quinta-feira, 12 de novembro de 2020

PROSA NA BICA

 

Fonte da Amizade (Arquivo JRS)


                “Ainda não conheci ninguém que não anseia por uma boa talagada de água boa, fresquinha, límpida e pura como esta daqui, assim que se levanta da cama. Você conhece?”. Disto partiu a prosa, a nossa prosa (eu, Tarcísio e Afonso) enquanto enchíamos os vasilhames bem cedo, na Fonte da Amizade, acertadamente nomeada nos idos tempos pelo responsável da área entre nós conhecida por Horto Florestal. Gentil Godoi era o engenheiro da época. Aqui em Ubatuba ele começou como estudante, fazendo pesquisa nos canaviais da Fazenda Velha, onde era produzida a pinga Ubatubana. Nenê Chieus me afiançou que o Gentil era um dos jovens, na empreitada, da faculdade de Piracicaba. Eles queriam entender porque razão os pés de cana davam floradas vistosas, mas não desenvolviam sementes no clima do nosso município.

                Quem começou a prosa foi o seo Tarcísio.  De nós três, eu era o mais jovem. O “Velho” está com 82 anos. Em sua bicicleta bem usada ele fez uma armação com cabo de vassoura e corda capaz de aguentar 64 litros de água. As garrafas e garrafões são amarrados em pares, equilibrando a “máquina”.  Este tanto de água quase atura um mês inteiro para o velho aqui. Eu sou sozinho. Além de beber, uso também dela para fazer café”.

                Seo Tarcísio veio há muito tempo de Pindamonhangaba, no Vale do Paraíba. Aqui criou dois filhos, envelheceu; agora, sozinho, diz que se vira. “Eu vivo bem. Sou aposentado. Cozinho apenas uma vez por mês. Congelo tudo em potinhos. Cada um é a conta certa de um dia. Assim economizo gás, tempo e mais outras coisas. Não deixo a minha casa além do portão se não houver precisão. Não assisto televisão, não possuo celular, não gosto de futebol e nem de política. Ainda bem que esse tempo acaba logo”. Neste momento eu entrei: “Desculpa aí, seo Tarcísio, mas o senhor não gosta é da politicagem, desse tempo que aparece um monte de gente no nosso bairro, no portão da nossa casa, fazem todo tipo de barulho e enchem tudo com uma montoeira de papel. Essa gente, com poucas exceções, está apenas querendo enganar a gente. Política é outra coisa. Por exemplo: este lugar (Horto) está sendo abandonado há mais de duas décadas pelo governo do Estado de São Paulo. O senhor acha certo isso? Se interessar para mudar isso é política. Porque política é isto: a arte de cuidar da cidade, do espaço coletivo. Politicagem é quando apenas os interesses de um pequeno grupo se destacam, apagando o que seria um bem comum, de mais gente. Politicagem está no lado oposto de interesse coletivo. Por isso que só em época de eleições essa gente surge, fazendo o jogo favorável aos poderosos. Um lugar deste, ainda bem público, está sendo abandonado para mais tarde ser entregue à iniciativa privada. Quando chegar nesse ponto, nós não entraremos mais aqui para pegar água na bica.  Por não se interessar por política, um bem público torna-se bem particular. Digo mais: está vendo essa sujeirada (garrafas, plásticos, lata de alumínio...) é falta de uma educação focada na política, no nosso dever em relação ao meio ambiente. A gente ajunta sempre, mas essa gente não deixa de continuar sujando”. Nessa altura da minha fala, o Afonso se intrometeu: “É isso mesmo! O que você está dizendo é certo mesmo, Zé. Sabe que na semana passada, quando eu estava esperando a minha vez de encher o garrafão, um indivíduo falava o tempo todo, defendia um candidato, acusava outro etc. Parecia ser um cidadão de verdade, entendido da política da cidade. Só que ao sair, já estava deixando um garrafão rachado ali, na natureza. Eu não aguentei e perguntei: ‘você vai deixar o seu lixo aqui?’ Ele ficou sem jeito, pegou aquela porcaria que veio da casa dele e saiu sem dizer mais nada. Mas quem me garante que ele não jogou logo adiante, no mato mesmo? Eu concordo que é preciso entender e aperfeiçoar a política. Tudo ao nosso redor depende da política. Que ela tem de se tornar uma boa política é verdade mesmo!”. O “Velho” Tarcísio só balançou a cabeça. Depois, com as cargas feitas, nos despedimos até a próxima prosa na bica.

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