Cabe mais um? (Arquivo UBA-Antiga) |
Santiago Bernardes, em seu Caderno de águas ou As marés de histórias nos apresenta Paulo como personagem a nos permitir reflexões a respeito do uso da fala e da escuta. Em tempo de tantas desavenças pelo mal uso das palavras e pela ganância que nos leva a atender somente a superficialidade de tudo, pensemos nos rumos que, de fato, nos darão vida em abundância. A comunidade surgida entre a serra e o mar, os mais pobres que vivem primeiro o agora, as coisas simples, a natureza e todos os seres dependem da comunicação verdadeira, semente de libertação. Que este tempo de festa seja realmente de festa, de reencontros com os nossos ideais!
Paulo encantava-se na fala. Dizia as
orações aos que partiam, benzia os que chegavam. A palavra andava com ele como
a roupa ao corpo, mas não gastava, não desbotava como o tecido, renovava, no
calor de uma rede de varanda ela descansava com o sono do mar dele. E trazia o
mar nos gestos, nos modos de narrar o sucedido, de passar adiante o que
aprendera dos contadores e cantadores antepassados. As novenas, as ladainhas,
as simpatias, os causos habitavam a língua do homem que pescava palavras como
quem caminha distraído pelas ruas de areia e de terra numa tarde de janelas
abertas na praça, domingos de missa e luz de lampião.
Irmão e filho da palavra, Paulo amanhecia no mar de histórias da canoa
paterna que ia e vinha dos longes e dos mistérios de ilhas, peixes, mundos de
água e de sonhos que o tempo dos homens não abarca em tão pequenas vidas soltas
na imensidão de sol e de horizonte. Fustigadas pelo sal dos anos. Amarelecidas
em retratos familiares nas paredes de barro das velhas casas caiçaras do antes
do tempo.
Paulo irmanou-se a ilha em que foi parar.
Emudeceu as falas. Passou a falar com os olhos e ouvidos com tudo do ao redor e
mais ouvia do que falava
Aprendeu a ouvir os direcionamentos dos ventos e seus desrumos que carregam barcos e vidas ao largo dos mundos e esparramam almas nas entranhas das cavernas de corais e por entre as névoas vagantes das noites. Onde os faróis da costa não alcançam. Onde as bússolas não apontam e os remos não vencem.
Conheceu os murmúrios mínimos de água brotando de rochas nas grotas do chão, entre raízes e sapos, aprendeu os caminhos de água doce para a sede diária de gente. Aprendeu as folhas e frutos que a boca podia sorver sem travo, sem medo. Com o que de resto de naufrágios encontrados na praia fez coisas, madeiras antigas navegadas, cordas encarquilhadas, caixas, garrafas... Encontrou um livro, secou, o sal amarelou as páginas, a data, as palavras. Escreveu na areia as pegadas de ir à pesca conversar com a busca dos peixes. Ele que fazia sermões ao vento, guardou as palavras no bolso do pensamento e passou a só ouvir. Tudo ao redor que fala.
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