quarta-feira, 23 de dezembro de 2020

REIS NO MORRO

 

Reis do Oriente (Arquivo JRS)

    Quando recebemos a notícia que os americanos chegaram na Lua, nós já morávamos na praia da Fortaleza, terra da minha mãe. Meu pai decidiu fazer a casa no morro, lá no alto, de onde enxergava o mar. Toninho Caipira, que desposou a Zilda do tio Maneco, foi além: construiu o abrigo para a família no Morro da Anta, três ou quatro vezes mais distante que nós, num ponto mais alto ainda. Parece que desafiava o papai: “Olhais lá, Girdo. Tais vendo o Morro do Tatu, onde teu sogro tem roça? Logo vem o Morro da Anta, posse do seo Maneco. É o derradeiro. Depois já desce para a Lagoinha. Lá farei a minha casa. Posso contar com a tua ajuda?”.

     Toninho Caipira, quando eu nem existia, veio da Vargem Grande trabalhar nos bananais. Aqui se casou, teve filhos... Se ligou ao mar. Nunca mais voltou ao seu chão de origem. Certa vez foi depor como testemunha numa questão de terra a favor do tio Maneco. Ao ser inquirido pelo juiz a respeito da família do litigante, do tronco familiar (pais, irmãos etc.), ele, nervoso como a maioria que precisa comparecer diante uma autoridade, esclareceu assim: “Eu sei muito bem do tronco. Conheço sim, doutor. É lá, um pouco para baixo, que construí a minha moradia. Depois dele é terra de outra gente. Ele fica depois do rio, todo majestoso; dá bem uma canoa de seis palmos de boca e gamelas a se perder na conta.  É tronco de respeito, um velho tarumã. Nesta época está vermelhinho de frutas, com a passarinhada fazendo festa”. Não valeu este depoimento.

     Mamãe morria de dó da prima Zilda porque era muito morro para subir. De vez em quando ela e as crianças, todas pequenas, passavam pelo terreiro de casa. Paravam para descansar, tomar água e prosear um pouco debaixo da nossa grande aroeira. Afinal, eram duas mulheres do morro. Nós ainda estávamos perto do tio Dário, mas eles não tinham ninguém na vizinhança. Mamãe dizia que nunca moraria naquelas alturas: “É lugar de onça. Cruz credo!”.

      Logo o mato do entorno deles clareou. A terra foi descoivarada (limpeza de troncos, raízes  e galhos da coivara). Lá eles cultivavam feijão, mandioca, milho, cará e mais coisas. Nada era vendido, mas servia de troca para quase tudo, pois pobre era todo mundo no nosso chão. Numa época assim de Natal, na madrugada, chegou a turma do Reisado em nossa porta. Fizeram a cantoria. A noite estava toda estrelada. Eram tios e outros parentes que cumpriam a tradição de cantar a história do menino Jesus. Desciam do Morro da Anta. Toninho, Zilda e as crianças, assim como nós, também foram agraciados por esse auto de fé herdado dos antigos.

               "Viva os Santos Reis!" era a salva de despedida morro abaixo. Do terreiro, sob o céu estrelado, a gente continuou ouvindo os ponteados dos instrumentos até tudo silenciar novamente.


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