quinta-feira, 24 de dezembro de 2020

QUANTAS COISAS TEM UM VARAL?

Umas artes em casa (Arquivo JRS)

     Na semana que passou recebi e li o livro Crônicas do varal da casa ao lado, de Luiz Andrioli. Só o título já é inspirador, não é mesmo?

       Logo na apresentação, o autor larga a citação: "É bem verdade: escrevemos nossa história com um tanto de mentira e outro, de realidade". É a velha máxima de quem conta um conto aumenta um ponto.

     No meu entorno tem um mecânico francês, um professor marceneiro, um cidadão do trabalho pesado, um mineiro que vende queijo assado na praia e um pastor caipira que se aproveita da bondade, ignorância e ingenuidade das pessoas. Em qual varal devo me inspirar?

     Comecei lendo a citada obra sob ponteado de uma viola caipira. "Quanta alegria, quanto prazer/ A casa é sua, pode chegar/ Meus braços vão te abraçar". Vieram recordações. Em 1990 eu trabalhei na capital paranaense, fazendo um serviço de pedreiro no bairro Pinheirinho, na casa do Velho Mingo. Era julho, tempo de muito frio, mas meu coração se manteve aquecido com tantas boas amizades (Nelson, Lauro, Zé, Elídia, Renato...). Aproveitei alguns bailes no Centro de Tradições Gaúchas mais próximo de onde eu estava. E o que dizer das rodadas de mate, de pinhão assado e das boas prosas a cada serão? Ah! Fui numa festa maravilhosa, da comunidade ucraniana, no teatro São José. Linda demais!

      A casa do Velho Mingo, assim como muitas dos arredores, era de madeira, construída sobre pequenas pilastras, longe do chão. Debaixo de um cobertor de pena de ganso, depois de uma madrugada de geada, ele explicou: "Ela refresca no tempo quente e aquece no inverno". Grande novidade para quem chegava do litoral paulista. Adorei o aconchego delas! Não teve como não me identificar com Luiz Andrioli que assim grafou:

     Eu gosto de observar essas casas antigas de madeira que insistem em sobreviver no meio do concreto vertical. Eu as chamo de "fora do contexto". Elas parecem contar uma história de um tempo que já passou e que hoje é abafado pela grandiosidade dos prédios que lhes fazem sombras. O muro dessas casinhas protege o que não pode ser roubado: são cofres cheios de lembranças.

     Hoje, em Ubatuba, quase não reconheço os lugares da minha meninice e da minha juventude. Quem sofre mais é a natureza. Aquelas vivências agora não são possíveis porque a cidade cresce, vive em função do lucro fácil para uma minoria. A maioria vive das sobras que caem das mesas. Outro tanto rói só os ossos jogados. Prédios invadem tudo, soltando seus esgotos no mar. Contribui, para piorar o quadro, as muitas mentalidades populares que abraçam a causa da ignorância, do discurso do ódio e da alegria aparente. Rubem Alves alertou a esse respeito: "Ostra feliz não produz pérolas".

     Nessas festas de final de ano tenhamos, de forma contextualizada, a observação do autor de Crônicas do varal da casa ao lado: "O prédio é a cidade que cresce. A casa de madeira é a cidade que permanece". O que isto nos diz?

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