segunda-feira, 22 de março de 2021

O DESAFIO DE UMA IDEIA ORIGINAL

 

Embarque de banana dos caiçaras (Arquivo S. Sebastião)

    Hoje, muitos de nós pobres, de ideias não originais, são contrários às medidas que visam diminuir as desigualdades sociais. Está provado que uma minoria sempre viveu às custas do sofrimento da maioria das pessoas neste Brasil. Foi assim nos primórdios, quando gente lusitana marginalizada foi deslocada para esta terra, habitada pelas muitas etnias indígenas. O trabalho desses primeiros servidores era desbravar a mata e abrir espaço para a fundação de vilas. Pouco importava se eles morreriam ou não distante da pátria-mãe.  Amansada a terra, os senhores de melhores condições receberam porções do território, se tornaram fundadores. A escravização dos nativos, depois de verdadeiro genocídio, cedeu lugar à escravização dos africanos. Do outro lado do Atlântico, milhões foram embarcados, milhões morreram no mar e milhões chegaram aqui como mercadoria humana de muito valor, que deu origem a riquezas e nobrezas que perduram até os dias de hoje. Os pobres, sobretudo os negros, não precisavam de dignidade. E muita gente, inclusive pobres caiçaras, continuam pensando assim! Mas de onde vem essas ideias? Elas não são originais! Construir um esquema de pensamento que mantenha o pobre culpado pela sua pobreza é elaboração da minoria que domina. Pior: hoje em dia, encantados pela tecnologia dos celulares e computadores, a minha gente abraça e se devota a ser divulgadora de mensagens que tem o objetivo maior de manter os pobres conformados, capazes de se matarem em defesa dos poderosos. É vida de rebanho conformado, indo para o matadouro.

      A intenção explícita da ideologia dominante é manter os trabalhadores sob controle. Com certeza que as chances dos herdeiros dos exilados lusitanos, dos remanescentes indígenas e dos afrodescendentes são cruéis. Jogam descalços contra gente de pés enfiados nas melhores chuteiras, não precisam estudar, mas apenas trabalhar, gerar lucro ao patrão. Não tem de compreender a engrenagem capitalista, mas defendê-la com a própria vida como coisa maravilhosa.

     Comecei este texto após ler o seguinte documento de Ana Luíza Marcílio:

A condição de alforriado era uma situação pouco frequente em Ubatuba. Certamente, as barreiras que estes libertos encontravam para seu ajustamento na categoria dos livres criavam outras sortes de problemas para sua vida normal, em família. Ana de Souza, por exemplo, era uma parda forra, analfabeta, que chegou da vida de Santos, com a idade de 25 anos e solteira. Em Ubatuba ela só consegue sobreviver, no início, com trabalhinhos temporários (em 1798 como costureira, e em 1799 como lavadeira). Só em 1801 chega a estabelecer-se e a viver em sua pequena roça, mas sempre produzindo quase tão-somente para seu próprio sustento. Solteira, teve oito filhos, dos quais sete morreram ainda crianças. Só lhe restou Jozé, que se casou muito jovem. Mesmo sozinha, Ana conseguiu sobreviver com sua pequena plantação. Outra parda alforriada, Bárbara Maria da Silva, mostra com sua vida as dificuldades enfrentadas pelas mulheres libertas. Sem conseguir se casar, teve sete filhos, entre 1792 e 1803, quando morreu, aos 39 anos. Roceira, foi a ajuda de seus filhos, todos forros, que lhe permitiu uma existência miserável. Ela tentou viver de favor com outra família, mas só ficou aí dois anos. As possibilidades de casamento eram maiores para as pessoas de cor branca e menores para as negras, dentro do estrato livre da população.

    Por fim me perguntei em quantos de nós, caiçaras deste chão ubatubano, certamente temos gente assim (exilados/degredados lusitanos, indígenas e africanos) na base de nossas árvores genealógicas? Acho que todos! E quantos de nós, criados com farinha, peixe e banana, assumimos a fala de quem, desde aquele tempo tão miserável, vive se aproveitando de nossa gente?

   Que tal rever nossos pensamentos, nossas concepções, nossas razões de viver neste outro tempo tão miserável? Que tal pensar num mundo de mais justiça e de amor? Que tal deixar morrer às míngua, não alimentar o discurso de ódio atual?


  

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