Cobra na cruz (Arquivo JRS) |
Hoje, Tião vive de sucata: recolhe e entrega para um atravessador que ganha muito dinheiro com esse comércio, até já construiu um medonho galpão na beira da estrada . Esse parente faz tempo que mora no Pé da Serra, mas é natural da Caçandoca. Lá, divisando com a posse do meu bisavô Francisco Félix, era a terra do pessoal dele por parte de pai. Temos a mesma idade. Gosto de tê-lo sempre para um café com prosa. Outro que faz parte da nossa companhia é o Dito, gente da Vargem Grande, que veio criança para Ubatuba. Me delicio com as histórias deles, mas também tenho uns causos para contar a cada ocasião dessas. Na verdade, todos sentimos falta desses momentos, dessas rodas de conversas. Quem não gosta de prosa boa?!
De vez em
quando o Tião puxa um causo de família, uma história real ou uma de suas
esplêndidas percepções e reflexões. Ontem o assunto foi a Mardita, ainda
parente nossa por parte dos Amorim:
“Sabe quem apareceu ontem na capela? A
Mardita! Sim, ela mesma! Depois da reza ela viu que a gente estava em reunião e
veio com um papo furado, de quem está querendo se mostrar que não votou nesse
governante que aí está. Foi logo dizendo: ‘Assim que aparecer a
vacina eu sou das primeiras a querer. Ninguém merece esse presidente que agora
faz campanha contra a vacinação’. Nós só escutamos. Quem não sabe que ela votou
nesse ser que saiu de algum esgoto? Não demos trela porque gente falsa precisa
se tocar que somos pobres, mas temos capacidade de enxergar bem o rumo das coisas. Basta querer. Lembrei-me do meu finado avô,
Isidoro da Conceição, que se dizia
católico, mas eu nunca soube que algum dia ele frequentou alguma igreja.
Quando perguntei respeito disto, minha
mãe me deu a seguinte razão: ‘Foi um homem de bons princípios o seu finado avô. Ele se
revoltou, deixou de ir em igreja quando eu nem era casada ainda. A gota d’água
foi uma traição praticada por gente da própria família. Disse que não suportava
mais gente preconceituosa, intolerante, se comprazendo em fuxicar na vida dos outros, de querer fazer maldade sempre, mas que se ajoelhava piedosamente na mesma igreja que ele, que tinha fé no
mesmo Cristo. Segundo ele, pessoa assim
é cobra que dorme na cruz. Foi isso, meu filho, que resultou na atitude do seu
avô. Caiçara honrado como ele ainda estou para ver!’ ”.
O Dito, sempre atento a tudo, completou: “Parece que essa
história do seu avô é a mesma que você está vivendo agora. A Mardita, apesar de
ser parente de vocês, é aquela que procede de igual maneira. Ontem mesmo ela se
ajoelhou na mesma capela que você frequenta, não foi? Você duvida, Tião, que agora, neste momento, bem cedo
ainda, como é seu costume, ela não esteja na sua especialidade, destilando
veneno por aí? O seu avô, se vivesse hoje, não tomaria a mesma atitude
explicada pela sua mãe?”. Tião concordou: “Ah, Mardita! Ela é cobra na cruz!". Eu já tinha pensado a mesma coisa.
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