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Eis uma onda que embica a canoa no lagamar! (Arquivo Vento Contra) |
O registro do
artista, carregado de sensibilidade, além da distração, pode nos dar orientação em projetos de
desenvolvimento sustentável, mais de acordo com a vocação do nosso lugar que
abriga a Mata Atlântica. Pode também servir
como veículo de conscientização. Assim é o texto da Fátima, publicado em Arrelá Ubatuba.
Você
já se imaginou no lugar de um vegetal, de uma árvore? Então vamos à beleza imaginativa
da Fátima Souza:
Logo
que nasci, percebi que não seria fácil a minha condição de vegetal. Arraigado
ao solo, vergando ao sabor do vento, o medo me cercava. Mesmo sabendo que podia
crescer e ser frondoso, horrorizava-me a possibilidade de ficar nanico como as
minhas primas samambaias. O que só poderia acontecer se a luminosidade,
elemento imprescindível ao meu crescimento corporal, fosse insuficiente.
Então
eu cresci às sombras da mamãe louro.
Árvore copada e forte que me resguardou até eu ter a minha maioridade. Fazia-me
frente às infames tempestades devoradoras de eitos e mais eitos. Ela me contava
que o maior perigo que corríamos era sermos descobertas por um bicho muito
dependente de nós. Eles podiam pensar, mas eram desprovidos de conhecimentos
básicos que lhes permitissem satisfazer as suas necessidades sem destruir os
outros. Um animal igual aos outros, não fosse a ambição de poder. Para tanto,
formatavam e construíam geringonças para dominar. E um desses apetrechos era o
tal de machado, uma coisa medonha. Uma arma que vai cortando na pancada.
Leva-nos à morte aos pouquinhos. Isso ou o fogo dos infernos, quando não querem
nos aproveitar.
Mamãe
havia sido ceifada já há alguns anos; um raio lhe tirou a vida. Cresci num
lugar privilegiado, no alto da serra de onde eu sempre avistava o mar mudando
de cores. Via as praias, tão branquinhas e cheias de gente que mais pareciam
saiotes de rendas. Certa vez um gavião me contou que a visão que ele tinha lá
do alto fazia os morros parecerem gigantes adormecidos, cobertos por colchas
verdinhas de mato e molhadas nas pontas pelas ondas do mar.
Algumas
vezes aquela rotina mexia comigo. Eu namorava uma ingazeira de macacos, bonitinha, muito raizeira e folhuda.
Passávamos o tempo nos divertindo, atirávamos frutinhas no chão querendo acertar
algum passante por ali. Fazer o quê? Tudo ao meu redor não disfarçava a minha
curiosidade que só aumentava a cada conversa que ouvia contada pelos pássaros
que povoavam a minha cabeça. Conversas de outros lugares, outros sabores,
outros odores que me deixavam doidinho.
Numa
manhã raiada qualquer, meditava sobre a vida que estava levando. Veio uma
revolta no meu peito que me levou à histeria. Ansiava por um porvir de glórias
e explodi num clamor ao infinito:
-
Não aguento mais viver assim. Quero muito mais, quero ir lá embaixo. Quero
banhar-me no mar. Quero provar o sal das suas águas. Quero ser gente. Não
aguento mais essa vidinha besta de ser árvore igual a todo mundo!
Meu
pedido ecoou na imensidão, batendo de encontro com as leis da mata e causando
ira. Então, num ruidoso movimento dos mais velhos fui sentenciado.
-Filho
ingrato! Blasfemas contra a tua própria natureza, pois sereis escravo da sua
própria ambição. Sereis instrumento de conquista, de honras aos méritos dos
outros. Sereis abandonado por aqueles que te usarem e, num canto qualquer irás
ficar quando não servires mais. A cada intempérie se verás mais debilitado,
dependerás de beneméritos para os seus curativos e não terás ninguém a quem
reclamar.
Duas
luas se passaram até aquele quarto de dia quando a selva se alvoroçou indicando
a presença de estranhos. Eram eles. Homens munidos de machados e cordas; em
torno de mim se juntaram. Todos me olhavam com satisfação: haviam encontrado o
que estavam procurando.
A
primeira pancada, de tão forte, me fez desfalecer de tanta dor. E a cada
pancada, em ritmo torturante, foram tirando a minha vida. De raiva, resisti até
cair de vez. A profecia se cumpria. Meu tronco foi lavrado ali mesmo. Fui
rolado morro abaixo sem dó nem clemência. Machucado e cheio de lama cheguei à
planície. Medido, arrumado, alinhado...e logo retomaram a minha lavra. Paulatinamente
fui ressurgindo, ressuscitando com uma nova cara, outro estilo, outra
identidade. Que peça o destino me pregava! Estavam fazendo de mim uma canoa!
Para mais pecados, deram-me um nome de mulher grande. Acho que foi devido ao
meu tamanho: nove metros e vinte centímetros de comprimento. Imagine se a ingazeira
me visse assim, logo eu que sempre fui machista com ela. Besteira! Mero detalhe!
Tudo não fazia mais diferença. Quando fiquei pronto, fui lançado ao mar.
Golfadas de água pesada com sabor de urina de bicho me lavou inteiro. Era junho
e o frio da água me fez tiritar. E tome força daqueles cinco remadores que se
apossaram de mim. Ansiosos pelo meu melhor desempenho gritavam:
-
Vamos lá, menina! Toda força à frente!
Meio
acanhada, cambaleei para bombordo, puxaram-me para boreste, equilibrei-me,
tomei prumo. Deslizei mar afora até a cidade de Santos. Três dias de pura
emoção e aventura. Não parei mais. Fui estrela em todas as competições de
canoa. Fui à Paraty, virei atração e notícia em todos os jornais.
O
tempo passou e eu não percebi. Outras novidades foram surgindo e tirando a
atenção que era dada para mim. Caí no descaso igual a todo ancião neste país.
Abandonaram-me no tempo atrapalhando a vida das pessoas. Tive que me resignar
na condição de coisa passada.
Aí
a política mudou, todos os grande valores foram revistos e se lembraram de mim. Um
benemérito me recolheu. Providenciaram uma reforma para recuperar a minha
aparência corroída pelo tempo, fizeram alguns enxertos com outra madeira,
maquiaram-me com gesso e cola. Arranjaram para mim uma aposentadoria por
invalidez. Não me exercito mais; virei atração para turista ver.
Sob
um teto, de frente para o mar, estou estático. Vivo olhando para ele que me
trouxe tantas glórias. Do outro lado, lá longe, vejo a serra onde ainda devem
estar os meus parentes. Entre eles estou eu no vazio da solidão, carregando o
fardo da história, sofrendo a dor da saudade.
Na
alma trago o orgulho de não ser anônimo e ver meu nome assinado: “Canoa Maria
Comprida” para os turistas, ou simplesmente Camacom, para os amigos que me
visitam.