segunda-feira, 30 de novembro de 2020

VIAGEM MARAVILHOSA

 

Tinticuias floridas na estrada (Arquivo JRS)
A igreja em meados da década de 1930 (arte: Paulo Camilher Florençano)


                 Na primeira metade do século XX, Félix Guisard Filho, cidadão taubateano, descreveu a sua viagem para Ubatuba. Saiu do Vale do Paraíba e chegou ao litoral norte de São Paulos
.    

       A viagem de Taubaté a Ubatuba, por terra, é uma viagem maravilhosa. Encontramos, desde a partida, o bairro do Belém, a fazenda do Cataguá, o bairro do Baraceia, a fazenda da Piedade, o bairro do Registro, a fazenda da Fortaleza, divisas de São Luiz, o Turvo, a cidade de São Luiz (terra de Osvaldo Cruz) e, margeando o ribeirão do Chapéu, a fazenda de Vitalino Coelho, Silvino Machado, Rafael Coelho,  - variante magnífica da estrada, - bairro dos Frades, bairro da Prata, ponte do Paraibuna, fazenda da Ponte Alta, planalto do Barro Branco, Alto da Serra...

       O panorama que daí se descortina é indescritível. Ao longe, o mar imenso, praias sem fim, ilhas que parecem pontinhos negros no horizonte azul, e, à direita e à esquerda, a serra majestosa e a floresta densa, verde-carregada, a mata brasílica...

        Começa a descida. É impressionante a faixa de pedra, que lembra uma serpente a ziguezaguear pela serra abaixo. E tudo foi feito pelo braço colonial e do preto!

        Água Tuba. Uma placa de ferro indica a nascente do líquido puríssimo. Mais abaixo, a curva da Onça, acampamento, a curva da Batata, a floresta virgem e o palmito de lado a lado. Meio da serra, cruz de ferro. Último acampamento. Curva do Oratório. Água de todos os lados. Plano. Bananas e bananeiras. Estação experimental.

        E chega-se a Ubatuba. Rua do Comércio. Largo da Matriz. O Cruzeiro do padre Anchieta. A praia, o mar...

        Ao longe, uma canoa, um pano, o terral leve a soprar...

domingo, 29 de novembro de 2020

CIRANDA NO ALTO DO MORRO

 

Tocando no  jundu (Arquivo JRS)

        Lá  morro do Cedro, na subida para a Torre, em 1980, escutei o Mané Mancedo em cantoria. Como eu gosto muito de ciranda, segue agora a letra:


Vamo ciranda,

Vamo moça nóis cirandá

e vamo dá meia vorta,

vorta e meia,

continua mesmo par.


Ajuda meu companhero,

embora eu seja baxinho,

companhero, embora eu seja baxinho,

que eu sô muito vergonhoso,

não posso cantá sozinho.


Ai todo mundo se dimira

da galinha fazê renda,

pois eu já vi uma barata

sê caixero de uma venda.


Balanceio,

comigo não perco tempo

e cantando a ciranda

verso cá de repente,

vorta e meia,

comigo não perco tempo. 


Meço o cabo da viola

pra vê quanto parmo tem,

que eu já cheguei numa artura

que nunca chegô ninguém,

balanceio,

que nunca chegô ninguém.


Água de lá, eu de cá,

reberão passa no meio,

você me dá um suspiro

que eu vorto suspiro e meio.

Vamo ciranda, ciranda não é assim,

canta a sereia no mar

O canário no jardim,

balanceio,

o canário no jardim.


No arto daquele morro

tem um velho gaiolero,

quando vê moça bonita

faiz gaiola sem pontero:

balanceio.


eu canto de quarquer manera

ao ciranda, ciranda, cirandão

pois vamos dá meia vorta,

meia vorta vô dá

vorta e meia,

continua o mesmo par.


Sete anos andei embarcado

no batalhão da Gurita,

também eu sô comandante

de toda moça bonita.

balanceio, 

com tanta laço de fita

a cirandinha digero avança

café, biscoito tem mais

balanceio,

dexa da mão, Binidita. 


sexta-feira, 27 de novembro de 2020

ACHO BONITO, MAS NÃO CUIDO DE GERÂNIOS

Gerânio vermelho (Arquivo JRS)

          Odócia, caiçara, gente da Maria Jacinta, mulher forte da praia Brava do Frade (ou praia do Simão), era mulher que não parava, sempre tinha uma ocupação esperando pela outra. Pescava, tirava marisco da costeira, plantava mandioca, fazia farinha... Só não se entretinha com jardim. Duas  ou três espécies de ervas, dessas de tempero, sobreviviam num cercado de pedra, perto da porta da cozinha. O resto do terreiro era barro limpo, do tipo em que água faz caminho. Umas margaridas, umas açucenas e uma roseira junto à parede da casa de farinha eram os únicos atrativos florindo regularmente, mas quem cuidava delas era o Aristeu, seu marido. Certa vez, passando pela estrada das Galhetas, na beira do mato avistei um pé de gerânio jogado. "O dó. Parece que acabou de ser arrancado. Vou levar para o Odócia". Assim que cheguei na casa deles, fui logo perguntando onde eu poderia plantar. O Aristeu, levando uma enxada, foi comigo até o lugar da roseira e ali ficou bonito o gerânio vermelho. "Você já viu que quem cuida de flores em volta da casa sou eu, né?". Eu respondi que já tinha percebido isso. "Sim, até este dia de hoje, eu ainda não tinha encontrado uma mulher que não gostasse de cultivar um jardim, de encher o terreiro com todo tipo de flores e folhagens. Odócia é a primeira".  Foi quando ele me contou o seguinte:

        "Quando ela era criança, assim ela própria me contou, o lugar onde a família morava, lá no alto do Simão, em volta da casa e pelos caminhos tinha muitas flores, de todo tipo. Todo mundo da casa dela se empenhava em zelar pelas plantas. Mas um dia, a sua vó, limpando um pé de jasmim, foi picada por uma jararaca e morreu em pouco tempo, sem nem ter podido ser acudida. Desse dia em diante a Odócia nunca mais cuidou de flores. Até aquele coentro, aquela alfavaca e outros temperos dali, que ela usa na comida, se não fosse eu estar zelando de vez em quando também não existiriam. Ela ficou afetada com a morte da vó. Foi o que mudou o jeito dela com flores. Eu entendo a razão. Eu a compreendo. Pode ver quem nem vasos de flores temos aqui".

        Depois da estimada Odócia, que morreu na costeira enquanto tirava marisco com a sua prima Dirce, conheci outras mulheres que não se entretinham com plantas, com jardim. Hoje, então, devido a outras preocupações e por falta de espaço, muitas casas nem jardim possuem. No meu quintal, entre as minhas queridas flores não tem gerânio. Acho as suas flores lindas, mas me recuso cultivá-lo na minha proximidade em memória de Odócia que morreu jogada pelo mar contra as pedras repletas de cracas e pindás. Prefiro ficar apenas com a imagem daquela planta resgatada por mim, daquele gerânio vermelho que o estimado Aristeu cultivou com tanta devoção até o fim da vida em memória da sua amada. Me recuso a cuidar de gerânios por isso.

quinta-feira, 26 de novembro de 2020

FARRA DE CAUSOS (XII)

Fogueira  (Arquivo JRS)


PAI NO BANHO-MARIA

      Esta é a história do meu pai.

     Quando meus avós se casaram, minha avó tinha 16 anos e meu avô tinha 36 anos. Minha avó teve o seu primeiro filho depois de vinte anos de casada. Enquanto os filhos biológicos não vinham, ela adotou o seu primeiro filho. Assim que adotou o primeiro, filho, ela engravidou. O meu pai foi o quarto filho, o caçula.

     Quando minha avó sentiu as dores para ter o meu pai, ela estava no sétimo mês de gestação. Meu avô então chamou a ambulância, mas no caminho para o hospital o meu pai nasceu.

     Naquela época não existia a incubadora. O que eles fizeram? Levaram  meu pai para casa. Eles moravam no interior. Em casa eles tinham fogão a lenha sobre o qual penduravam toucinho, linguiça, mortadela... Então, encheram uma bacia com água e colocaram em cima do fogão, pegaram outra bacia que forraram com panos limpos e ali colocaram meu pai. Colocaram a bacia em que estava o meu pai dentro da bacia que estava com água: para esquentá-lo. Era como se ele estivesse cozinhando em banho-maria. Quem cuidava dele era a avó, minha bisavó, que morreu com cento e três anos. Ela era filha de escravos, que foram libertados, quando ela tinha oito anos. Meu avô ficava na porta vigiando para que o cachorro não pegasse o meu pai, confundindo-o com um pedaço de mortadela. 
  
(Autora: A. B.)

quarta-feira, 25 de novembro de 2020

UMA IMAGEM PARA AS NOVAS GERAÇÕES

Boca da barra do Acaraú (Arquivo Igawa)

            A imagem acima, parte do acervo gentilmente cedido pela família Igawa, é do começo da década de 1960, tem uns detalhes interessantes, que nos fazem pensar nas transformações do nosso lugar. A primeira coisa a ser notada é um morro que existia entre o bairro do Acaraú e a fazenda Jundiaquara (na época pertencente ao senhor Holanda Maia). A família do Élvio morava bem ali, no pé do morro. É perceptível a destruição dele acontecendo, num estado bem avançado. Hoje só se veem seus sinais se parar por ali e prestar atenção. Toda a terra retirada dele serviu para aterrar as áreas de brejo e mangues do entorno até a Barra da Lagoa, de onde se extraiu por muito tempo a caxeta. Loteamentos foram abertos para acolher os veranistas, que passavam aqui suas férias anuais. Meus tios Antônio e Aristides diziam que, junto com muitos trabalhadores caiçaras, derrubaram e carregaram muitas toras dos brejos dali. Na avenida Yperoig era o local de beneficiamento, na casa do padre. A segunda observação que faço é a ponte, as suas cabeceiras, do fim do império, quando era parte do traçado da ferrovia que ligaria Ubatuba ao Vale do Paraíba. O jornal Correio do Povo, de 1 de outubro de 1890 grafou: 

A's 10 1/2 horas da noite de sabbado último partiram do cáes Pharoux, em diversas lanchas, com destino ao vapor inglez Juno, especialmente fretado pela companhia de navegação Norte-Sul, e na qual se devia fazer a viagem para Ubatuba, os convidados e os diretores da  estrada de ferro Norte de S. Paulo, destinada a servir os municípios de Ubatuba a Taubaté, que ali iam assistir ao batimento da primeira estaca da projetada via-ferrea  (...) As pessoas que nos tinham ido esperar à Prainha, espécie de alfândega da cidade, ficaram até muito surprehendidas ao ver-nos chegar das bandas do norte, precisamente quando tínhamos partido do sul.  A recepção que nos fez o povo de Ubatuba, representado pelas suas primeiras autoridades, deixou-nos muitas e agradabilissimas impressões. Logo ao desembarcar ás 10 horas, foram ao nosso encontro os srs. coronel Francisco Gonçalves Pereira, presidente da Intendência Municipal, padre Vieira da Rosa, vigario da freguezia da Exaltação, dr. Francisco Gonçalves Pereira Filho, engenheiro da estrada de ferro do Norte de S. Paulo, dr. Tavares de Almeida, juiz de direito, dr. Olynto da Siva, juiz municipal, dr. Vasconcellos, promotor público, Victorino da Cunha, delegado de polícia, dr. Esteves da Silva, diretor do Atheneu Ubatubense, o vice-consul portuguez e muitas outras pessôas das mais distinctas do logar.

            Por fim, o que mais deveria ocupar a nossa admiração: a beleza da chegada do rio Acaraú ao mar. Que lindo! Tudo limpo há sessenta anos! A obra que aparece é a salga Iwashi (Igawa SA), do senhor Igawa, pai do nosso amigo Nelson, onde toneladas de sardinhas foram beneficiadas. Em 1980 ainda fiz o recenseamento na empresa, de seus trabalhadores e trabalhadoras. O porto, o nosso Caisão da Ponta Grossa, era o local de desembarque de muitos barcos abarrotados de pescados. Onde foi parar essa natureza, esse ponto de referência do nosso município? Agora, por ali, entre margens sufocantes, corre esgoto, mas ainda tem vidas resistindo naquele ambiente. Aquela fartura de sapinhauás daquele canto, da praia do Acaraú, há muito tempo deixou de existir. Enfim, foi-se o morro do Acaraú e aquele rio lindo que sustentou tantas vidas. O que aproveitamos disso? O que deixaremos às gerações vindouras?


Mensagem da Mary Igawa, esposa do Nelson, moradora na área da antiga salga: 

Muito linda a sua pesquisa, parabéns ! O morro agora é chão e o rio teve decretada a sua morte quando da implantação das ETAs Sabesp e Coambiental, a primeira no governo do Mario Covas, me parece. Porque foi escolhido o Acaraú de porte tão pequeno para dar vazão ao esgoto da cidade não compreendo, se ainda fosse um Amazonas estaria poluído mas não morto. Para a geração vindoura teríamos que ter tratamento efetivo do esgoto, hoje não passa de uma fase em que há apenas uma filtragem grossa  e todo o resto vai para o rio. Dá pra ver o caldo grosso, fétido e escuro saindo de tubulação da Sabesp para o rio; o da Coambiental é água amarelada caindo no curso d'água, parecendo que é mais filtrado.

terça-feira, 24 de novembro de 2020

ESPERANÇAS

 

Minha rabeca (Arquivo JRS)

      O mano Mingo (barbatuba.blogspot.com), assim como nós, tem esperança de tempos melhores para o nosso lugar, para o nosso Brasil. A grande aliada da natureza, do nosso meio ambiente, é a política. Porém, em mãos de quem cultiva o ódio, só coisas ruins podem acontecer. O desafio é entender a maquinação feita para dar esse resultado; desconstruir isso para remar em outro rumo, onde o amor será cultivado intensamente, florirá e dará muitos frutos para encher balaios, repartir com todo mundo e nos saciar. 


Esperanças


Profecia para viola e rabeca:


o manguezal sobreviverá
a tainha vai voltar
não vai faltar farinha para  o pirão
a gente se livra da escória
o usurpador entrega o poder
e volta para a lata de lixo da história.

segunda-feira, 23 de novembro de 2020

ENXERGAR É MAIS QUE VER

Desenhos ao acaso (Arquivo JRS)


          De vez em quando a gente tropeça em coisas valiosas, mas não enxerga. Um desenho na água, umas marcas no sobe e desce das marés, um ajuntamento de fungos na terra, uma imagem na casca da árvores, uma silhueta na folha de caetê, um trançado no ninho do passarinho, um perfume diferente entre tantos perfumes, uma cor entre tantas cores, uma vivência comunitária etc. 

          Talvez tenhamos outras preocupações angustiantes. Pode ser também que os valores tenham se modificados, diferentes de outros tempos atrás. Assim a vida passa sem a gente desfrutar como merecia, sem produzir poesia e sem ver as linguagens diversas no nosso meio ambiente, nas pessoas e na comunidade. Assim nós passamos pela vida.

         Agora mesmo, em prosa com o Santiago, consigo enxergar aquele ambiente no Camburi, sobretudo a mata verdejante daquele entorno. Sinto, aqui distante, aquela comunidade na qual o Seo Genésio se devotou até os últimos dias de vida. Sei que outras pessoas continuam a resistência encampada por ele. Cachoeiras, morros, caminhos, artes, histórias e tudo  mais a marcar aquela comunidade caiçara na divisa entre dois Estados (São Paulo - Rio de Janeiro), são as inspirações do Santiago para escrever empolgantes narrativas que se assemelham a orações, a louvações. Assim se vai registrando tantas coisas que não enxergamos por exigência da modernidade.

        Pensar no Camburi é se lembrar de uma fala do Mestre Genésio, num encontro em torno da luta pela terra em 2001:  

       "Aqui está uma pessoa, um negrão. Eu não vim da África, posso até ter sangue africano, mas eu fui criado ali no Camburi. E não sou só eu, mas todos os  caiçaras que aqui se encontram. Eu tenho certeza do que eu estou falando, eu tenho descendência de quilombo, porque naquela época, não só no meu tempo, mas no tempo da escravatura, vinham muitas pessoas do Estado do Rio de Janeiro se esconder ali no Camburi. Ali eles arrumaram famílias, se formaram, criaram os filhos, muitas famílias vieram para o Camburi". 

        Espero que tudo isso que nos rodeiam, essas poesias, essas falas e essas pessoas inspiradas nos motivem a ver mais a fundo, a enxergar toda essas riquezas da nossa terra e da nossa gente como componentes da nossa utopia.



 

domingo, 22 de novembro de 2020

CANA VERDE

Guaiá no dedo (Arquivo JRS)

                            

              Hoje, para homenagear toda essa gente fandangueira do território caiçara, apresento uma cana verde (cantiga acompanhada de dança de roda), recolhida pelo Olympio, no Ubatumirim, em meados da década de 1970.   Quem cantou foi Mané Mancedo:


Fui cantando p'um caminho/comendo uma guaiabinha. (bis)


Ai bileza, comendo uma guaiabinha, / 

Ôta guaiaba danada, / 

pensava que a coisa vinha./

Cá de roda, / ai de roda, / 

não se encosta na parede.


Por caso de samba de roda/ não se encoste na parede. (bis)


Estribilho: Ai bileza, não se encoste na parede, / 

                  que o salão é muito grande/ 

                  pra dançá a cana verde.


Minha galinha pilota, /minha pata carijó. (bis)


Ai bileza, minha pata carijó, /

minha galinha pois treis ovo,/

minha pata pois um só.


Ai diga lá ao Casimiro,/ 

pois ao Antonho Arinéu. (bis)


Ai bileza, pois ao Antonho Arinéu/

que me mande uma navalha, /

uma toalha e um chapéu.


Preciai-vos, minha gente/ uma forte discussão. (bis)


Balanceada, uma forte discussão/

Já tive com Zé Pritinho,/

dos cantadô do sertão,/ 

logo num dirá com que razão.


Um dia, o Nego mais c'o João fizero combinação (bis)


Ai bileza, fizero combinação/ 

o Nego acerca na popa,/ 

João atira espinhão.


Sô filho do lengo-lengo,/ neto do lengo-lengá (bis)


Neto de lengo-lengá/ 

Sô filho de cobra verde,/ 

neto de cobra corá./

Pego o vento na fulhage/ 

Ai no jorná dexo siná, ih!


Pexe de lagoa é sapo,/  pato de mangue é socó (bis)


e a tainha é bom pexe/ 

qu'eu jamais peguei no anzó.


O sapo c'a caninana trataro de se casá,

mais o sapo c'a caninana/ 

trataro de se embarcá/

Balanceando, trataro de se embarcá/

E o sapo pula no barco,/ 

a cobra pula no ajá/

Balanceando,/ 

no meio tava o macaco/

E o sapo c'a caninana/ 

trataro de se casá.


Toda moça que se casa/ grande castigo merece (bis)


Balanceando,/ 

grande castigo merece/

Pois despreza pai e mãe/ 

e acompanha quem não conhece.


Ti dingo, ti dingo, dingo/ Ti dingô, ti dingo lá (bis)


Balanceando,/ 

ti dingo, ti dingo lá/

Mais como não sabe sabê/ 

mais como não sabe sartá./

Encontrei c'o caxinguelo,/ 

tá comendo uma gambá.


Tô cantando uns versinho, quando mais não faz má (bis)


Balanceando,/ 

mais um poco não faiz má.


Repente: E sentado em cima do estrado,/ dexa o rádio gravá,

               Balanceando,/ 

               dexa o rádio gravá;/

              A cantureia pega verso,/ 

              canto lá e canto cá,/

              Vai pió c'o pé e a mão,/ 

              mais o cantá já tô lá.


Eu comi a paca cara,/ e por cara pagará (bis)

Balanceando


Repente:  mais eu sô filho de Mancedo,/ 

                 pois sô neto do Cabrá./ 

                Eu m'entrei na tirolesa,/ 

                fico aqui, jogo pra lá.


sábado, 21 de novembro de 2020

FARRA DE CAUSOS (XI)

 

Intervenção urbana (Arquivo JRS)



         BAIRRO DAS PALMEIRAS
   

         Eu tinha cinco anos quando meus pais foram morar no bairro das Palmeiras. Meu pai comprou um bar com terreno grande. Antigamente, contavam que aquela casa era assombrada, mas meus pais nem ligavam. Eles diziam: "vocês são bobos, isso não existe".

        Na primeira noite lá não vimos nada. Eu e meus cinco irmãos passamos a noite toda acordados, com lamparina acesa. Ao amanhecer, andamos pelo quintal e conhecemos os vizinhos, que contaram que ali morava uma família: pai, mãe e sois irmãos. O terreno era muito grande cheio de gado e plantação. O bar tinha muito movimento. Os pais deles eram de idade. A mãe muito doente veio a falecer, logo após o pai também. Ficaram os dois irmãos, brigando pelos bens que haviam herdado. Os dois não entraram em acordo de tomar conta de tudo juntos, um queria mandar mais no outro. Até que, num dia, os dois estavam totalmente bêbados e pegaram a brigar. Foram para a porteira com a espingarda na mão e discutiram muito. Até que eles apontaram a espingarda um na cara do outro e um disse: "eu mando mais, eu sou mais velho". O mais novo engatilhou e os dois no mesmo momento atiraram, tirando suas vidas. Chamaram a polícia, que acolheu os corpos lavados de sangue. Parentes venderam o sítio e justo meu pai comprou.

        A noite em que conseguimos dormir foi depois de dias ali. Quando foi por volta da meia-noite,  começamos a ouvir um barulho de coisas sendo quebradas na cozinha, o fogão parecia ser arrastado pela casa toda, os pratos e as panelas eram jogados. Minha mãe se levantou e disse: "quebrou tudo...minhas louças". Acendeu a luz, tudo estava no lugar. Voltou a se deitar e o barulho recomeçou e assim foi a noite toda. Nas noites seguintes tudo se repetia. Ninguém dormia. Eu chorava de medo.

       Até que minha mãe resolveu ir atrás de um padre para rezar pelas almas dos dois que estavam brigando pelos bens, mesmo depois de mortos. O padre veio e rezou. Na mesma noite o barulho parou. Aí nós pudemos dormir em paz, depois de meses de perturbação. Hoje ainda existe o bar com novo dono, que conhece a história mas não a viveu.

        Perto desse bar construíram uma igrejinha em memória dos dois irmãos.

(Autora: M.C.S)

sexta-feira, 20 de novembro de 2020

NARRATIVAS À RESISTÊNCIA


 

Colar da puxada de rede (Arquivo JRS)


                Diante de séculos de domínio da visão eurocêntrica, faz-se necessária refazer narrativas de outras culturas que fazem o Brasil. Não pode uma nação com tamanha diversidade continuar refém de ideologia que favorece poucos e exclui a maioria de nós. Assim, eu selecionei parte do Parecer nº 008/2001 – DJ/ITERPA (Instituto de Terras do Pará), apresentada por Carlos Alberto Lamarão Corrêa no I Seminário Reconhecimento e Titulação das Terras de Quilombos no município de Ubatuba, Estado de São Paulo (2001) para outras reflexões e posturas tão urgentes, sobretudo em relação à posse da terra. Devemos muito ao mano Mingo, na época vereador, pelo evento ocorrido no ginásio de esportes (Tubão). 

 

Numa visão histórica mais abrangente, os quilombos ou mocambos seriam não só locais habitados por negros fugitivos, mas também redutos de alforriados que se traduziam em verdadeiros focos de resistência cultural dos antigos escravos africanos. Esses quilombos representaram  - como representam até hoje -  uma marca indelével de participação efetiva da raça negra no processo de desenvolvimento histórico do povo brasileiro.

A verdade é que não se pode mais calar diante da inquestionável contribuição do negro para o progresso do nosso País, surgindo daí a necessidade de resgatar, perante a nação, a imagem de uma raça atuante, com personalidade, com história, com vida. Registrar essa história, preservando seus traços culturais próprios é contribuir, sem dúvida alguma, para dar referência étnicas à população afro-brasileira, mostrando a saga de um povo marcado pelo sofrimento que lhe foi vergonhosamente imposto pelas elites dominantes ao longo de séculos, mas que, a despeito disso, nunca deixou de representar um dos braços fortes da nação.

É evidente, pois, que as terras tradicionalmente ocupadas pelos quilombolas, a que se refere o artigo 68 do texto constitucional, possuem um valor natural como meio de produção e de sobrevivência. Mas elas são também essenciais como instrumento de identidade cultural e antropológica das comunidades que nela se estabeleceram para escapar à escravização, criando um mundo próprio que cumpre ao Estado defender e preservar, registrando-o no acervo histórico do seu povo.

A propósito do assunto, vale lembrar o registro feito pelo eminente Prof. Girolamo Domenico Treccani, na sua importante obra Violência & Grilagem, de que, “...a partir da década de oitenta, grupos rurais, o movimento negro e entidades de apoio realizaram mobilizações para ver reconhecido o direito às terras tradicionalmente ocupadas pelos quilombolas. Tanto que hoje o conceito jurídico está sendo reinterpretado, gerando uma nova consciência grupal e a redescoberta das raízes histórico-culturais de centenas de comunidades”.

Segundo Acevedo e Castro (citado por Treccani), “o quilombo enquanto categoria histórica detém um significado relevante, localizado no tempo, e na atualidade é objeto de uma reinterpretação jurídica quando empregado para legitimar reinvindicações pelos territórios dos ancestrais, por parte desses remanescentes de quilombos (...). No âmago, estão as questões referentes às chamadas “terras de preto” ou “terras quilombolas”, associadas ao forte sentimento de fazer parte da história de um grupo identificado com um território. O processo de ressemantização da categoria quilombo, tanto política quanto juridicamente, contribui para a afirmação étnica e mobilização política dessas comunidades negras rurais”. (...) Para tanto, porém, é imprescindível que esses locais históricos sejam previamente identificados, definidos e dimensionados, através de estudos e levantamentos antropológicos capazes de comprovar a existência de elos culturais que os vinculem aos remanescentes de antigos quilombos.

quinta-feira, 19 de novembro de 2020

DIA NACIONAL DE ZUMBI E DA CONSCIÊNCIA NEGRA

 

Genésio dos Santos (Capa do livro)

         O senhor André, achando que precisa recuperar o tempo perdido, me questionou quando eu disse que, em Caraguatatuba, no dia 20 de novembro, é feriado. “Que feriado é esse?”.  É o Dia da Consciência Negra, você não sabia?

         Não é só ele que não sabia. No Brasil, país com maior número de negros fora da África, um grande contingente dentre seus habitantes não sabe. Prova disso são os absurdos cometidos por Sérgio Camargo, presidente da Fundação Palmares escolhido por Bolsonaro. Por ordem dele, foram retirados do nosso panteão de pátria mestiça, personalidades negras importantes como Abdias Nascimento, Elza Soares, Martinho da Vila, Tim Maia, Milton Nascimento, Benedita da Silva, Luís Gama, Carolina de Jesus e outras. Até mesmo Zumbi de Palmares foi excluído! Como pode tudo isso passar como normalidade, com poucos comentários contrários e sem proposta para reverter tal situação?

        Esse feriado, André, é desde 2011; trata-se da Lei 12.519 que institui o Dia Nacional de Zumbi e da Consciência Negra, foi decretada pelo Congresso Nacional e sancionado pela presidenta Dilma.

       Toda nação tem necessidade de heróis. Assim, Zumbi é um herói da consciência negra que ainda está em construção, pois até recentemente era apenas “um bandido que enfrentava os fazendeiros”. Ele é ícone da negritude, resistência à escravidão, porque liderava toda as categorias de oprimidos (negros, índios, trabalhadores oprimidos pelos patrões e outras minorias) que acorriam à Serra da Barriga, local ocupada pelos esperançosos na sua figura e na sua proposta. Ícones, símbolos e congêneres são importantes. Por isso eu imagino o quilombo de Palmares, Zumbi e outras lideranças  como uma estrela na nossa bandeira de resistência, como força daqueles que lutaram e ainda lutam contra a sociedade excludente e preconceituosa que permanece marcante no Brasil. A prova maior foi a eleição de um candidato que sempre se destacou por discursos de ódio.

       Um país com tantos afrodescendentes e tantas injustiças tem urgência de ter outra narrativa que eleve o sentimento de negritude. Precisamos dizer como Makota Valdinha: “Eu não sou descendente de escravos. Eu sou descendente de pessoas que foram escravizadas”. Agora, conforme diz a minha amiga Egléia, “é triste ter um capitão do mato na Fundação Palmares”. Como protestar contra tal situação? Não seria função da educação escolar ser mais incisiva na formação da cidadania?

       É isto: Dia da Consciência Negra é dia de se orgulhar da resistência que somos apesar de séculos de opressão. Pode ser também de luta íntima, contra você mesmo que ainda está atrelado à ideologia do invasor europeu cultivada desde 1500 por aqui.

       Quem de nós, brasileiras e brasileiros, não tem em seu código genético uma herança africana? Este é o ponto de partida da consciência negra! O que segue é luta de séculos por igualdade de direitos e oportunidades.

Em tempo: a Fundação Cultural Palmares foi criada em 1988 para promover a preservação dos valores culturais, sociais e econômicos decorrentes da influência negra na formação da sociedade brasileira. Ao saber da sua exclusão, a ex-ministra do meio ambiente, Marina Silva, escreveu que “é preciso encarar isso com altivez de quem sabe que a história não é feita por aqueles que têm uma visão autoritária e que eventualmente estão no poder, mas por aqueles que persistem na democracia e nos valores da civilização”.    

ACABADOR DE CANOA

 

Praia de Yperoig (Arquivo JRS)

 Fundart (Arquivo JRS)

 Canto do Camaroeiro (Arquivo JRS)

 Saco do Sombrio (Arquivo Rê)

       "Meu pai era fazedor de canoa, aprendeu com mais velhos. Élcio, do Saco do Sombrio parecia conversar com as toras enquanto ia esculpindo as embarcações. Carlinho, no Acaraú, tinha sempre uma apreensão risonha ao dar forma nas madeiras, conforme ia moldando as embarcações. Jacó anoitecia nos tablados ali no Trevo, de onde tantos barcos seguiram rumo ao mar". 

      Pensando assim, só para dizer o nome de alguns dentre tantos construtores de canoa caiçara e de barcos, me recordei de uma prosa com os irmãos Dico e Antônio, no jundu do Puruba, nos idos de 1981. Eles, conhecedores do lado norte como ninguém (pois todos os moradores daquelas bandas até pouco tempo eram atravessados na balsa por eles quando se dirigiam ou retornavam da cidade), citaram o Zé Florindo da Almada.

      "Zé Florindo você conhece? Pois é! Zé Florindo é o nosso melhor acabador de canoa. De longe a gente sabe quando uma valente dessas passou pelas mãos dele. Ela corre nas marolas. Ela vence tempo bravo. Ela é segura toda vida. Ela nem treme com traquete. Ainda não se viu canoa feia do Zé Florindo! O finado papai, que Deus o tenha, buscava o homem lá na Almada quando chegava no ponto de encaminhar o acabamento de qualquer canoa. Como quem não queria nada, lá vinha ele com apenas três enxós como ferramentas: um pequeno, um médio e um grande. Também trazia três formões: um largo, um estreito e um goiva. Em poucos dias deixava aquela coisa valiosa, pronta para receber a pintura. Ao fim da tarefa, recebia o pagamento, juntava as ferramentas e rumava de volta para o seu canto, para a sua Almada. Acabador de canoa como ele ainda não se viu por essas bandas. Se um dia você avistar uma canoa muito bonita, que se destaca das outras, pode acreditar que passou pelo talento do Zé Florindo. Se quiser comprovação, passe a mão por debaixo do assento da proa. Se ele foi o acabador, em torno do buraco do mastro tem duas letras escavadas com esmero: JF. Você irá sentir a marca do mestre nas pontas dos dedos".

          

quarta-feira, 18 de novembro de 2020

O TEMPO DA GENTE

 

Rio Grande de Ubatuba, a Barra dos Pescadores (Arquivo JRS)

                Agora é o tempo da gente sim! Como vamos resistindo, sendo parte desta sociedade massacrante de tradições vitais? Eu enumero três passos para um caminho de muitos desafios.

         Primeiro: devemos cultivar esta certeza de que a cultura caiçara é uma tradição vital. Segundo: precisamos, cotidianamente, apurar a nossa narrativa, pois a nossa fala tem muita força. Terceiro: praticar nossos traços culturais é aumentar a nossa auto-estima e contagiar mais gente, trazer pessoas para o nosso lado. Pronto! Está garantida a vitalidade da nossa cultura! Parece fácil, né? Eu garanto que não é tão fácil assim.

      Por volta de 1875, um pensador alemão (Nietzsche) escreveu que o seu tempo já sofria de "uma cultura geral, mas sem civilização e sem nenhuma unidade de estilo". Com isso estava barrado a possibilidade de usar bem o pensamento, a reflexão. Assim estamos nós hoje; há uma massificação cultural. Muitas culturas locais estão desaparecendo por conta da globalização. Quando a gente escuta os mais velhos dizendo que os mais novos têm vergonha do nosso jeito, das nossas danças e costumes, é isto que ocorre: de tanto serem bombardeados por coisas de fora pela televisão, pela internet, pelas músicas, por turistas alienados etc., vai-se perdendo nossas raízes, nossos vínculos culturais. Escutei o seguinte do Eduardo, no Camburi: "Essa moçada, se você chamar para limpar o caminho no qual todos passam, não é capaz de pegar na enxada porque tem vergonha dos turistas se tecendo por aí". Tem também a força contrária de muitas religiões, sobretudo do cristianismo reformado. Seo Zé Pedro, mestre cirandeiro de outros tempos da Picinguaba, me respondeu (em 1992) a respeito da razão de ter se acabado os folguedos por lá: "Antigamente, quando a gente dançava, só tinha a capela na praia, com padre vindo uma vez ou outra. Agora tem umas quatro igreja diferentes, todas elas pregando que dançar é pecado, que isso é pecado, que aquilo é pecado... Desse modo foi se acabando tudo. Tinha dança de São Gonçalo, cantoria de Reis na época do Natal. Muita gente seguia a correria da Folia do Divino. Função não faltava. A noite era pouca para ciranda, cana verde, marrafa, xiba, recortado, cachorro do mato, canoa, calango e mais outras danças. Agora não se vê mais nada disso tudo.  Tudo é pecado, dizem que não pode haver. Agora, roubar pode, viver no vício pode, passar o dia inteiro na praia e pela costeira sem querer trabalhar pode. Aonde vamos indo?".

        Vamos pensar nisto: tendo uma unidade de estilo (o viver caiçara) se cultiva a civilização. Entre nós  - ainda bem!  -   estão elementos favoráveis a uma unidade. Exemplos: grupos de fandangos, associações culturais e preservacionistas, grupos indígenas, quilombolas, comunidades tradicionais de caiçaras etc. Tudo é resistência a uma ordem mundial que deseja sufocar as culturas locais em nome da exploração capitalista, do lucro fácil acima de tudo. Serão os aspectos valorativos de cada um desses grupos que irão formar uma unidade se iluminados por uma reflexão permanente. Assim forçaremos uma outra ordem política, democrática, de partilha e de festa; teremos uma civilização que garantirá as belezas do nosso lugar e as riquezas de nossas raízes caiçaras. Agora me digam vocês: o grupo que acabou de ser eleito (prefeita e vereadores) estão afinados com os nossos desejos de civilização? Os partidos que eles representam têm propósitos que desejam a ordem igualitária ainda mantida em nosso ser caiçara? Que tudo isso sirva de orientação em uma reflexão permanente desde já. Ah! Vamos torcer para quem se corrompeu pela ideologia das classe dominantes conseguir se libertar e voltar para o nosso lado. 

terça-feira, 17 de novembro de 2020

CANTO DOS DEFUNTOS

 

Cemitério do Ubatumirim (Arquivo Mendonça)


          Em outros tempos, quando a lonjura de tudo parecia maior em Ubatuba, havia estratégias diferentes até mesmo para sepultar nossos mortos. Além desses cemitérios atuais (Camburi, Ubatumirim, Maranduba, Centro, Ipiranguinha), existiam outros (Raposa, Cedro, Lagoinha, Praia Vermelha, Horto...). Hoje, a municipalidade de vez em quando despacha alguém para uma limpeza geral nesses locais que há tempos serve de abrigo aos finados. Nos mais centrais há ao menos dois funcionários permanentes, pois os enterros seguem numa regularidade. Era dizer do papai que "para nascer gente tem de morrer gente, senão não cabe neste mundo". 

          O Olympio, em 1975, recolheu a seguinte informação a respeito do cemitério do Ubatumirim: "está localizado no Canto do Saco [por isso era chamado também de Canto dos Defuntos], numa faixa de mangue aterrada até dois metros acima do nível do mar, com aproximadamente 900 metros quadrados. Segundo os mais antigos, esse aterro foi feito pelos escravos do capitão Cabral, na metade do século XIX. No Canto do Saco corre o rio Nhengui, o rio do cemitério".

          O saudoso Antônio Maior se referia sempre ao Canto dos Defuntos com o maior respeito: "Lá tem muita gente minha enterrada. O padre Pio de vez em quando se retira lá para rezar. É fácil de se chegar lá sim. Vai nessa direção, andando toda a vida, quando chegar no Canto dos Defuntos, na subidinha do morro, é o chão sagrado, onde enterramos nossos mortos. Sempre tem gente nossa zelando pelo lugar. O senhor, é quase certo, vai encontrar alguém por lá".

segunda-feira, 16 de novembro de 2020

FARRA DE CAUSOS (X)

 

Meu filho na trilha do Baguary (Arquivo JRS)

SEMANA SANTA

          Fomos todos para roça, estava uma noite muito bonita. Chegando lá ficamos conversando perto do fogão de lenha. Assamos carne e tomamos uma cerveja gelada.

          Meu irmão levantou-se e disse: "Vou no mato buscar um tatu". Minha mãe não gostou : "Não vai não, é semana santa, não pode caçar". "Eu não vou caçar, só vou buscar a gaiola. Se o tatu tiver lá eu trago, se não tiver nada eu venho logo", ele explicou. "Fica aqui com a gente, bobagem ir lá", a mãe insistiu. "Eu não vou demorar", disse ele e saiu.

         Ficamos lá e meu irmão, teimoso, foi. O tempo foi passando e já era tarde, quase uma hora da madrugada. Foi quando chegou o Almir, branco, carregando um bambu. Olhamos para ele e perguntamos: "O que aconteceu? Você está pálido!". "Vocês não vão acreditar no que vou contar! Eu subi no mato e quando cheguei perto da gaiola, a gaiola começou a mexer. Eu pensei que o tatu estava lá comendo, aí eu resolvi subir na árvore para esperar a porta da gaiola cair. Como estava demorando, subi num galho da árvore perto de um bambuzeiro. De repente o bambuzeiro começou a balançar e fez um barulho muito forte ali, igual a uma serra elétrica. Eu comecei a ficar com as pernas moles. Não ventava, era só ali no bambuzeiro, mas era de sujar as calças. Comecei a rezar e pedir para Deus ter piedade de mim, que aquilo parasse, que eu ia embora e soltava o tatu...eu quase chorei de pavor. Foram horas de barulho. A impressão que dava era que estava tudo caindo, e o bambu sendo serrado, um a um. Quando parei de rezar, o barulho parou. Desci correndo e larguei tudo. Vim embora".

        Minha mãe falou: "Falei para não ir lá, né?"

        Fomos dormir e, ao amanhecer o dia, fomos ao lugar e os bambus estavam todos retalhados, cheio de marcas, parecia trabalhado. Era incrível ver aquilo, ninguém acreditava no que a assombração fez em todos os bambus. Pegamos um e guardamos para mostrar.

       Meu irmão nunca mais conseguiu esquecer o que se passou. A gaiola ficou em mil pedaços. Nunca mais ele caçou. Todos que veem o bambu não acreditam.

(Autora: MCS)


domingo, 15 de novembro de 2020

CHEGOU O PÃO

Aquarela da Má (Arquivo JRS) 

               Escuto um falatório na rua, parece em frente ao portão da nossa casa. Ah! É de dia de eleições municipais!  Em toda ocasião dessa, um mundo de gente faz volume pelas vias, entrega papeis ("santinhos") de candidatos e quer convencer os eleitores que tal fulano é bom, precisa de seu voto etc. Pobre de quem se sujeita a isso. É usado, mas talvez nem queira saber disso. Dessas pessoas, diria o Velho Argemiro: "Vão se emburacando no buraco do tatu".

               Eu era criança quando o meu pai, simpático do MDB (Movimento Democrático Brasileiro), outro partido político, além da Arena (Aliança Renovadora Nacional), no período da ditadura (1964-1985), fazia parte de tímidas e escondidas  manifestações. Era tempo torturante para quem enxergava o quadro horrível  e lutava pela democracia. Anos de chumbo. Vidas ceifadas. Juventude militante e aguerrida. Período de profundas marcas, sem justiça até hoje. Decorre disto o que vemos: torturadores e aliados daquele triste período no protagonismo atual, no poder federal. 

              Celino Carioca, cortador de pedra e caseiro do doutor John e da dona Tatinha, no Perequê-mirim, era o mais exaltado opositor do sistema que conheci, mas nunca se candidatou a nada. Ele, parando de vez em quando na roda da molecada, explicava um monte de coisas, nos politizava. "Vocês serão os eleitores do amanhã. Precisam saber que o modelo de governo que estamos engolindo agora não é certo. Como pode ser bom quem persegue e mata quem pensa diferente? Logo tem eleições municipais. No dia, vocês verão, vem condução aqui buscar os adultos para a votação. Cada candidato já está contratando caminhões para leva o pessoal até a cidade. Chegando lá, vocês acham que vão votar em quem? Lógico que naquele que ofereceu a condução! Como se chama isso? É compra de voto! Eu espero muito de vocês, da geração mais nova. Não deixem de usar os seus direitos. Não se deixem ser usados de tanto em tanto tempo por gente que não quer a verdadeira política. Não se vendam em troca de favores individuais. Está em vossas mãos vencer a opressão. Não sejam massa de manobra, não tenham vida de gado". A gente escutava porque o Celino era legal com todo mundo. Um pouco de tudo aquilo sempre entrava em nossas cabeças, formava nossos pensamentos e atitudes. Papai repetia de vez em quando: "O Carioca agora é caiçara".

            Hoje, a julgar pelo alarido lá fora, estamos bem longe de deixar de ser massa de manobra. O Velho Argemiro dizia que "política é coisa para ser ensinada desde as primeiras mamadeiras das crianças". Logo mais, se repetir os outros anos, passa alguém distribuindo pão com mortadela e refrigerante barato aos distribuidores de "santinhos". Debaixo da sombra das palmeiras da nossa calçada, eles parecerão esganados pela iguaria. Assim se escolhe os melhores para zelar pelos interesses da coletividade. Agora, acabei de escutar bem claro, acima das demais vozes: "Oba, chegou o pão, minha gente!"

              

sexta-feira, 13 de novembro de 2020

FARRA DE CAUSOS (IX)

Outra açucena (Arquivo JRS)

          Meu pai me contou que quando ele tinha dezessete anos, foi pescar no rio do Ubatumirim com o cunhado dele.
          Era madrugada quando veio uma luz pequena e forte do tamanho de uma azeitona. Quanto mais a luz se aproximava, mais ela crescia. Um pouco distante deles havia várias árvores e a luz começou a subir em uma delas. Começou a pegar um fogaréu e a cair galhos e mais galhos.
         Eles ficaram tão assustados que até cortaram caminho para ir embora.
         No dia seguinte, ao amanhecer, o meu pai voltou ao local para ver como estaria o lugar. Quando chegou lá ficou impressionado: estava tudo como se nada tivesse acontecido. A árvore estava no lugar com todos os seus galhos e as folhas bem verdinhas.

(Autora: C)

 

quinta-feira, 12 de novembro de 2020

PROSA NA BICA

 

Fonte da Amizade (Arquivo JRS)


                “Ainda não conheci ninguém que não anseia por uma boa talagada de água boa, fresquinha, límpida e pura como esta daqui, assim que se levanta da cama. Você conhece?”. Disto partiu a prosa, a nossa prosa (eu, Tarcísio e Afonso) enquanto enchíamos os vasilhames bem cedo, na Fonte da Amizade, acertadamente nomeada nos idos tempos pelo responsável da área entre nós conhecida por Horto Florestal. Gentil Godoi era o engenheiro da época. Aqui em Ubatuba ele começou como estudante, fazendo pesquisa nos canaviais da Fazenda Velha, onde era produzida a pinga Ubatubana. Nenê Chieus me afiançou que o Gentil era um dos jovens, na empreitada, da faculdade de Piracicaba. Eles queriam entender porque razão os pés de cana davam floradas vistosas, mas não desenvolviam sementes no clima do nosso município.

                Quem começou a prosa foi o seo Tarcísio.  De nós três, eu era o mais jovem. O “Velho” está com 82 anos. Em sua bicicleta bem usada ele fez uma armação com cabo de vassoura e corda capaz de aguentar 64 litros de água. As garrafas e garrafões são amarrados em pares, equilibrando a “máquina”.  Este tanto de água quase atura um mês inteiro para o velho aqui. Eu sou sozinho. Além de beber, uso também dela para fazer café”.

                Seo Tarcísio veio há muito tempo de Pindamonhangaba, no Vale do Paraíba. Aqui criou dois filhos, envelheceu; agora, sozinho, diz que se vira. “Eu vivo bem. Sou aposentado. Cozinho apenas uma vez por mês. Congelo tudo em potinhos. Cada um é a conta certa de um dia. Assim economizo gás, tempo e mais outras coisas. Não deixo a minha casa além do portão se não houver precisão. Não assisto televisão, não possuo celular, não gosto de futebol e nem de política. Ainda bem que esse tempo acaba logo”. Neste momento eu entrei: “Desculpa aí, seo Tarcísio, mas o senhor não gosta é da politicagem, desse tempo que aparece um monte de gente no nosso bairro, no portão da nossa casa, fazem todo tipo de barulho e enchem tudo com uma montoeira de papel. Essa gente, com poucas exceções, está apenas querendo enganar a gente. Política é outra coisa. Por exemplo: este lugar (Horto) está sendo abandonado há mais de duas décadas pelo governo do Estado de São Paulo. O senhor acha certo isso? Se interessar para mudar isso é política. Porque política é isto: a arte de cuidar da cidade, do espaço coletivo. Politicagem é quando apenas os interesses de um pequeno grupo se destacam, apagando o que seria um bem comum, de mais gente. Politicagem está no lado oposto de interesse coletivo. Por isso que só em época de eleições essa gente surge, fazendo o jogo favorável aos poderosos. Um lugar deste, ainda bem público, está sendo abandonado para mais tarde ser entregue à iniciativa privada. Quando chegar nesse ponto, nós não entraremos mais aqui para pegar água na bica.  Por não se interessar por política, um bem público torna-se bem particular. Digo mais: está vendo essa sujeirada (garrafas, plásticos, lata de alumínio...) é falta de uma educação focada na política, no nosso dever em relação ao meio ambiente. A gente ajunta sempre, mas essa gente não deixa de continuar sujando”. Nessa altura da minha fala, o Afonso se intrometeu: “É isso mesmo! O que você está dizendo é certo mesmo, Zé. Sabe que na semana passada, quando eu estava esperando a minha vez de encher o garrafão, um indivíduo falava o tempo todo, defendia um candidato, acusava outro etc. Parecia ser um cidadão de verdade, entendido da política da cidade. Só que ao sair, já estava deixando um garrafão rachado ali, na natureza. Eu não aguentei e perguntei: ‘você vai deixar o seu lixo aqui?’ Ele ficou sem jeito, pegou aquela porcaria que veio da casa dele e saiu sem dizer mais nada. Mas quem me garante que ele não jogou logo adiante, no mato mesmo? Eu concordo que é preciso entender e aperfeiçoar a política. Tudo ao nosso redor depende da política. Que ela tem de se tornar uma boa política é verdade mesmo!”. O “Velho” Tarcísio só balançou a cabeça. Depois, com as cargas feitas, nos despedimos até a próxima prosa na bica.

quarta-feira, 11 de novembro de 2020

AH, MARDITA!

 



Cacho de banana no meu quintal (Arquivo JRS)


                Parece que foi ontem que uma conhecida, daqui mesmo de Ubatuba, ao chegar da Argentina, onde cursava alguma especialidade na área de Pedagogia, foi logo dizendo que a imagem do nosso país estava muito ruim na nação vizinha por conta do governante atual [que, merecidamente, poderia ser chamado de desgovernante]. Eu escutei e acrescentei em pensamentos: “Não é só lá que a condição é essa. No mundo inteiro, onde os princípios civilizatórios predominam, nós estamos mal falados. O que vivemos agora, sob este governo, é uma crise civilizatória. Mas eu não me esquecerei nunca que você, pretensamente bem instruída, votou neste homem, neste monstro de esgoto que está no governo agora. Você fez a sua escolha para ele ser o líder máximo da Pátria”. Exclamariam os Galãs Feios: “Você votou no Excrementíssimo!”. Dos outros que estavam na roda de conversa, eu sabia de mais gente que participou do mesmo ato de pouca inteligência e de muita maldade.

                Hoje, refletindo sobre o descaso do presidente do Brasil pela ciência, impedindo a continuidade da pesquisa da vacina contra a epidemia do momento porque tem a participação da China, penso na dor, no fenômeno da dor. Muitos que não estão sentindo dor pela perda de pessoas queridas, de gente como nós, será que percebem a felicidade que é de não sentir dor?  Rubem Alves escreveu: “das grandes invenções da ciência, eu acho que a mais maravilhosa de todas foi o domínio da dor”.

                À referida conhecida e demais congêneres que apoiaram ou apoiam posições reacionárias, recomendo: reflitam mais, sobretudo nos momentos de dor, quando anseiam por remédios eficazes. Saibam que eles (médicos, remédios, aparelhos etc.) são os saberes da ciência. Então, que “lógica inteligente” é essa de escolher líderes declaradamente contra a ciência e contra a democratização dos bens para todos? “Ah, mardita! Você também foi criada com peixe e farinha como eu!”

 





terça-feira, 10 de novembro de 2020

A CULTURA DO MAR

 


                                                               Canoa Caiçara SSTA descansando em Brest. França (foto: Serge Santelli

A cultura do mar

Organização não-governamental do litoral paulista luta pela valorização das tradições caiçaras

ROBERTO HOMEM DE MELLO

Dois brasileiros despertaram especialmente a curiosidade dos visitantes do Encontro dos Marinheiros e Embarcações do Mundo, realizado em julho do ano passado na cidade francesa de Brest. Munidos apenas de machado, prumo e enxó (instrumento de cabo curto com chapa de aço cortante), Geovani Oliveira e Moisés de Souza transformaram, em oito dias de trabalho, um tronco de guapuruvu, trazido do Brasil, numa canoa de 7 metros de comprimento.

Ao dar forma exata à madeira bruta, sem o auxílio de compassos ou computadores, Geovani e Moisés estavam apenas utilizando o conhecimento e a técnica que lhes foram transmitidos por seus pais, também canoeiros (construtores de canoas), na praia do Bonete, em Ilhabela, litoral norte do estado de São Paulo. Nesse local, a canoa não é só instrumento da pesca, fonte principal de alimentos da comunidade. É também o único meio de transporte disponível. As pequenas embarcações levam regularmente peixe, banana e farinha de mandioca para vender em São Sebastião, a cidade mais próxima no continente, e trazem de volta arroz, sabão, sal e até sacos de cimento, tijolos e bujões de gás.

A praia do Bonete, embora esteja recebendo um número crescente de turistas, ainda resiste como uma das últimas comunidades tipicamente caiçaras, dependentes da pesca, da pequena agricultura e do extrativismo. Antes, comunidades como essa se espalhavam por todo o litoral e mantinham traços culturais comuns na faixa da costa entre Santa Catarina e o Rio de Janeiro. Hoje, devido à rápida transformação que o turismo e a febre imobiliária operaram em seu ambiente de vida, a identidade dessas populações está sendo cada vez mais diluída e suas tradições começam a ser esquecidas pelos próprios caiçaras, principalmente os mais jovens.

Cultura e sobrevivência

Mas há quem se preocupe em evitar o desaparecimento da cultura caiçara. O maior foco de resistência é justamente a organização cujo trabalho despertou a atenção não só dos franceses de Brest, mas também de instituições e universidades do Canadá, Chile, Cuba e outros países, além de ter tido ampla repercussão no Brasil. Trata-se do Projeto Cultural São Sebastião Tem Alma, sociedade civil sem fins lucrativos criada pela advogada e diretora teatral Teresa Aguiar em 1989.

Teresa e a antropóloga Ariane Porto, que coordenam o projeto, no início se dedicavam principalmente a registrar, recolher e estimular manifestações culturais como o artesanato, a música e as festividades tradicionais. Mas, numa ocasião em que se empenhavam pelo ressurgimento de uma dessas festas, a congada, que não se realizava no local há mais de 30 anos, elas escutaram de um antigo morador que, devido às dificuldades com a pesca artesanal, "ninguém estava mais com cabeça para essas coisas".

Esse depoimento somou-se a outros semelhantes, e reforçou uma ideia que passou a nortear o projeto: "É impossível trabalhar com recuperação cultural de uma população se ela está sendo descaracterizada em suas atividades fundamentais de economia e sobrevivência", diz Ariane.

A organização procurou então descobrir quais eram os principais obstáculos que afligiam os caiçaras. Com esse objetivo, promoveu em 1990 o Congresso Caiçara e o Encontro das Ilhas. Nesses eventos, foram reunidos pescadores, autoridades, ambientalistas, estudiosos e interessados em geral, que debateram - "de igual para igual", segundo Ariane - os problemas da região e elaboraram documentos com propostas para resolvê-los.

Medo da polícia

Um dos obstáculos levantados, por incrível que pareça, era a legislação ambiental, que, por estabelecer como crime inafiançável a retirada de qualquer espécie da Mata Atlântica, impedia algumas das atividades tradicionais e fundamentais dos caiçaras, como fazer roças de mandioca e construir canoas.

Os responsáveis pelo cumprimento dessas leis ainda conseguiam piorar a situação. A organização colheu depoimentos de canoeiros e artesãos que tinham sido "presos, algemados, alguns espancados, tratados como criminosos" pela Polícia Florestal, diz Ariane.

Isso deixou os caiçaras retraídos. Ariane procurou pessoas que sabia serem canoeiros, para convidá-los para atividades do projeto. Eles desconversavam, com medo.

A organização, aproveitando o contato proporcionado pelo Encontro Caiçara, fez acordos com o Ibama (Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e dos Recursos Naturais Renováveis) e a Polícia Florestal, para que, mediante vistoria prévia, fosse autorizada a utilização de árvores caídas naturalmente ou condenadas - o guapuruvu, por exemplo, depois de cerca de 30 anos de idade costuma ser atacado por brocas e não demora a morrer, diz Ariane.

Apesar do avanço obtido com esses acordos, a burocracia permaneceu muito complicada. Ariane conta o caso de um canoeiro que a procurou "desesperado". Um jequitibá estava caído no seu terreno e ele queria usá-lo para fazer uma canoa. A árvore havia sido derrubada por um raio, mas ainda assim era necessária uma verdadeira via-crúcis para obter a autorização para utilizá-la: exigia-se um croqui (o morador não tinha ideia do que fosse isso) mostrando onde estava a árvore tombada, que deveria ser encaminhado ao Departamento de Proteção aos Recursos Naturais (DPRN). Depois disso, era preciso esperar uma autorização da Polícia Florestal e por fim uma vistoria do Ibama.

O projeto assumiu a causa, mas foi em vão. Depois de seis meses de vaivém burocrático, quando tudo enfim ia se resolver, o jequitibá já estava podre...

Esse esforço, porém, não foi em vão, pois representou o germe de um dos trabalhos de maior repercussão da entidade: a revalorização do ofício de canoeiro. Conhecidos os trâmites da burocracia, a organização repetiu o processo e conseguiu para si mesma um tronco de guapuruvu. Ele serviria para "levar o trabalho dos canoeiros para o espaço público", diz Ariane. Armou-se um abrigo para construir canoas em plena praça do fórum de São Sebastião, onde o canoeiro Antônio Pequeno, de 75 anos, começaria a esculpir uma canoa.

Os incidentes que ocorreram no lançamento dessa ideia provaram que ela era necessária. Os golpes do machado de Antônio Pequeno no tronco despertaram imediatamente a ira de pessoas reunidas por uma manifestação ecológica (era o Dia do Meio Ambiente). "Fomos chamados de assassinos", diz Ariane.

"Mas com o tempo", afirma ela, "conseguimos convencer a população de que não é o canoeiro que destrói a Mata Atlântica."

As atividades da organização, sempre documentadas em vídeo, começaram a ser veiculadas na mídia. A partir daí, a abrangência do trabalho, que já havia começado a aumentar, não parou mais. Depois do Encontro das Ilhas, a entidade organizou dois encontros nacionais e um internacional - "sem abandonar aquela mesma estrutura da primeira reunião, dando direito de voz a todos", diz Ariane - e hoje acumula as mais diversas iniciativas. Dentre elas, a que hoje mais empolga Teresa Aguiar é um ambicioso programa de repovoamento do mar, nos moldes de trabalhos internacionais bem-sucedidos. O objetivo é oferecer condições para que a fauna marinha se reproduza em proporções muito maiores que as de hoje e com isso contribuir para a recuperação da pesca artesanal.

Outro trabalho da organização é o apoio às comunidades isoladas da região - nas ilhas de Búzios, Vitória e Montão de Trigo e na praia do Bonete. Além de visitá-las periodicamente com equipes de assistência médica, odontológica, etc., o projeto reabriu a escola da ilha Vitória, onde também promoveu, durante dois meses, um "mutirão de alfabetização", em parceria com a Faculdade de Educação da Universidade de São Paulo.

Os novos caiçaras

Das múltiplas atividades em execução pela organização, talvez a mais regular seja a voltada aos alunos da rede pública municipal de São Sebastião, que se realiza desde 1990. Com patrocínio do Fundo Nacional do Meio Ambiente, a organização contrata entre os membros de cada comunidade professores para transmitir aos alunos de 14 escolas, como matéria optativa, as técnicas tradicionais da cultura caiçara. Entre elas o artesanato em caixeta, taboa e barro, a construção de canoas, a confecção de redes e a própria pesca, além de um curso de língua e cultura guarani, este destinado aos índios da reserva de Boracéia.

Essas aulas podem contribuir para derrotar uma das maiores ameaças à cultura caiçara: a apatia das novas gerações, que vivem em ambientes cada vez mais urbanizados, em relação ao legado cultural de seus pais.

Jaime Moreira da Silva, pescador da praia das Cigarras, em São Sebastião, reclama dos jovens, que em sua opinião não se interessam pela pesca artesanal. "Ninguém quer sujar a roupa, rachar o pé", diz.

Jaime não é o único a se queixar. Quando Ernesto de Sousa, pescador nascido na praia do Bonete, convida os rapazes que frequentam as rodas de pescadores para pescar, ninguém quer. "Eles têm medo. Acabou a coragem." Mas não é uma empreitada fácil, pois Ernesto é exigente. Para ele só se pode considerar pescador aquele capaz de passar dez, 15 dias seguidos no mar.

Na beira da maré

Mas o que é ser caiçara, afinal? Uma conversa com eles é uma boa oportunidade de saber quais as referências que utilizam para definir-se. Para Ernesto, caiçara é "quem mora na beira da maré". Mas o verdadeiro caiçara, assegura, se distingue "pela fala". Ernesto, usando o sotaque melódico a que se refere, conta que tem prazer em pescar e considera a vida no mar sinônimo de saúde. "Volto do mar com uma fome...", diz. Já foi remando de São Sebastião até Santos - uma distância de cerca de 100 quilômetros pelo mar, viagem que hoje, aos 76 anos, ainda pretende repetir - agora, com motor.

"Bato no peito que sou caiçara", diz o pescador Reinaldo dos Santos, 51 anos, do bairro de São Francisco, em São Sebastião. Como prova da identidade cultural de que se orgulha, Reinaldo cita um prato tradicional esquecido por muitos mas ainda presente em sua casa: pirão de peixe com banana verde. Nele estão presentes as principais riquezas alimentícias do litoral: o peixe, a farinha de mandioca e a banana, que é cozida no caldo do pescado. "É um prato forte", diz.

Jandira de Oliveira Santos (ver texto abaixo), pescadora da praia da Enseada, em São Sebastião, também oferece um motivo gastronômico para identificar-se como caiçara: "Não como filé. Só gosto de peixe com espinhas".


Aula prática

Jandira de Oliveira Santos é o nome de casada de Jandira Peixoto de Oliveira, hoje separada. Em 1991, aos 45 anos, operou uma grande transformação em sua vida: foi morar sozinha, na praia da Enseada, extremo norte de São Sebastião (SP), e adotou uma profissão: pescadora. Já trabalhava e pescava antes, mas hoje é diferente. Vive no mar, vive do mar. Tira de madrugada sua canoa do abrigo, coloca nela 300, 400 metros de rede e rema para o fundo. Lá está a solução de todos os problemas. "Quando chego a um lugar deserto, aquele marzão, a lua iluminando, olho para um lado, para o outro, não vejo nada, ninguém, penso: 'Este mar é meu'. Fico muito contente", diz Jandira. Às vezes dorme na canoa esperando a hora de puxar as redes. Às 7:30, 8:30 da manhã, chega à praia com os peixes quando outros pescadores, diz, ainda estão se preparando para sair.

Caminhando pela grande faixa de água rasa, pelos calcanhares, que caracteriza a praia da Enseada, ela conta como se iniciou na pesca. Criança, ganhou uma canoa "em que mal cabia", diz ela. Pescava com o pai, de linha e anzol.

De repente, Jandira interrompe a história. "Ali deve ter siri escondido", diz, ao ver uma lata de tinta tombada, semiencoberta pela água. Silêncio. Ela enfia a mão dentro da lata cheia de areia e de lá retira um siri. "Molinho, olha que beleza!", diz ela.

Como sabia? Muito simples: ela mostra ao lado da boca da lata um casco de siri. Ora, os siris, explica Jandira, precisam livrar-se da casca dura quando crescem. Nesse momento ficam ao mesmo tempo mais apetitosos e mais indefesos contra as bicadas das garças - havia, inclusive, uma por perto. Por isso precisam se proteger. Um casco de siri próximo a um bom esconderijo é uma charada fácil para os que, como Jandira, decifram o mar.

Uma lição puxa a outra. "Olha onde um siri grande está enterrado", diz, desta vez indicando uma área que aparenta ser exatamente igual às outras em torno. Mas não era. Ela tira de lá mais um siri e mostra a pista da descoberta. "Está vendo essa farinha branca?" Depois de certo esforço, orientado pela pescadora, é possível distinguir da areia também branca aquilo que ela chama de "farinha": outro subproduto da mesma transformação de siris pequenos e duros em grandes e moles.

Esses conhecimentos de Jandira seriam transmitidos apenas aos filhos ou às pessoas mais próximas se ela não tivesse realizado recentemente outra mudança em sua rotina. Agora, além de pescadora, ela é professora de pesca, no projeto São Sebastião Tem Alma.

(Transcrito de https://www.sescsp.org.br/online/artigo/9_A+CULTURA+DO+MAR, em 07/11/2020, seguindo o exemplo do Peter, http://canoadepau.blogspot.com/).