Fonte da Amizade (Arquivo JRS) |
“Ainda não conheci ninguém que não anseia
por uma boa talagada de água boa, fresquinha, límpida e pura como esta daqui,
assim que se levanta da cama. Você conhece?”. Disto partiu a prosa, a nossa
prosa (eu, Tarcísio e Afonso) enquanto enchíamos os vasilhames bem cedo, na
Fonte da Amizade, acertadamente nomeada nos idos tempos pelo responsável da
área entre nós conhecida por Horto Florestal. Gentil Godoi era o engenheiro da
época. Aqui em Ubatuba ele começou como estudante, fazendo pesquisa nos
canaviais da Fazenda Velha, onde era produzida a pinga Ubatubana. Nenê Chieus
me afiançou que o Gentil era um dos jovens, na empreitada, da faculdade de Piracicaba. Eles
queriam entender porque razão os pés de cana davam floradas vistosas, mas não
desenvolviam sementes no clima do nosso município.
Quem
começou a prosa foi o seo Tarcísio. De
nós três, eu era o mais jovem. O “Velho” está com 82 anos. Em sua bicicleta bem
usada ele fez uma armação com cabo de vassoura e corda capaz de aguentar 64
litros de água. As garrafas e garrafões são amarrados em pares, equilibrando a “máquina”.
“Este
tanto de água quase atura um mês inteiro para o velho aqui. Eu sou sozinho.
Além de beber, uso também dela para fazer café”.
Seo
Tarcísio veio há muito tempo de Pindamonhangaba, no Vale do Paraíba. Aqui criou
dois filhos, envelheceu; agora, sozinho, diz que se vira. “Eu vivo bem. Sou aposentado. Cozinho apenas uma vez por mês. Congelo
tudo em potinhos. Cada um é a conta certa de um dia. Assim economizo gás, tempo
e mais outras coisas. Não deixo a minha casa além do portão se não houver
precisão. Não assisto televisão, não possuo celular, não gosto de futebol e nem
de política. Ainda bem que esse tempo acaba logo”. Neste momento eu entrei:
“Desculpa aí, seo Tarcísio, mas o senhor
não gosta é da politicagem, desse tempo que aparece um monte de gente no nosso
bairro, no portão da nossa casa, fazem todo tipo de barulho e enchem tudo com
uma montoeira de papel. Essa gente, com poucas exceções, está apenas querendo
enganar a gente. Política é outra coisa. Por exemplo: este lugar (Horto) está
sendo abandonado há mais de duas décadas pelo governo do Estado de São Paulo. O
senhor acha certo isso? Se interessar para mudar isso é política. Porque
política é isto: a arte de cuidar da cidade, do espaço coletivo. Politicagem é
quando apenas os interesses de um pequeno grupo se destacam, apagando o que
seria um bem comum, de mais gente. Politicagem está no lado oposto de interesse
coletivo. Por isso que só em época de eleições essa gente surge, fazendo o jogo
favorável aos poderosos. Um lugar deste, ainda bem público, está sendo
abandonado para mais tarde ser entregue à iniciativa privada. Quando chegar
nesse ponto, nós não entraremos mais aqui para pegar água na bica. Por não se interessar por política, um bem público
torna-se bem particular. Digo mais: está vendo essa sujeirada (garrafas,
plásticos, lata de alumínio...) é falta de uma educação focada na política, no
nosso dever em relação ao meio ambiente. A gente ajunta sempre, mas essa gente não deixa de continuar sujando”. Nessa altura da minha fala, o
Afonso se intrometeu: “É isso mesmo! O
que você está dizendo é certo mesmo, Zé. Sabe que na semana passada, quando eu
estava esperando a minha vez de encher o garrafão, um indivíduo falava o tempo
todo, defendia um candidato, acusava outro etc. Parecia ser um cidadão de
verdade, entendido da política da cidade. Só que ao sair, já estava deixando um
garrafão rachado ali, na natureza. Eu não aguentei e perguntei: ‘você vai
deixar o seu lixo aqui?’ Ele ficou sem jeito, pegou aquela porcaria que veio da
casa dele e saiu sem dizer mais nada. Mas quem me garante que ele não jogou
logo adiante, no mato mesmo? Eu concordo que é preciso entender e aperfeiçoar a
política. Tudo ao nosso redor depende da política. Que ela tem de se tornar
uma boa política é verdade mesmo!”. O “Velho” Tarcísio só balançou a cabeça. Depois, com as
cargas feitas, nos despedimos até a próxima prosa na bica.
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