Dona Virgínia (Imagem Antiga) |
Eu estava vidrado no livro Torto Arado, do geógrafo baiano Itamar Vieira Júnior, quando me deparei neste trecho:
Zezé ajudou a carregar o barro do rio, a cortar estacas para a forquilha e parede, Via como um encanto uma casa nascer da própria terra, do mesmo barro em que, se lançássemos sementes, veríamos brotar o alimento. Quantas vezes havia visto aquele ritual de construir e desmanchar casas, e ainda me maravilhar ao ver se levantar as paredes que seriam nosso abrigo.
É uma narrativa familiar, pelo menos aos caiçaras da minha geração, criados nas comunidades isoladas, com mínimos recursos, longe do centro urbano. Em seguida, visitando as páginas do Núcleo de Documentação do Colégio Dominique, achei um texto da Virgínia Lefèvre, reproduzido da revista Américas (Volume VIII, Número 3, Março de 1956).
Muitas recordações me vieram à mente, pois eu a conheci em 1980, durante o Censo Demográfico. Em sua casa, ali defronte ao Canto do Acaraú, logo depois da área dos Alexandrinos, eu passei quase que uma tarde inteira escutando aquela senhora. Deduzi que era naquela paz doméstica o lugar onde, em outros tempos, ela se refazia e retornava para as jornadas de trabalhos humanitários às famílias caiçaras de Ubatuba. Disse-me na ocasião que quem se encantou primeiro pelo nosso chão foi o seu marido que para cá veio num trabalho de pesquisa ambiental. Até um livro ganhei de presente naquela tarde distante. Algum tempo depois, em 1987, ela faleceu em Atibaia, uma cidade do interior. Mais tarde a sua antiga moradia abrigou uma pousada (ou hotel?), tenho a impressão que hoje é uma marina. É, conforme já disse alguém, "os anjos passam em nossas vidas". Então resolvi que iria dar a conhecer o texto da Dona Virgínia a mais gente através deste blog. Enviei mensagem; o Colégio Dominique me respondeu com muita satisfação. Assim, irei dividi-lo em partes para maior tranquilidade de quem lê no espírito de revisitar nossa história e nossos embates em busca de aperfeiçoar a civilização.
VIDA NOVA PARA OS CAIÇARAS - VIRGÍNIA LEFÈVRE
UMA BRASILEIRA
ALTRUÍSTA DESPERTA SEUS PATRÍCIOS
Escola da praia da Almada |
Foi um choque para mim descobrir, há
dez anos, o abandono em que se achava o litoral norte de São Paulo.
Acompanhando meu marido, que é diretor do Instituto Geográfico e Geológico, eu
entrara na mata, onde faziam levantamentos para fixação de divisas entre os
Estados de São Paulo e Rio de Janeiro. A montanha chegava quase à beira da
praia, que se espichava sem fim. Nesse cenário belo e grandioso, a população
vivia em regime de fome, morando em casebres de pau barrado, cobertos de sapé,
com uma esteira à guisa de cama, um banco tosco, um fogão de três pedras sobre
as quais se equilibrava a única panela (muitas vezes de lata). Era essa gente
que havíamos apelidado de caiçaras. A verdade, porém, é que Ubatuba, o
principal centro da zona, cuja população de hoje orça pelos 1.500, já fora mais
importante que Santos. Seu nome, no idioma tupi, significa local onde há
abundância de caniços próprios para flechas. Fundada em 1600, dentro em breve
tornou-se centro exportador e importador não só para a zona do Vale do Paraíba
como para o interior de Minas. Os produtos de exportação desciam a serra em
lombo de burro e as pedras de cantaria, seda, sal, louças e outras importações
subiam do mesmo modo. Ubatuba tinha sua própria frota de barcos que faziam
cabotagem até o Rio da Prata ou Pernambuco, levando os produtos dos engenhos de
açúcar, das serrarias e das olarias que ali abundavam. O ouro de Minas Gerais
seguia de caravela para Lisboa. Diversos foram os flibusteiros ou traficantes
franceses ou ingleses que ali resolveram estabelecer-se ou, naufragados na
costa, acabavam ficando. Muitos dos atuais caiçaras ainda exibem nomes e traços
fisionômicos que denotam esse legado racial, de mistura com sua herança índia,
negra e portuguesa.
Muito importante e belo relato de Dona Virgínia. Porém o correto é Lefevre.
ResponderExcluirAgradeço muito pela observação. Foi falta de atenção da minha parte mesmo! Um abraço.
ResponderExcluir