus no litoral - Arquivo Hans Staden


    Os europeus, desde a invasão em 1500, se aventuraram nas terras até então ocupadas pela imensa diversidade de etnias indígenas. Logo viram que era uma enorme porção de terra este território que é o Brasil. E tinha uma potencial riqueza! Não demorou nada para este chão se encher de gente dos mais diversos países da Europa. Em Ubatuba, já no início, a extração de madeira, sobretudo pau brasil, deu início à devastação e escravização/perseguição dos indígenas. De pouco adiantou a Confederação dos Tamoios para tentar resistir aos invasores. Benedito Prezia, numa palestra a partir do seu livro Esta terra tinha dono, diz que o último grupo tupinambá acossado proveniente do litoral norte foi registrado no Vale do Paraíba, em meados do século XVIII, quando Ubatuba já abrigava até fazendas. Seo Filhinho, em Ubatuba documentário, registra o caso policial envolvendo um francês, provando que estrangeiros se apoderaram e fizeram o que quiseram. Tudo pelo lucro fácil, às custas dos pobres. Eis o fato:

  "Ainda hoje são encontrados por aqui vestígios e ruínas de fazendas instaladas nas planícies, no recôncavo das baías e enseadas, e até o aproveitamento das inúmeras ilhas que defrontam o território do Município.

   Haja vista que, em 1785, o Juiz Ordinário e de Órfãos Alferes Manoel Álvares de Moura e seu escrivão João Batista dos Santos, dirigiram-se à Ilha Comprida (localizada em frente à baía da Pecinguaba, e que se avista a cidade) e lá procederam o sequestro dos bens que ficaram por morte do francês Jean Baptiste Raton, que sua mulher Josefa Maria mandou matar e fugiu com o matador, como consta à página 109 do volume LXIII de Documentos Interessantes, editado pelo Instituto Histórico e Geográfico de São Paulo (Arquivo do Estado)

   Lá na ilha, aos 6 de setembro de 1785 o Juiz Álvares de Moura nomeou João Luiz de Morais, genro do malogrado francês, inventariante e depositário dos bens do espólio, ordenando que  'nomeasse, apresentasse  e declarasse todos os bens móveis e de raiz que haviam ficado, como fossem: dinheiro, ouro, prata, escravos, casas, terras, dívidas e heranças que se lhe devessem a ele'. Vê-se, portanto, que devia ser considerável a propriedade e razoável a fortuna de Jean Raton, na área confinada da Ilha Comprida". 

   Pois é. Essa história se passava ao mesmo tempo em que o povo originário daqui fora escorraçado, caçado até o Vale do Paraíba. Só que eu nunca aprendi e nem refleti coisa assim na escola. É pensando nisso, nas inúmeras injustiças, que precisamos de uma Educação que "ponha o dedo na ferida", não deixe a verdade de fora dos espaços de estudos. Abril começa hoje. Há sessenta anos acontecia o Golpe encabeçado pelos militares que durou  vinte e um anos. (Recentemente eles planejaram outro igual). Vivi na pele essa fase histórica, acompanhando algumas vezes o meu pai às reuniões para discutir problemas locais, coisas dos caiçaras. Eram poucos os que participavam devido ao medo que esse período da História do Brasil impunha. Ainda hoje são poucos mestres e mestras que têm coragem em fazer refletir a esse respeito, promover o amadurecer da democracia. Eu duvido que as ditas escolas militares ousarão, dirão a verdade, os reais interesses nesse tema. Democracia é coisa perigosa, pode alterar a ordem que aí está.