Vô Estevan e o mano Guinho - Arquivo JRS |
Meu avô Estevan contava histórias. Nunca me esquecerei das tardes, apreciando o mar, eu e mais pessoas se postando ao lado dele para escutar as empolgantes narrativas. Criado pela casa dos outros devido a morte precoce dos pais, não sei dizer como ele aprendeu tanta coisa, tinha na memória tantas narrativas fantasiosas, de causos e fatos. Desconfio que eu herdei um pouco desse espírito dele.
Dos fatos históricos, sobretudo do território da Caçandoca, onde nasceu o querido vovô, mais tarde, escutando os moradores mais antigos, eu pude confirmar muitas passagens das narrativas dele. Histórias de negros eu escutei muitas. Hoje, relendo um documento de 1834, falarei a respeito do tráfico negreiro em Ubatuba, nas terras da Caçandoca e adjacências. Creio que ajudará muita gente a conhecer um pouco mais da nossa história, rever posicionamentos ideológicos, além de pretender fomentar o turismo cultural nesse município litorâneo. O ponto de partida é o Caminho da Ruindade, como os mais velhos a chamavam. Ela ainda faz a ligação entre o litoral e a Serra Acima! Originalmente ele partia do Saco das Bananas, atravessava o Sertão da Quina e chegava na Vargem Grande, no município vizinho de Natividade da Serra. Era por esse caminho que se fazia a condução dos negros escravizados para a venda no "planalto" (Vale do Paraíba, Sul de Minas etc.), escapando das autoridades, principalmente a fiscalizadora e cobradora de taxas. (Lembremos que, em Ubatuba, a Casa de Barreira ficava onde atualmente está a estátua do Pescador, na rotatória de acesso à rodovia Oswaldo Cruz). Pelo mesmo caminho, na serra íngreme, passavam produtos e pessoas. Foi por ele que muitos caipiras vieram se juntar aos caiçaras, se miscigenaram e expandiram nossas raízes culturais, se enriqueceram mutuamente nos diversos bairros (Corcovado, Sertão da Quina, Maranduba...). Mas vamos ao documento. Trata-se do Conselho de Governo, uma espécie de Congresso Nacional da época, se dirigindo à Câmara Municipal:
Por mui circunstanciadas informações e documentos autênticos, a omissão do Juiz de Paz e Suplente dessa Vila no cumprimento de seus deveres e execução da Lei, sobre a introdução de escravos africanos que se tem realizado por diversos pontos do Distrito dessa Vila, no entretanto, que o dito Juiz asseverava ao Governo que nenhum indício havia de semelhante crime, aliás de notoriedade pública, e tanto que dois dos referidos escravos, evadindo-se do lugar em que se achavam retidos, foram apresentar-se a bordo da Escuna FLUMINENSE, que cruzava na costa por ordem do mesmo Governo e fizeram conhecer ao comandante que na Enseada do Bananal [Saco das Bananas] existia grande número deles (...). E sendo, portanto, ambos [Juiz e Suplente] na forma da Lei solidariamente responsáveis, o referido Conselho os suspendeu no exercício do cargo de Juiz de Paz para responderem em Juízo competente por uma tão criminosa omissão no cumprimento de seus deveres e observância da Lei.
Portanto, Ubatuba foi sim um ponto dessa vergonhosa criação que é a escravização humana, dos africanos. Muitas das autoridades constituídas fizeram o que puderam para continuação dessa vergonhosa página da nossa História. Nos dias atuais vemos uma tendência reacionária muito forte na política brasileira atuando para retirar as conquistas trabalhistas, negar os direitos humanos, exterminar os povos originários, perseguir as minorias sociais etc. Tudo isto não é uma versão atual do Caminho da Ruindade?
Em tempo: o Caminho da Ruindade hoje é a Trilha do Campo que liga o Sertão da Quina à Vargem Grande. É de difícil acesso, mas continua lá. Tudo lindo por lá!
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