domingo, 30 de setembro de 2012

FANDANGANDO


Cartaz confeccionado pelos alunos do Rogério Estevenel

                O professor caiçara Rogério Estevenel, neto da dona Gertrudes, natural da Praia das Toninhas,  tem-se dedicado a divulgar o Fandango Caiçara por onde anda. Em diversas ocasiões eu pude acompanhá-lo nessa empreitada. E sabe que o danado tem jeito mesmo!? Se estivesse no tempo antigo, diriam que ele “é de quebrar tamanco no fandango”.

                No mês de agosto ele desenvolveu uma Oficina de Fandango com adolescentes na escola do Saco da Ribeira.  Adoro ver como ele incorpora o papel de Mestre de Fandango. Os alunos também se envolvem muito, se divertem com a dança que é novidade, que destoa muito daquilo que faz parte do cotidiano deles. Concluíram com uma apresentação na quadra para toda a comunidade. Parabéns a todos!

                Em Ubatuba, os focos dessas danças e folguedos tradicionais são poucos. Eles estão, sobretudo, na porção Norte do município (Prumirim, Sertão do Puruba, Praia Vermelha do Norte). Talvez a justificativa seja devido ao contato tardio com o turismo. Sempre é bom relembrar que a rodovia (BR-101) passou por ali no final da década de 1970, alterando os costumes de subsistência de centenas de anos, onde o conjunto das danças (Ciranda, Cana Verde, Xiba etc.) era um importante componente cultural.

                Tais fandangos constituíam a parte “profana” dos festejos caiçaras, onde as moças e rapazes até se tocavam nas mãos. Desses momentos nasciam as relações permanentes que traziam novos caiçarinhas ao mundo.

                Hoje, percebemos que o município, devido a falta de investimentos culturais, vive uma crise no setor. Não é preciso muito para reverter o quadro. O ensino de tais danças e folguedos, que custaria quase nada, seria uma alternativa de superação. E, num futuro bem próximo, retomar uma identidade capaz de gerar muitos dividendos em eventos de Norte a Sul, dando destaque àquelas comunidades que se seguraram até agora fandangando.

                Isto eu chamo de apostar numa síntese das culturas caiçara e migrantes. O Rogério, o Julinho, o Dito Fernandes e mais alguns caiçaras têm muito a nos ajudar nisto.

sexta-feira, 28 de setembro de 2012

NÃO SE TRATA DE APENAS UM CAFÉ


Vovô Estevan e Guinho. Detalhe: segurando um copo de café.
                Todos os caiçaras da minha geração, que moravam fora da realidade dos lotes do centro da cidade, conviveram com alguns pés de café em volta da casa. Eles garantiam a prazerosa bebida do dia a dia.
                Lembro-me bem de ajudar a vó Eugênia a recolher as frutas vermelhinhas nos galhos, sempre escutando a advertência de “cuidado com cobras” e “não desperdice caroço pelo chão”. Depois ia para a secagem no terreiro, tendo o trabalho de recolher em balaios no fim do dia (para não correr o risco de pegar chuva durante a noite). Dessa faina resultava em grãos secos para ir torrando aos poucos, conforme o uso.

                Todo o preparo final era na cozinha mesmo: primeiro era pilado, depois peneirado e seguia para ser torrado em panela de barro. O cheiro tomava conta dos espaços. Finalmente, após prender um moinho de ferro na borda da grande mesa, acontecia a moagem. Estava pronto o nosso sagrado café.

                Assim como o vinho que, a partir da Grécia, é uma bebida associada à cultura, à arte da conversação e ao diletantismo, o café caiçara tem papel semelhante. Recusar um café é recusar uma boa prosa.

                Uma conversa regada a café torna os participantes como partes de uma mesma família. Daí a recomendação do Nhonhô Almiro: “Não se convida qualquer um para o café”.

                Uma prosa e um café são inseparáveis. Ao escutar a frase “aparece lá em casa para um café”, pode ter uma certeza: existe o desejo de um encontro demorado para uma agradável prosa que vai cimentando amizades. Não se trata de apenas um café.

quinta-feira, 27 de setembro de 2012

HISTÓRIA ENTRE BIJUS


Bica da Bidu: pare e beba escutando a memória caiçara.

                Quando criança, eu não era de muita conversa. Acho que foi porque eu comecei a falar tardiamente, por volta dos quatro anos de idade. Porém, eu tinha a vontade de andar bem ativada. A mamãe me chamava de andejo, batedor de perna, vento noroeste (porque passava rapidamente em todo lugar) etc. Tendo essas marcas registradas eu escutava muitas histórias e conhecia muitos lugares.

                A casa da dona Maria Bidu era um dos pontos mais distantes nas minhas andanças de criança. Eu andava sempre por ali porque brincava com o seu neto Anginho. De vez em quando éramos chamados para tomar café com biju. Naquele tempo o bolo achatado que provinha da goma da mandioca era o nosso pão.

                A gente sentava em mochos (pequenos e baixinhos bancos de madeira), em pedras ou em tocos que sempre tinha por perto, se grudava numa caneca de ágata cheia de café cheiroso e ficava roendo a parte que nos cabia. Nessa hora, aproveitando que os meninos tinham “assentado o rabo”, a vó de Anginho contava coisas que sabia.

                Foi numa dessas ocasiões de merenda que, olhando para o lado da sua praia de origem (Caçandoca), ela falou de algumas festas antigas que aconteciam por perto de casa. Também frisou que todos daquele tempo gostavam de festar, inclusive em outros lugares, mesmo que não fosse perto de onde moravam. Um exemplo: quando ia ter festa na Praia Grande do Bonete, bem distante da Caçandoca, o sinal era feito por fumaça um dia antes. Depois de confirmado o evento, o pessoal do lugar se ajuntava e saía num grande grupo disposto a se divertir. Imagine uma boa quantidade de gente se deslocando quilômetros e quilômetros a pé somente pela busca do prazer. Eles levavam ao menos um tambor. Iam cantando e dançando pelo lagamar e pelos caminhos de servidão. De longe se escutava a empolgação. Mais tarde o Virgílio da Praia Grande confirmou isso tudo. "Essa gente descendente de escravos gosta muito de festa".

                No lugar onde acontecia a festa, no caso do exemplo  da Praia Grande do Bonete, havia uma expectativa crescente conforme aumentava o som das batidas do instrumento. Todos esperavam na praia, no ponto de chegada do caminho. Em seguida eram acolhidos, “repartiam entre si a comidoria e alguns descansavam  para a função na noite”. Era a noite toda de dança. Só depois de clarear o dia era oferecido o café como despedida. Então, novamente o grande grupo retornava à Caçandoca. A dona Maria dizia que parecia até “um monte de bicho de frieira” que se deslocava molemente ao som dos cantos e danças. Conforme as suas palavras, “era nessas ocasiões que a gente namorava bastante”.

                A fotografia que ilustra o texto de hoje (ano de 2012) é da Bica da Bidu. Ela continua saciando os caminhantes do íngreme caminho que liga as praias da Fortaleza e Grande do Bonete. Se você silenciar bem ainda poderá escutar uma voz melodiosa e o som de panelas sendo areadas no tempo d’antes sob a cobertura da mata.

quarta-feira, 26 de setembro de 2012

POBREZA ACOLHEDORA

Hoje, o humilde terreiro caiçara acolheu novamente a Mata Atlântica.  Da casinha... apenas lembranças.

                Muitas pessoas queridas já deixaram a nossa convivência. No entanto, vivem entre nós, em nossas lembranças. Só assim posso aceitar a imortalidade.

                Ontem, juntamente com a mana Ana, recordamos algumas dessas pessoas. Uma delas foi o Anginho, filho do Angelino e da Rosa. Quando criança andava sempre atrás da mãe, mas era comum encontrá-lo na casa da vó Maria Bidu, cuja casinha de pau-a-pique e sapê era no alto do morro, no caminho entre a praias Grande do Bonete e Fortaleza. Era onde de vez em quando eu parava para brincar um pouco, tomar café com biju e escutar as histórias da dona Maria, natural do Sertão da Caçandoca, casada  com Estevan Marcolino, vizinho do vô Estevan Félix.

                Mais tarde, já morando na Praia do Perequê-mirim, reencontramos o Ângelo e sua mãe. Foram tempos difíceis devido ao alcoolismo da mulher. Muitas vezes, sentindo-se desamparado, era em nossa casa que o Anginho tinha acolhida. Para a minha mãe, ele era como um de nós. Por ali ficava quanto quisesse, mas... por amor e compaixão à mãe, ele tornava a segui-la.

                Após o falecimento da Rosa, uma alma bondosa por nome de Zenaide acolheu o adolescente em seu restaurante na Praia da Enseada. Mais tarde, tendo como companheira a Isabel, viveu os seus melhores dias nesta vida. Foi cortando uma árvore que a morte o encontrou há três anos.

                Em minha mente estão: a casinha do alto do morro, os momentos acolhedores que convivemos e as histórias da dona Maria Bidu, de cujo terreiro avistava a região da Caçandoca, do Bonete e toda a Baía da Fortaleza. Visão maravilhosa! Duvida?

terça-feira, 25 de setembro de 2012

NO REINO DA FOLHA SECA


Em 1975 já era possível saber qual seria o futuro do jundu da Praia Dura.

                Por que os caiçaras deixaram o jundu das praias e foram morar nos sertões, longe do mar?

                Escolhi alguns textos para que as novas gerações entendam a lógica que substituiu as casa simples (nas áreas preservadas junto ao mar, de todos) por casarões murados que obrigaram até os guaruçás a abandonarem suas tocas.

                Hoje deixarei que a Fátima de Souza dê o seu ponto de vista. A sua parte materna ocupavam o jundu da Praia Dura. O seu avô era o Inspetor de Quarteirão, que representava a polícia e a justiça numa determinada área. Estamos recordando do caiçara Salvador Carlos. “A sua jurisdição ia do Rio Escuro à Lagoinha. Não tinha remuneração, somente a soberba de ser um homem respeitado e assediado”.

                O texto, parte de seu livro Arrelá Ubatuba, explica melhor:

                “Dias atrás resolvi fazer uma visita aos meus parentes que moram no bairro da Folha Seca, nas terras herdadas de meu avô, o Inspetor de Quarteirão.

                Assim como muitos outros caiçaras que moravam na beira da praia, ele também foi convidado a deixar seu lugar com seu rancho de canoa, plantação e criação, para dar lugar às grandes mansões que vieram em  nome do progresso.

                Essas moradias à beira mar, aos olhos dos especuladores imobiliários, não tinham nada a ver com o projeto daquele condomínio a ser construído. Uma vez que sua simples e singela casinha estava assentada numa área que valia ouro. Sentindo-se inseguro com uma segunda família para cuidar, o Inspetor de Quarteirão aceitou uma casa num pedaço de terra na Folha Seca, próximo à Serra do Corcovado.    Na sua concepção era uma troca justa porque o “Doutor” tinha sido muito convincente alegando que estava proporcionando aquele sonho de ter um sitiozinho mais produtivo. Ledo engano.

                O tempo foi passando, e, ao correr atrás do “grileiro” em busca de sua documentação que lhe garantiria ser proprietário das terras para onde foi “jogado”, a decepção lhe caiu como uma flecha certeira. Tinha sido ludibriado. Hoje, seus filhos que moram lá estão na justiça com um processo de usucapião”.

segunda-feira, 24 de setembro de 2012

MAS HÁ TAMBÉM FLORES!


Uma orelha-de-burro, lembrança da vó Martinha e da Queimada (Sapê)
A minha jabuticabeira
Um maravilhoso ipê espremido no centro da cidade de Ubatuba (Rua Maranhão)
                Pense em todas as maravilhas do mundo. Agradeça por elas terem passado os tempos e as pessoas e nos alcançado na história, independente do lugar de onde viemos.

                O desafio de hoje é pensar em nós e nas futuras gerações. Sobretudo nelas! Terão flores na profusão que temos? Terão os monumentos naturais e culturais que tanto nos satisfazem? Terão vida em abundância?

                O que me preocupa são as transformações que desestruturam a vida humana e as vidas interdependentes nos diversos ambientes do planeta.  No caso dos moradores tradicionais de Ubatuba, a partir da especulação imobiliária, ao perder a posse da terra e o acesso ao mar, ao tentar apagar a memória caiçara, foi-se gerando algumas situações que geraram as crises da atualidade. Junte-se a isso as migrações desenraizadas fazendo de tudo para a sobrevivência e às necessidade capitalistas, onde o ter supera o ser.

                Hoje, após visitar recentemente as ruínas desprezadas das Galhetas e da Lagoa, de me preocupar em ter algumas áreas como reservas caiçaras visando a preservação às futuras gerações, transcrevo um depoimento colhido pelo Domingos a respeito dos últimos caiçaras da Caçandoca, quando até as ruínas da fazenda foram destruídas pela Construtora Continental visando a construção de um condomínio de alto padrão. Quem nos fala é Brás de Oliveira, filho do tio Roque:

                “Foi em 1975 que aconteceu isso. A última revolução mesmo! Os caras chegaram lá, colocaram a gente no caminhão de mudança e foram expulsando o povo. Tinha que sair na hora e já começaram a largar fogo nas casas. Inclusive quando a gente desceu lá do sertão [da Caçandoca] e passou no Benedito Domingos, no Leocádio, aquelas casas já estavam todas queimando. Já estavam andando... pra onde? Não tinha para onde a gente ir. Aí a gente veio para o Perequê-mirim, pra casa do meu cunhado João da Mata. Ele já tinha saído fazia um tempinho. Foi onde a gente se instalou. Foi ali. Sem dinheiro, sem nada, ficamos na casa dele dois ou três anos, até a gente fazer um barraquinho.

                Nessa altura a máquina já tinha jogado o sobrado, já tinha jogado lá na Caçandoquinha, jogaram aquelas coisas da escravidão tudo lá. Eu ainda vi isso aí, jogaram aquelas lapadas de pedra. As paredes eram de uns oitenta centímetros de largura”.

                Hoje, ao me deslumbrar com alguns espetáculos no meu entorno, penso nos sofrimentos, nos momentos angustiantes que são frutos da cobiça e da maldade de muitos. Se serve de consolo... As tais situações continuarão, mas há também flores! Não deixe de percebê-las.

domingo, 23 de setembro de 2012

A FIBRA DO NHONHÔ (III)


Meu ipê nas suas primeiras flores. Valeu a espera!
A andorinha chegou esgotada, deu a vida pelo anúncio da primavera.

                Hoje, deixo que o tio salvador narre com muita emoção, os últimos dias do Nhonhô Almiro na Praia da Fortaleza, neste mundo:

                “Estando o meu pai muito doente, já internado, o doutor Teófilo me chamou e disse que nada mais podia ser feito. Agora era uma questão de tempo no aguardo da morte. Afiançou que nem mesmo em outro lugar, com mais recursos, alguma coisa poderia ser feito. O sangue tinha engrossado. Era preciso aceitar a situação.

                Após consultar o meu pai, ele mesmo ajudou a decidir: ‘Me leve para a minha casinha. É no meu cantinho, perto das minhas coisas, que eu quero morrer’. Imediatamente eu peguei a licença do trabalho. Expliquei para o frei Pio [presidente da A.S.E.L – Ação Social estrela do Litoral] que desejava passar os últimos dias do meu pai cuidando dele. Era eu e o meu irmão: o finado Clemente. Éramos tão devotados, cuidávamos do meu pai tão bem que, o finado tio Maneco Mesquita, afilhado dele, comentou numa ocasião: ‘Nem mesmo duas moças fazem o trabalho que vocês fazem! Feliz é o meu padrinho por tê-los por filhos!’.

                Eu, por ser o caçula, era o primeiro a ser chamado. Isto acontecia muitas vezes durante a noite. Eu sentia muito sono, estava sempre cansado, mas não arredava o pé na obrigação de servi-lo melhor ainda em seus últimos dias de vida. Afinal, quanto ele fez por mim e por meus irmão!?!

                Disso tudo eu guardo um detalhe que carregarei até os últimos dias de vida: na véspera de sua morte, o meu pai se levantou na sala e foi se deslocando devagar, se apoiando nas paredes, até a cozinha. De quando em quando ele parava, olhava ao redor. Reparava bem no teto e nas coisas que estavam por ali. Ao chegar na cozinha, perto de um fogão à lenha que a gente tinha, depois de tomar um gole de água da talha, novamente continuou contemplando tudo. Quando lhe perguntei se estava sentindo alguma coisa, se precisava de algo, ele disse com a voz bem fraquinha: ‘Não, meu filho, não é nada não. É que estou me despedindo das coisas e da nossa casa porque a morte  vem chegando. Já está aqui’.

                No dia seguinte, vendo-nos tristes, entabulou a derradeira fala: ‘Não fiquem assim tristes e abatidos. A morte é natural, ninguém escapa dela. Os meus pais morreram cedo; vocês nem conheceram os seus avós.  Só recomendo que continuem sendo bondosos, respeitando os mais velhos e não passando a perna em ninguém’. Em seguida ele faleceu.

                Quis a Providência Divina que, naqueles dias, estivesse acontecendo um encontro de líderes comunitários na capela, sob a direção do frei Francisco. Foi uma imensa comoção. Após prepararmos o desgastado corpo, uma imensa procissão o conduziu até a Capela de São João Batista, onde aconteceu a missa de corpo presente.

                Que dádiva tudo ter acontecido na capela em que ele tanto se empenhou, rodeado de tantas pessoas! Depois, no caminhão da A.S.E.L, eu conduzi o cortejo até o cemitério da cidade.

                Enfim, meu pai foi um homem de muita fibra”.

sábado, 22 de setembro de 2012

A FIBRA DO NHONHÔ (II)


Chegou a primavera. Viva a natureza!

                A respeito da história da comunidade da Praia da Fortaleza, lugar da mamãe, do Nhonhô Almiro e de tantos outros, darei agora, com a ajuda das lembranças do tio Salvador, a continuidade.

                Após a construção da Capela São João Batista, em 1940, era preciso mantê-la em ordem, com as condições apropriadas para acolher e abrigar os devotos. Lugar assim Sempre tem os constantes reparos, os utensílios e os materiais de consumo comuns no contexto religioso. Para conseguir isso, Nhonhô se valia de alguns expedientes, principalmente das festas juninas em honra a Santo Antonio e São João. Elas marcaram época!

                As festas da capela eram bem concorridas, vinha gente de todo lugar. Após a liturgia regular aconteciam os leilões. Saber o que tinha como prendas era curiosidade de todos. Arrematá-las já era outra coisa. Só depois de tudo arrematado é que todos, sobretudo os jovens, acorriam para o lugar do bate-pé, do baile.

                Com a finalidade de angariar prendas, o Nhonhô fazia o mesmo que nas andanças para a construção da capela: ia de casa em casa, andava por outros lugares e, no comércio do centro da cidade, recebia as mais variadas e valiosas. Estava garantido o  sucesso dos leilões (e das festas)! Após isso, o abnegado e devoto caiçara da cepa dos Mesquitas (Observação: deste ramo e dos Amorim vem a nossa descendência árabe) pedia que tudo fosse registrado. Uma perfeita contabilidade, seguida por prestação de contas à comunidade, atestava a honestidade do homem. Porém, há sempre alguém que, por inveja, levanta calúnias. Desgostou-o, numa ocasião, uma intriga de que ele tinha casa de telha porque usava verba da capela. Ao seu afastamento, os trabalhos foram tocados por seu irmão Maneco Armiro e sua esposa Ana.

                Conclui o tio Salvador:

                “Naquele tempo de muita pobreza a gente via que as pessoas tinham fé. As palavras bíblicas serviam de orientação à vida. Desse modo educaram os filhos, se orientaram em seu dia a dia. Resultou no tipo de comunidade que nós vivemos até há pouco tempo. Era pouca gente, todos se conheciam e praticavam a caridade”.

sexta-feira, 21 de setembro de 2012

A FIBRA DO NHONHÔ


As mudanças chegaram com a capela e a escola (Arquivo Mendonça)
                No começo do século passado, na Praia da Fortaleza, era produzida muita pinga. Dois alambiques davam conta do recado. Ou seja, muita cachaça por cabeça. Então, um passatempo comum aos domingos era brigar. Era dizer do lugar: “Domingo que não tem briga, gente ensanguentada, com cabeça quebrada... não é domingo”.  Era assim. Faz-me lembrar, conforme a memória de João Tãozinho, os domingos no Ubatumirim: os jovens da praia e do sertão já tinham um ponto demarcado no meio do caminho, entre os dois lugares, para os embates dominicais. Brigavam como um esporte olímpico! “Dar peadas, se esbofetear, ficar se aloitando até no serão era sagrado depois de uma semana na lida”.

                O que provocou as mudanças de alguns hábitos, mais respeito e melhor convivência foi a moral cristã. Explico: ao chegar naquela praia, na década de 1930, o padre João, o alemão, não se conformou com aquele quadro. Ao travar conhecimento com os moradores, logo percebeu no jovem Almiro, o Nhonhô Almiro, uma pessoa íntegra, capaz de uma tarefa da Igreja: ser o responsável por uma capela naquela praia.

                O Nhonhô assumiu a missão: era analfabeto, mas andava com um caderno e um filho (Salomão) que ia anotando as contribuições angariadas. Primeiramente passou pelas casas pobres do lugar explicando como era importante ter um espaço reservado para as orações,  poder escutar as mensagens da Bíblia e tornar a vida melhor.  Depois, ampliando o espaço, foi passando em outras praias e alcançou o centro da cidade. Tudo era registrado naquele caderno, cujo responsável era o menino. Conseguido o material, sobretudo telhas, os pitirões foram convocados.  Desse esforço abnegado nasceu, em 1940, a Capela São João Batista da Praia da Fortaleza.

                Depois da capela pronta, o padre de visão civilizadora se lançou em outra empreitada: implantar uma escola às crianças caiçaras naquele lugar. Dessa vez  o tio Onofre, morador no jundu do Canto do Cambiá, cedeu a sua casa, ou melhor, a sala assoalhada que servia aos bate-pés (xiba, ciranda etc.). Pronto! Nasceu a escola! Anos mais tarde, com a venda da casa para o turista Pierre, a casa da tia Martinha assumiu tal função. Nela eu estudei no final da década de 1960. Era uma Escola Mista, e, na mesma sala, a professora dava conta de três séries distintas. Bem mais tarde, a década de 1980, ela foi para o prédio atual, na via de acesso ao Morro da Maria Bidu e à Praia Grande do Bonete. Está onde era o Bananal do Sul, dos finados da minha avó Eugênia. É preciso dizer uma coisa: antes de a escola existir, ficava a cargo de um professor itinerante alguns rudimentos de alfabetização. Cada criança tinha um caderno e um lápis como se fossem as armas do soldado de prontidão para a guerra: bastava um toque de buzo diferente, em um dia qualquer, para os pequenos se deslocarem até a praia e receberem as lições. Depois restava cumprir as tarefas e ficar aguardando a próxima ocasião que podia até durar meses.

                Então, a partir da escola e da capela, as pessoas foram se transformando na realidade da nossa infância. Quer saber mais? Recomendo as poesias do mano Mingo e um bom papo com o tio Salvador.

                Só um ponto negativo nisso tudo: os dois alambiques faliram. A minha sugestão: que ao menos um deles seja reconstruído, no lugar original, debaixo das jaqueiras do Canto do Recife, para ser mais uma atração histórico-cultural.

quinta-feira, 20 de setembro de 2012

ANJOS DA SAÚDE



Vovó Martinha, a parteira da mamãe e de muitas outras.
     
      
      Na série Anjos da Saúde, publicado no O Guaruçá, Nenê Velloso cumpre a sua tarefa de nos ensinar sobre a cultura local. Está correto! Afinal, alguém já disse que “uma história de vida não é feita para ser arquivada ou guardada numa gaveta como coisa, mas existe para transformar a cidade onde ela floresceu”.

      Hoje, lendo os envolventes escritos do Nenê, escolhi o relato da minha vizinha da Praia do Sapê, na década de 1960. A Maria recupera ações de mulheres caiçaras nas questões de saúde, inclusive da sua própria mãe e da minha vó Martinha, a parteira.

   
        Relato de Maria Cruz

        Nasci em 48 e estas pessoas povoaram minha infância: Dona Martinha, avó do Domingos, do Jairo, entre outras menos conhecidas, era parteira. Fez todos os partos na nossa região, desde que me entendi por gente. Até quando apareceu médico por aqui e as mulheres ficaram mais “prosas”, aí as parteiras se acabaram. Herdou o dom de Dona Maria Félix, santa criatura que me apresentou ao mundo em 1948. Era uma parteira da Caçandoca, e Dona Martinha que morou lá aprendeu certamente com ela o ofício.

        Dona Martinha morava no Sapé, depois foi para a Estufa, onde morreu. Também no Rio das Pedras, bairro antes da Tabatinga, havia Dona Ana, que doou a área para a igreja católica daquele bairro. Ela amparava nossa gente, por aqui, e igualmente era muito querida. Homeopatia era com a Dona Quinina (Joaquina), mulher do Seu João Pimenta, que tinha armazém no Sapé. Ela tinha um “livrão” que manuseava a procura da “dose” a cada doença que lhe contassem. Tinha e vendia as doses que preparava num vidrinho ou caçula de guaraná, e todos acorriam a ela e sua medicação de “dose”.

        Minha mãe, Ana Cruz, oficialmente Ana Rosa das Chagas, atuou nesta época de dona Quinina, e foi a primeira “enfermeira” daqui da região. E ainda hoje guarda seu “pedido-cópia” de remédios, que era endossado pelo Seu Filhinho, e seus livros de apontamentos. Quando prefeito o Dr. Alberto Santos, foi contratada através do Senhor Vivi. Fazia de tudo: curativos, aplicava injeções e comprimidos antigripais, dava “comprimido de ferro”, e outros remédios. Aplicava inclusive soro antiofídico, que também tinha em casa. Abria ou espremia furúnculos, ajeitava quebraduras, arrumava talas de bambu e tiras de pano usado e enfaixava até sarar, e ainda ensinava a fazer os famosos “emplastos” de mato, São Joãozinho e canema, que ajudava a curar o quebrado.

         Minha mãe só não fazia parto, isto era com Dona Martinha, e que, como todas as parteiras, fazia os remédios para tal ocasião, as famosas “queimadas”, remédio para as parturientes da época. Geralmente a parteira tomava a seus cuidados a parturiente e seu filho até a primeira semana de vida, que era a mais perigosa para o bebê, pelo mal de sete dias, que não me lembro ter ouvido acontecer. Lembro-me da “vacina lizada anti-piogênica”, contra picadas de insetos que geralmente traziam alergias. Tínhamos em nossa casa um armarinho cheio de remédios farmacêuticos e alguns instrumentos simples que ela usava em sua lide diária. Trabalhou durante treze anos, sem um dia de férias, a qualquer hora do dia ou da noite e onde precisassem dela, lá estava minha mãe, ou então atendia em nossa casa mesmo. Parou quando prefeito o Dr. Nélio, quis transferi-la para a ASEL, e mamãe não aceitou. Através de Lei 486/08/77, foi aposentada como pensionista, percebendo hoje um salário mínimo regional ou salário mínimo brasileiro. Jamais recebeu qualquer outro valor sobre seus tempos de serviço.

        Sobre as benzedeiras, não me perguntou, mas vou enumerar por primeiro as mais antigas que conheci:

1- Tereza Blaque, na Maranduba, xingava muito, mas todos a procuravam. Morreu quando eu ainda era criança.

2- Rosalina Félix, na Maranduba, descendente de escravos da Caçandoca.

3- Minha tia Tatãe, ou Cândida Antonia de Morais, do Sapé, benzia mais crianças.

4- Benedita Fermino, nossa amiga, do Sapé, todas no meu tempo de criança.

5- Olivina, que veio da Praia Grande do Bonete, bondade infinita.

6- Sebastiana Maria, do Sertão da Quina, inclusive fazia as famosas “garrafadas” e que hoje fazem, a meu ver, tanta falta, pois fé também cura.

       Somente as duas últimas benziam em meu tempo de adulta. Eram criaturas muito benquistas e eram procuradas por todos.

Nota do Editor: Francisco Velloso Neto, é nativo de Ubatuba. Seus ancestrais datam desde a fundação da cidade. Publicado no Almanak da Provícia de São Paulo para o ano de 1873. Envie e-mail para
thecaliforniakid61@hotmail.com.

quarta-feira, 19 de setembro de 2012

CAMACOM


Eis uma onda que embica a canoa no lagamar!     (Arquivo Vento Contra)

                O registro do artista, carregado de sensibilidade, além da distração, pode nos dar orientação em projetos de desenvolvimento sustentável, mais de acordo com a vocação do nosso lugar que abriga a Mata Atlântica. Pode também servir como veículo de conscientização. Assim é o texto da Fátima, publicado em Arrelá Ubatuba.
                Você já se imaginou no lugar de um vegetal, de uma árvore? Então vamos à beleza imaginativa da Fátima Souza:

                Logo que nasci, percebi que não seria fácil a minha condição de vegetal. Arraigado ao solo, vergando ao sabor do vento, o medo me cercava. Mesmo sabendo que podia crescer e ser frondoso, horrorizava-me a possibilidade de ficar nanico como as minhas primas samambaias. O que só poderia acontecer se a luminosidade, elemento imprescindível ao meu crescimento corporal, fosse insuficiente.

                Então eu cresci às sombras da mamãe louro. Árvore copada e forte que me resguardou até eu ter a minha maioridade. Fazia-me frente às infames tempestades devoradoras de eitos e mais eitos. Ela me contava que o maior perigo que corríamos era sermos descobertas por um bicho muito dependente de nós. Eles podiam pensar, mas eram desprovidos de conhecimentos básicos que lhes permitissem satisfazer as suas necessidades sem destruir os outros. Um animal igual aos outros, não fosse a ambição de poder. Para tanto, formatavam e construíam geringonças para dominar. E um desses apetrechos era o tal de machado, uma coisa medonha. Uma arma que vai cortando na pancada. Leva-nos à morte aos pouquinhos. Isso ou o fogo dos infernos, quando não querem nos aproveitar.

                Mamãe havia sido ceifada já há alguns anos; um raio lhe tirou a vida. Cresci num lugar privilegiado, no alto da serra de onde eu sempre avistava o mar mudando de cores. Via as praias, tão branquinhas e cheias de gente que mais pareciam saiotes de rendas. Certa vez um gavião me contou que a visão que ele tinha lá do alto fazia os morros parecerem gigantes adormecidos, cobertos por colchas verdinhas de mato e molhadas nas pontas pelas ondas do mar.

                Algumas vezes aquela rotina mexia comigo. Eu namorava uma ingazeira de macacos, bonitinha, muito raizeira e folhuda. Passávamos o tempo nos divertindo, atirávamos frutinhas no chão querendo acertar algum passante por ali. Fazer o quê? Tudo ao meu redor não disfarçava a minha curiosidade que só aumentava a cada conversa que ouvia contada pelos pássaros que povoavam a minha cabeça. Conversas de outros lugares, outros sabores, outros odores que me deixavam doidinho.

                Numa manhã raiada qualquer, meditava sobre a vida que estava levando. Veio uma revolta no meu peito que me levou à histeria. Ansiava por um porvir de glórias e explodi num clamor ao infinito:

                - Não aguento mais viver assim. Quero muito mais, quero ir lá embaixo. Quero banhar-me no mar. Quero provar o sal das suas águas. Quero ser gente. Não aguento mais essa vidinha besta de ser árvore igual a todo mundo!

                Meu pedido ecoou na imensidão, batendo de encontro com as leis da mata e causando ira. Então, num ruidoso movimento dos mais velhos fui sentenciado.

                -Filho ingrato! Blasfemas contra a tua própria natureza, pois sereis escravo da sua própria ambição. Sereis instrumento de conquista, de honras aos méritos dos outros. Sereis abandonado por aqueles que te usarem e, num canto qualquer irás ficar quando não servires mais. A cada intempérie se verás mais debilitado, dependerás de beneméritos para os seus curativos e não terás ninguém a quem reclamar.

                Duas luas se passaram até aquele quarto de dia quando a selva se alvoroçou indicando a presença de estranhos. Eram eles. Homens munidos de machados e cordas; em torno de mim se juntaram. Todos me olhavam com satisfação: haviam encontrado o que estavam procurando.

                A primeira pancada, de tão forte, me fez desfalecer de tanta dor. E a cada pancada, em ritmo torturante, foram tirando a minha vida. De raiva, resisti até cair de vez. A profecia se cumpria. Meu tronco foi lavrado ali mesmo. Fui rolado morro abaixo sem dó nem clemência. Machucado e cheio de lama cheguei à planície. Medido, arrumado, alinhado...e logo retomaram a minha lavra. Paulatinamente fui ressurgindo, ressuscitando com uma nova cara, outro estilo, outra identidade. Que peça o destino me pregava! Estavam fazendo de mim uma canoa! Para mais pecados, deram-me um nome de mulher grande. Acho que foi devido ao meu tamanho: nove metros e vinte centímetros de comprimento. Imagine se a ingazeira me visse assim, logo eu que sempre fui machista com ela. Besteira! Mero detalhe! Tudo não fazia mais diferença. Quando fiquei pronto, fui lançado ao mar. Golfadas de água pesada com sabor de urina de bicho me lavou inteiro. Era junho e o frio da água me fez tiritar. E tome força daqueles cinco remadores que se apossaram de mim. Ansiosos pelo meu melhor desempenho gritavam:

                - Vamos lá, menina! Toda força à frente!

                Meio acanhada, cambaleei para bombordo, puxaram-me para boreste, equilibrei-me, tomei prumo. Deslizei mar afora até a cidade de Santos. Três dias de pura emoção e aventura. Não parei mais. Fui estrela em todas as competições de canoa. Fui à Paraty, virei atração e notícia em todos os jornais.

                O tempo passou e eu não percebi. Outras novidades foram surgindo e tirando a atenção que era dada para mim. Caí no descaso igual a todo ancião neste país. Abandonaram-me no tempo atrapalhando a vida das pessoas. Tive que me resignar na condição de coisa passada.

                Aí a política mudou, todos os grande valores  foram revistos e se lembraram de mim. Um benemérito me recolheu. Providenciaram uma reforma para recuperar a minha aparência corroída pelo tempo, fizeram alguns enxertos com outra madeira, maquiaram-me com gesso e cola. Arranjaram para mim uma aposentadoria por invalidez. Não me exercito mais; virei atração para turista ver.

                Sob um teto, de frente para o mar, estou estático. Vivo olhando para ele que me trouxe tantas glórias. Do outro lado, lá longe, vejo a serra onde ainda devem estar os meus parentes. Entre eles estou eu no vazio da solidão, carregando o fardo da história, sofrendo a dor da saudade.

                Na alma trago o orgulho de não ser anônimo e ver meu nome assinado: “Canoa Maria Comprida” para os turistas, ou simplesmente Camacom, para os amigos que me visitam.

terça-feira, 18 de setembro de 2012

É BOM NÃO ESQUECER



Manezinho dando os últimos retoques na canoa, no jundu da Praia do Flamengo (Arquivo Júlio)

                Ubatuba é terra de canoas. De lindas canoas!

                O meu pai sempre fala de importantes canoas do passado, de canoas de seu tempo de criança. Eu cheguei a conhecer algumas, ou cacos pelos monturos. O finado Peres, na Praia do Lázaro, mantinha uma em seu restaurante como lembrança. Hoje também tem muitas canoas que nos chamam a atenção. Tem até colecionadores de canoas!

                Quando ainda era viva a Ivete Maciel, da Praia da Enseada, numa manhã, ao passar em frente da sua simpática casa, o antigo Armazém do Maciel, eu a avistei no terreiro cuidando das plantas. Lógico que parei para conversar! Foi quando vi, no interior do salão do antigo ponto comercial, algumas canoas. Pronto! Foi inevitável pedir para dar uma olhada e especular um monte de coisas. Ela ficou contente pelo meu interesse, disse que era uma coleção mesmo. Se não me falha a memória, tratava-se de uma iniciativa de um filho  ou genro dela.

                Ao escrever isto agora, vou lembrando de alguns leitores que já me mandaram mensagens dizendo que são admiradores da canoa caiçara. É por isso que, depois da indelével marca das grandes canoas de voga tão essenciais nos transportes até meados do século XX, entrou para a nossa história a Maria Comprida, feita exclusivamente para as regatas, cujo maior incentivador foi o professor Joaquim Lauro, um pirangueiro de Lorena, mas que adotou Ubatuba como morada até os seus últimos dias. Ou seja: se acaiçarou.

                Vale resumir o que o Justo incorporou à sua obra em referência à canoa Maria Comprida:

                “Em 1973, no dia 1º de junho, pela primeira vez aconteceu a ‘Jornada Marítima Ubatuba-Santos’, uma prova com percurso longo, com cinco remadores, porém sem caráter de competição [...] Esse percurso, de aproximadamente 215 quilômetros em linha reta, foi idealizado para lembrar um fato histórico do Brasil [...]”.  Naquele ano, estava era a comemoração de 410 anos da Paz de Yperoig.

                “A saída da Maria Comprida foi no dia 1º de junho, às 4h45, tripulada pelos cinco remadores, em frente à Capela Nossa Senhora das Dores no Itaguá, chegando em São Sebastião às 15h05 do mesmo dia. De lá saíram às 4h15, chegando em Bertioga às 14h45 do dia 2 de junho. De Bertioga continuaram a viagem, saindo às 6h30 e chegando finalmente em Santos às 10h15 do dia 3 de junho, atracando na Ponta da Praia, em frente ao Clube de Regatas Vasco da Gama”.

                Quer saber quantas horas os cinco valorosos caiçaras remaram? É só somar!

segunda-feira, 17 de setembro de 2012

ELE TAMBÉM NÃO ACHARIA JUSTO


Quem quer enxergar além da imagem?

                Continuando a leitura da obra de Justo Arouca  (Ubatuba – onde a lua nasce mais bonita), recuperei da lembrança algumas injustiças ocorridas com o meu pai (Leovigildo Félix dos Santos) e outros caiçaras na execução da estrada Caraguá – Ubatuba.

                Estando com quatorze anos, o meu pai e outros adolescentes (Arcendino Apolinário, João Oliveira, Pedro Marinho, Benedito Oliveira, Laureano Francisco e Jaime Oliveira) também foram trabalhar na abertura da estrada. Que narre o papai:

                “Era um tempo difícil. Não tinha trabalho além da pesca e da roça de subsistência. Quando a companhia atravessou o rio da Mococa para avançar sobre a Tabatinga, nós começamos no serviço da estrada.

                O Mendes, que não sabia escrever, era o feitor. O pagador era o Rubens.

                No governo do Adhemar de Barros as coisas andavam ruins. Quem trabalhava no D.E.R (Departamento de Estrada de Rodagem) não tinha crédito nem para uma caixa de fósforos. Depois que o Jânio foi eleito como governador é que as coisas melhoraram.

                A gente pegava o vale e trocava no Armazém do Santana, em Caraguá. Ele era genro do Miguel Varlez, o administrador de obras do D.E.R.    O Santana ficava com 30% do vale, não dava dinheiro. Só dava outro vale para ser gasto nas mercadorias dele. Fazer o quê? A gente precisava comer.

                Foi um ano só de vale! Todo mundo saiu. Houve uma sindicância. O pagador (Rubens) perdeu o cargo.

                Todos esses, da minha idade, saiam do Sapê ainda de madrugada para o trabalho que era na divisa com a Mococa, uma distância de sete quilômetros a pé. O serviço era arrumar bueiros, fazer valas, construir barracão, cortar capim para os burros e outras coisas mais. A gente só chegava em casa depois de escurecer. Desse pessoal só ficou na firma o Arcendino, que era órfão de pai e não podia deixar de ajudar a mãe. Ele foi contratado mais tarde; se aposentou pelo D.E.R. Agora já é falecido”.

                Podemos concluir algumas coisas desse fato vivenciado por papai e os outros: a) O progresso, em todos os tempos, se fez às custas dos trabalhadores (que muitas vezes eram crianças e adolescentes); b) Diante de rostos marcados pelo desgaste, é muito cômodo para a maioria somente dizer que “os caiçaras são vagabundos”; c) Resgatar o que os mais antigos do lugar vivenciaram é uma forma de, através da memória,  construir outras possibilidades políticas; d) O Justo Arouca foi admitido mais tarde, em 1956, mas certamente que, diante de tais situações, ele também não acharia justo e até poderia citá-las em seu livro.

domingo, 16 de setembro de 2012

LÓGICO! É JUSTO!


Descida do morro, avistando a Praia Dura (1973)

                Há três dias (13/9), foi lançado o livro Ubatuba – onde a lua nasce mais bonita, de Justo Arouca, um caiçara de Caraguatatuba que conheceu Ubatuba em meados do século passado, por ocasião da abertura da estrada que ligou por terra os dois municípios (Ubatuba – Caraguatatuba).

                Arouca era funcionário do Departamento de Estrada de Rodagem. A partir do primeiro contato com a nossa cidade, ficou apaixonado e fez questão de deixar suas boas marcas por aqui. Atualmente mora em Taubaté. A sua obra nos brinda com detalhes da empreitada da abertura da estrada, mas o mais importante são os aspectos da sociedade ubatubana, da atuação dos jovens caiçaras e dos desafios enfrentados com grande empolgação. Espero, após mais leitura, apresentar as pérolas descritas pelo autor.

                O meu exemplar foi um presente do amigo Jorge Ivam. Como é bom ter amigos que sabem das nossas paixões! Agradeço muito por isso.

                Eis um “aperitivo” para começar:

                A luta mais sofrida da estrada foi vencer a serra do Pinhão, entre a Praia Dura e o Lázaro. Daí até o bairro da Enseada levou quase três anos de trabalho duro. Esse pedaço de tempo dá a exata dimensão da abnegação dos rodoviários nessa jornada heroica. Em setembro de 1952 os serviços tinham apenas chegado no Rio Escuro. O empenho da equipe de obras contando apenas com equipamentos rudimentares, basicamente sustentados por carrocinhas puxados a burro, exigiam muito esforço braçal. Dois compressores de ar comprimido para funcionar marteletes que furavam pedras e dinamites para explodir rochas gigantes chegaram. Para derrubar e arrastar grandes toras de árvores foi preciso braços fortes e um sonho extraordinário. Enquanto isso o pessoal de obras-de-arte preparava a estrutura da ponte provisória sobre o Rio Escuro, suficiente robusta para a travessia de um pequeno trator de esteiras e outros veículos.

                Ao ler essa parte, me recordei de uma narrativa do tio Salvador, quando morava na Fortaleza: dizia que, numa das explosões no trecho da estrada citado, ele e o tio  Genésio estavam no mangue retirando madeira para a construção de paredes de pau-a-pique.  Foi quando eu soube que,  devido ao contato constante com a água, a madeira do mangue era preferida na hora da construção da casa caiçara, do envaretamento para o embarreamento. Acho até que já contei este detalhe: a canoa preferida para o transporte de cargas tinha o nome de Cu grande. Era feia, de aproveitamento de uma tora de ingazeiro, cuja proporção não permitia seguir a estética de uma canoa normal. Ela pertencia ao tio Genésio. Por isso que, ao necessitar de uma embarcação adequada para transportes de cargas, as pessoas da Praia da Fortaleza diziam:

                - Vamos na Cu grande do Genésio.

                Enfim, devemos agradecer ao Justo Arouca por mais uma descrição com objetivo de conhecer mais a história de Ubatuba.           Lógico! É justo!