Rancho dos pescadores no Itaguá (Arquivo JRS) |
Bem cedo escuto gente chegando. É o Dito Preto, o pedreiro. "Pelo rumor do chinelo arrastando, eu já desconfiava que era você. Tudo bem?". Balançou a cabeça como se dissesse "vou levando". "O que manda, Dito?". Perguntei por perguntar, pois já conhecia o seu ritual, bem como de mais alguns da mesma turma que guardava a segunda-feira como "Dia de São Risal" por causa da ressaca do fim de semana. "Dá uma cangibrina aí, Zezinho. E vê se não regula; deixa o anel alcançar a borda". Servi imediatamente da Riopedrense, a sua preferida, tentando adivinhar quem entraria depois. Seguindo o de costume, Sapato Branco chegou tossindo como sempre, mas sem largar da bituca de cigarro. "Eu quero daquela branquinha de Paraibuna, dessa carga última trazida pelo Ismael".
Ismael era caminhoneiro, vivia nas estradas, na maioria das vezes trazendo material para o depósito Itajá, do Xarazinho. Se casou por ali mesmo, com gente da praia. Não demorou nada para ele e uma das filhas do Antônio Julião acolherem os lindos rebentos. A propósito, Antônio Julião, já idoso, era o único que destoava dessa turma madrugadeira, a ansiar pelo primeiro gole como oração de mais um dia, mas também estava logo cedo por ali, assim que voltava da praia, de ver a chegada de quem largou tresmalho. Bebia o seu aperitivo conversando com quem estivesse no recinto. De acordo com Sapato Branco, era o "Momento de sabedoria do caiçara".
O velho caiçara tinha o hábito de só pescar na parte da tarde, depois da madorna do almoço. Me explicou um dia: "Meu pai também era assim, aprendi dele. Dizia que os peixes procuram se alimentar na tarde até o serão para passarem a noite em sossego. Me ensinou que vento bravo vem na virada do dia, pegando quem já está no mar. Assim, a garantia melhor é de ir pescar na parte da tarde". Seguindo essa crença, ele deixou esta terra embarcado em sua canoinha. Parece que sofreu um ataque do coração enquanto estava pescando ao léu no largo. Alguém avistou a sua canoa largada, quase batendo na costeira da Enseada: dentro descansava, ainda com a linhada enrolada no dedo, o Mestre Antônio Julião. Desse modo, como se tivesse escolhido a canoa como caixão, esse caiçara, fazedor de canoa, viúvo bem cedo de Joana Cabral, nos deixou na terra boiando na água. Era tarde de mar parado, sem vento nem para soprar pena de gaivota na superfície. O pai dele estava certo. Era uma linda tarde, quase serão, sem vento algum. Logo depois, em outro "Dia de São Risal", depois da oferta para o santo e de dar a primeira saboreada estalando a língua, Dito Preto se lastimou: "Que falta do seo Antônio! Agora quem vai chegar mancando e pedir um cynar escuro para destoar da gente que só bebe desta branquinha? Quem vai nos deixar uma lição logo cedo, no começo do dia? É, Zezinho, perdemos também o nosso momento de sabedoria".
Esclarecendo: eu passei quatro anos trabalhando nesse ambiente (bar), conheci muita gente, fiz amizades que perduram até os dias atuais. Tempos atrás, em prosa com o Cristino, o primogênito do Dito Santos, escutei isto: "Depois que você deixou de trabalhar lá, aquilo faliu. Você fazia a diferença no atendimento, dava atenção a todos". Fico feliz. Eu só tenho a agradecer por tamanho reconhecimento desse pessoal que fez parte da minha adolescência. Aprendi muito com a grande diversidade de pessoas naquele ambiente.
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