sexta-feira, 13 de julho de 2012

DEFUNTO TROCADO POR PORCA

Coisas tão saborosas quanto os nossos causos!

            Não tem com não gostar das narrativas reelaboradas pelo Júlio. Em muitas coisas nos lembra o saudoso João de Souza, o "caiçara do pé rachado". Agradecemos ao  O Guaruçá por nos oferecer mais esta pérola.

Poucos sabem, mas existem em nosso município sete cemitérios; alguns desses encontram-se desativados, mas foram cemitérios que até pouco tempo acolheram os mortos das famílias que habitavam as regiões norte e sul de Ubatuba.

O transporte de um cadáver não era como hoje, onde o morto é transportado de automóvel, dentro de um caixão, não dando trabalho a vivo algum. Antigamente o defunto era carregado nos ombros de dois homens, sob um pau, dependurado dentro de uma rede, ou um lençol que se fazia de rede. Era até mais confortável para o defunto porque vinha balançando, sentindo ar puro, o sol ou a chuva na cara gelada, ouvindo ainda as últimas conversas e os últimos lamentos, enfim, o morto tinha uma agradável despedida. Não era como agora em que o defunto é carregado dentro de um caixão, vestido com terno, rodeados de flores, num calorão e numa sufocação desgraçada e que ainda, se for colocado numa gaveta de concreto, aí tá no inferno direto. É coisa que não deve agradar!

Acontecia que, como todo ano, toda véspera de natal, os irmãos Raposo, como eram chamados, ofereciam aos demais familiares um banquete digno de festa natalina, onde o cardápio principal era leitão a pururuca; leitõezinhos esses que ninguém sabia de onde provinham; sabiam apenas que três dias antes do natal os irmãos sumiam, carregando numa sacola, uma rede de balanço e um lençol.

O Natal estava chegando e chegando estavam os parentes que vinham de Curralinho- MG, para visita e comemorar a festa de natal e fim de ano em suas companhias. Fazer uma ceia para dez pessoas é uma coisa; fazer ceia para trinta, quarenta, é outra.

- E agora? Como é que nós faremos com tanta gente em nossa ceia de natal?

Essas foram as perguntas dos irmãos Raposo.

- Ouvi dizer que pro lado de Catuçaba tem uma fazenda onde o dono cria muitos porcos.

- Tem certeza?

- Ouvi da boca do Cipriano que toda semana sobe e desce a serra levando e trazendo mercadorias para negociar.

- Se foi ele quem falou, então é coisa certa.

Não deu outra! Três dias antes do Natal os irmãos Raposo sumiram levando a espingarda carregada pela boca, o cachorro veadeiro, a rede de descanso, fumo de rolo e uns cinco litros de cachaça...

Morrera Juvenal Juvêncio de picada de cobra. Foi uma urutu-cruzeiro. Não teve jeito, em menos de duas horas o homem estava morto. Era um cidadão da cidade de São Luiz do Paraitinga; viera fazer serviço de roçada nas terras de Juca Paranhos, no Horto Florestal. Seus parentes estavam vindo para levá-lo e enterrar na terra natal...

A barraca de Tuniquinho, no alto da serra, era o ponto de paragem e descanso dos tropeiros e viajantes que percorriam os duros caminhos da serra, indo e vindo de Taubaté, São Luiz, Catuçaba, para Ubatuba.

Devido as festividades de natal o movimento de tropeiros era fraco nessa época. Tuniquinho estava fechando seu recinto quando ouviu um latido de cachorro, logo em seguida avistou dois paisanos se aproximando, carregando o que normalmente seria um defunto. Não teve jeito, já estava escurecendo e Tuniquinho então teve que reabrir as portas de seu boteco ao cortejo fúnebre e dando hospedagem aos dois homens.

- Meus pêsames, senhores. Quem morreu? - Perguntou Tuniquinho.

- Um primo nosso que trabalhava em Catuçaba! - Respondeu um dos Raposos.

- Morreu de que?

- Mordida de cobra! Cascavel!

- Essa não tem jeito, mordeu tá morto!

- Estamos cansados, podemos dormir aqui? - Perguntou um dos Raposos.

- Fiquem a vontade; comam, e descansem! Querem uma pinguinha?

Realmente estavam cansados porque o suposto defunto era grande e pesado. Tomaram o litro de cachaça oferecido por Tuniquinho e o restante que ainda lhes tinham no borná, encostaram o “defunto” num canto e dormiram profundamente.

Não tardou e chegou outro cortejo, esse vinha de Ubatuba, era o cortejo do defunto Juvenal Juvêncio, carregado pelos parentes de São Luiz.

Tuniquinho coçou a cabeça e falou:

- Hoje é dia!
Acolheu mais cinco pessoas, quatro vivos e um morto, dentro de uma rede, que foi deixado ao lado do defunto dos irmãos Raposo.

- Meus pêsames, senhores. Quem morreu? - Perguntou Tuniquinho.

- Um irmão nosso que trabalhava em Ubatuba! - Respondeu um dos irmãos.

- Morreu de que?

- Mordida de cobra! Urutu-cruzeiro!

- Essa não tem jeito, mordeu morreu. Mas que coincidência, este outro aí ao lado também morreu de picada de cobra. Cascavel. Aí pras bandas de Catuçaba.

- Quem é ele?

- Não sei, é gente de Ubatuba, os primos vieram buscar!

- Estamos cansados, podemos dormir aqui? - Perguntou um dos parentes.

- Fiquem a vontade, comam e descansem! Irei trazer uma pinguinha.

Comeram, beberam e dormiram também profundamente, devido ao cansaço de subir a serra com o defunto nas costas.

Era noite de lua cheia e aquele queijão redondo ainda estava aceso lá nas grimpas do céu. Com o clarão que se formou, um macuco pôs-se a chororocar na beira do aceiro, fazendo com que os irmãos Raposo acordassem. Acordaram e depararam com aquele pessoal que dormiam no outro lado do salão. Não teve conversa, não teve despedida, não teve barulho nenhum; perante o escuro do salão, pegaram o defunto e mais do que depressa, puseram-se serra abaixo...

Agora quem cantava no galho do limoeiro era o galo de Tuniquinho. O clarão do dia já se fazia presente. Toniquinho dormia e do mesmo jeito o pessoal de São Luiz seguiram viagem, carregando o seu defunto no balanço da rede, em direção à cidade de São Luiz, berço de Oswaldo Cruz.

Quando Tuniquinho acordou não encontrou nem vivo nem morto no salão de hospedagem, encontrou apenas uma nota de reis, deixada pelo pessoal de São Luiz, para cobrir as despesas. Achou estranho, porém, a poça de sangue deixado no local onde um dos mortos tinha ficado. Se fora mordida de cobra, porque tanto sangue assim? Isso deixou Tuniquinho intrigado...

Quando o dia clareou totalmente, os irmãos Raposo já estavam com seu defunto próximo a Cruz de Ferro. Vinham cantando alegremente, contando piadas, assobiando; numa alegria de quem em breve tiraria a barriga da miséria. Quem via, não percebiam que estavam carregando um defunto...

Já o pessoal de São Luiz, que também levavam seu defunto, era só choro, lamentações, recordações do morto, enfim, numa tristeza que dava dó. No último mirante da serra, encontraram com o coronel Sebastião Amâncio, um fazendeiro criador de porcos, juntamente com seus capangas, que ao ver a comitiva fúnebre, fez questão de dar os seus pesares e aproveitou para fazer uma pergunta:

- Vocês não cruzaram com dois homens, assim, assim, assim?

- Encontramos com dois que pernoitaram no Tuniquinho e que levavam também um defunto para Ubatuba! - Respondeu um dos parentes.

- São eles, só podem ser eles! Vamos atrás deles! Ordenou Sebastião Amâncio aos capangas armados até os dentes.

A galope desceram a serra... Chegando na Cruz de Ferro, alcançaram os dois suspeitos procurados.

- Alto aí! - Ordenou Sebastião Amâncio, apontando sua arma para os irmãos Raposo.

Os irmãos avermelharam, um olhou para o outro e, em sentido duplo, pensaram: “Agora estamos ferrados.” As fisionomias dos dois delatavam-lhes. O coronel já engatilhava a garrucha e já tava com o dedo no gatilho.

- O que foi seu coronel?

- O que foi, é que vocês são ladrões de porcos e estão levando a minha leitoa prenha aí nesta rede, fazendo-se passar por defunto!

- O que é isso seu coronel, o senhor está nos ofendendo e desrespeitando o defunto!

- Cale a boca e abra a rede. - Ordenou o coronel.

Os irmãos Raposo consideraram-se mortos. Cagados e mijados, não tinham para onde correr, pois estavam cercados pelos capangas do coronel. O jeito foi abrir a rede... Tremendo e pedindo clemência, os irmãos Raposo foram desenrolando o defunto; primeiro apareceu o pé inchado mordido pela cobra, depois a barriga também inchada, o pescoço roxo e por fim a cara branca e gelada de Juvenal Juvêncio... O milagre aconteceu na vida dos irmãos Raposo. No momento não sabiam como, mas a leitoa roubada se transformou em defunto.

De joelhos agradeceram a Deus pelo milagre. Agora quem ficava vermelho de vergonha era o coronel, que não sabia onde enfiava a cara, devido o tamanho disparate.

- Sinto muito meus senhores pelo que fiz, peço-lhes mil desculpas.

- Agora não adianta mais seu coronel, a sua ofensa foi muito grande para nós!

- Quero recompensá-los pelo meu erro; peçam o que quiserem que eu farei. - Revelou o coronel.

Diante da proposta do coronel e já sabendo o porque do milagre, os irmãos Raposo, fizeram um pedido ao coronel:

- Queremos, coronel, que o senhor leve esse defunto para São Luiz do Paraitinga, porque é lá que ele vai ser enterrado.

- Mas vocês não estão levando o defunto para ser enterrado em Ubatuba?

- Não coronel! Nós descemos a serra com o defunto apenas para cumprir um desejo e uma promessa dele.

- E que desejo era esse?

- O desejo era que quando morresse e antes de ser enterrado, pediu para que nós passássemos a mão direita dele na Cruz de Ferro, aqui na estrada dessa serra.

O coronel, diante da vergonha e perante a situação, colocou o defunto na garupa do cavalo e subiu a serra.

A briga maior, agora seria com o pessoal de São Luiz, que pensando estarem carregando um defunto homem, estavam carregando a defunta da leitoa prenha, do coronel.

Foi justamente o que aconteceu; próximo a São Luiz o coronel alcança o cortejo, e dá o grito:

- Alto aí!

- O que foi seu coronel?

- O que foi é que vocês estão levando aí a minha leitoa prenha, fazendo-se passar por defunto!

- Que desrespeito é esse seu coronel, estamos levando o corpo de Juvenal Juvêncio.

- Abram a rede. - Ordena o coronel.

Ao apoiar o suposto defunto no chão, saíram da rede 32 porquinhos que nasceram da leitoa morta... Aí não teve conversa, foi um quebra pau que deu medo... Tiro pra todo lado, nego correndo pro mato, defunto rolando pelo chão, coronel correndo atrás de porquinho, enfim, a briga só teve fim quando um dos porquinhos meteu a boca no pinto do defunto, pensando que era a teta da leitoa sua mãe. Aí não teve jeito o defunto deu um grito, levantou-se e pediu: “Por favor me levem para o cemitério”.
Foi um natal triste para os de São Luiz; já para os Raposos de Ubatuba, renasceram com o natal e nunca mais roubaram porcos, transportando-os fazendo passar por defunto.

                                                                           (Fonte: O Guaruçá)



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