Canoa Caiçara SSTA descansando em Brest. França (foto: Serge SantelliA
cultura do mar
Organização
não-governamental do litoral paulista luta pela valorização das tradições
caiçaras
ROBERTO
HOMEM DE MELLO
Dois
brasileiros despertaram especialmente a curiosidade dos visitantes do Encontro
dos Marinheiros e Embarcações do Mundo, realizado em julho do ano passado na
cidade francesa de Brest. Munidos apenas de machado, prumo e enxó (instrumento
de cabo curto com chapa de aço cortante), Geovani Oliveira e Moisés de Souza
transformaram, em oito dias de trabalho, um tronco de guapuruvu, trazido do
Brasil, numa canoa de 7 metros de comprimento.
Ao dar
forma exata à madeira bruta, sem o auxílio de compassos ou computadores,
Geovani e Moisés estavam apenas utilizando o conhecimento e a técnica que lhes
foram transmitidos por seus pais, também canoeiros (construtores de canoas), na
praia do Bonete, em Ilhabela, litoral norte do estado de São Paulo. Nesse
local, a canoa não é só instrumento da pesca, fonte principal de alimentos da
comunidade. É também o único meio de transporte disponível. As pequenas
embarcações levam regularmente peixe, banana e farinha de mandioca para vender
em São Sebastião, a cidade mais próxima no continente, e trazem de volta arroz,
sabão, sal e até sacos de cimento, tijolos e bujões de gás.
A praia
do Bonete, embora esteja recebendo um número crescente de turistas, ainda
resiste como uma das últimas comunidades tipicamente caiçaras, dependentes da
pesca, da pequena agricultura e do extrativismo. Antes, comunidades como essa
se espalhavam por todo o litoral e mantinham traços culturais comuns na faixa
da costa entre Santa Catarina e o Rio de Janeiro. Hoje, devido à rápida
transformação que o turismo e a febre imobiliária operaram em seu ambiente de
vida, a identidade dessas populações está sendo cada vez mais diluída e suas
tradições começam a ser esquecidas pelos próprios caiçaras, principalmente os
mais jovens.
Cultura e sobrevivência
Mas há
quem se preocupe em evitar o desaparecimento da cultura caiçara. O maior foco
de resistência é justamente a organização cujo trabalho despertou a atenção não
só dos franceses de Brest, mas também de instituições e universidades do
Canadá, Chile, Cuba e outros países, além de ter tido ampla repercussão no
Brasil. Trata-se do Projeto Cultural São Sebastião Tem Alma, sociedade civil
sem fins lucrativos criada pela advogada e diretora teatral Teresa Aguiar em
1989.
Teresa e
a antropóloga Ariane Porto, que coordenam o projeto, no início se dedicavam
principalmente a registrar, recolher e estimular manifestações culturais como o
artesanato, a música e as festividades tradicionais. Mas, numa ocasião em que
se empenhavam pelo ressurgimento de uma dessas festas, a congada, que não se
realizava no local há mais de 30 anos, elas escutaram de um antigo morador que,
devido às dificuldades com a pesca artesanal, "ninguém estava mais com
cabeça para essas coisas".
Esse
depoimento somou-se a outros semelhantes, e reforçou uma ideia que passou a
nortear o projeto: "É impossível trabalhar com recuperação cultural de uma
população se ela está sendo descaracterizada em suas atividades fundamentais de
economia e sobrevivência", diz Ariane.
A
organização procurou então descobrir quais eram os principais obstáculos que
afligiam os caiçaras. Com esse objetivo, promoveu em 1990 o Congresso Caiçara e
o Encontro das Ilhas. Nesses eventos, foram reunidos pescadores, autoridades,
ambientalistas, estudiosos e interessados em geral, que debateram - "de
igual para igual", segundo Ariane - os problemas da região e elaboraram
documentos com propostas para resolvê-los.
Medo da polícia
Um dos
obstáculos levantados, por incrível que pareça, era a legislação ambiental,
que, por estabelecer como crime inafiançável a retirada de qualquer espécie da
Mata Atlântica, impedia algumas das atividades tradicionais e fundamentais dos
caiçaras, como fazer roças de mandioca e construir canoas.
Os
responsáveis pelo cumprimento dessas leis ainda conseguiam piorar a situação. A
organização colheu depoimentos de canoeiros e artesãos que tinham sido
"presos, algemados, alguns espancados, tratados como criminosos" pela
Polícia Florestal, diz Ariane.
Isso
deixou os caiçaras retraídos. Ariane procurou pessoas que sabia serem
canoeiros, para convidá-los para atividades do projeto. Eles desconversavam,
com medo.
A
organização, aproveitando o contato proporcionado pelo Encontro Caiçara, fez
acordos com o Ibama (Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e dos Recursos
Naturais Renováveis) e a Polícia Florestal, para que, mediante vistoria prévia,
fosse autorizada a utilização de árvores caídas naturalmente ou condenadas - o
guapuruvu, por exemplo, depois de cerca de 30 anos de idade costuma ser atacado
por brocas e não demora a morrer, diz Ariane.
Apesar do
avanço obtido com esses acordos, a burocracia permaneceu muito complicada.
Ariane conta o caso de um canoeiro que a procurou "desesperado". Um
jequitibá estava caído no seu terreno e ele queria usá-lo para fazer uma canoa.
A árvore havia sido derrubada por um raio, mas ainda assim era necessária uma
verdadeira via-crúcis para obter a autorização para utilizá-la: exigia-se um
croqui (o morador não tinha ideia do que fosse isso) mostrando onde estava a
árvore tombada, que deveria ser encaminhado ao Departamento de Proteção aos
Recursos Naturais (DPRN). Depois disso, era preciso esperar uma autorização da
Polícia Florestal e por fim uma vistoria do Ibama.
O projeto
assumiu a causa, mas foi em vão. Depois de seis meses de vaivém burocrático,
quando tudo enfim ia se resolver, o jequitibá já estava podre...
Esse
esforço, porém, não foi em vão, pois representou o germe de um dos trabalhos de
maior repercussão da entidade: a revalorização do ofício de canoeiro.
Conhecidos os trâmites da burocracia, a organização repetiu o processo e
conseguiu para si mesma um tronco de guapuruvu. Ele serviria para "levar o
trabalho dos canoeiros para o espaço público", diz Ariane. Armou-se um
abrigo para construir canoas em plena praça do fórum de São Sebastião, onde o
canoeiro Antônio Pequeno, de 75 anos, começaria a esculpir uma canoa.
Os
incidentes que ocorreram no lançamento dessa ideia provaram que ela era
necessária. Os golpes do machado de Antônio Pequeno no tronco despertaram
imediatamente a ira de pessoas reunidas por uma manifestação ecológica (era o
Dia do Meio Ambiente). "Fomos chamados de assassinos", diz Ariane.
"Mas
com o tempo", afirma ela, "conseguimos convencer a população de que
não é o canoeiro que destrói a Mata Atlântica."
As
atividades da organização, sempre documentadas em vídeo, começaram a ser
veiculadas na mídia. A partir daí, a abrangência do trabalho, que já havia
começado a aumentar, não parou mais. Depois do Encontro das Ilhas, a entidade
organizou dois encontros nacionais e um internacional - "sem abandonar
aquela mesma estrutura da primeira reunião, dando direito de voz a todos",
diz Ariane - e hoje acumula as mais diversas iniciativas. Dentre elas, a que
hoje mais empolga Teresa Aguiar é um ambicioso programa de repovoamento do mar,
nos moldes de trabalhos internacionais bem-sucedidos. O objetivo é oferecer
condições para que a fauna marinha se reproduza em proporções muito maiores que
as de hoje e com isso contribuir para a recuperação da pesca artesanal.
Outro
trabalho da organização é o apoio às comunidades isoladas da região - nas ilhas
de Búzios, Vitória e Montão de Trigo e na praia do Bonete. Além de visitá-las periodicamente
com equipes de assistência médica, odontológica, etc., o projeto reabriu a
escola da ilha Vitória, onde também promoveu, durante dois meses, um
"mutirão de alfabetização", em parceria com a Faculdade de Educação
da Universidade de São Paulo.
Os novos caiçaras
Das
múltiplas atividades em execução pela organização, talvez a mais regular seja a
voltada aos alunos da rede pública municipal de São Sebastião, que se realiza
desde 1990. Com patrocínio do Fundo Nacional do Meio Ambiente, a organização
contrata entre os membros de cada comunidade professores para transmitir aos
alunos de 14 escolas, como matéria optativa, as técnicas tradicionais da
cultura caiçara. Entre elas o artesanato em caixeta, taboa e barro, a
construção de canoas, a confecção de redes e a própria pesca, além de um curso
de língua e cultura guarani, este destinado aos índios da reserva de Boracéia.
Essas
aulas podem contribuir para derrotar uma das maiores ameaças à cultura caiçara:
a apatia das novas gerações, que vivem em ambientes cada vez mais urbanizados,
em relação ao legado cultural de seus pais.
Jaime
Moreira da Silva, pescador da praia das Cigarras, em São Sebastião, reclama dos
jovens, que em sua opinião não se interessam pela pesca artesanal.
"Ninguém quer sujar a roupa, rachar o pé", diz.
Jaime não
é o único a se queixar. Quando Ernesto de Sousa, pescador nascido na praia do
Bonete, convida os rapazes que frequentam as rodas de pescadores para pescar,
ninguém quer. "Eles têm medo. Acabou a coragem." Mas não é uma empreitada
fácil, pois Ernesto é exigente. Para ele só se pode considerar pescador aquele
capaz de passar dez, 15 dias seguidos no mar.
Na beira da maré
Mas o que
é ser caiçara, afinal? Uma conversa com eles é uma boa oportunidade de saber
quais as referências que utilizam para definir-se. Para Ernesto, caiçara é
"quem mora na beira da maré". Mas o verdadeiro caiçara, assegura, se
distingue "pela fala". Ernesto, usando o sotaque melódico a que se
refere, conta que tem prazer em pescar e considera a vida no mar sinônimo de
saúde. "Volto do mar com uma fome...", diz. Já foi remando de São
Sebastião até Santos - uma distância de cerca de 100 quilômetros pelo mar,
viagem que hoje, aos 76 anos, ainda pretende repetir - agora, com motor.
"Bato
no peito que sou caiçara", diz o pescador Reinaldo dos Santos, 51 anos, do
bairro de São Francisco, em São Sebastião. Como prova da identidade cultural de
que se orgulha, Reinaldo cita um prato tradicional esquecido por muitos mas
ainda presente em sua casa: pirão de peixe com banana verde. Nele estão
presentes as principais riquezas alimentícias do litoral: o peixe, a farinha de
mandioca e a banana, que é cozida no caldo do pescado. "É um prato
forte", diz.
Jandira de Oliveira Santos (ver texto abaixo), pescadora da praia da Enseada,
em São Sebastião, também oferece um motivo gastronômico para identificar-se
como caiçara: "Não como filé. Só gosto de peixe com espinhas".
Aula prática
Jandira de Oliveira Santos é o nome de casada de
Jandira Peixoto de Oliveira, hoje separada. Em 1991, aos 45 anos, operou uma
grande transformação em sua vida: foi morar sozinha, na praia da Enseada,
extremo norte de São Sebastião (SP), e adotou uma profissão: pescadora. Já
trabalhava e pescava antes, mas hoje é diferente. Vive no mar, vive do mar. Tira
de madrugada sua canoa do abrigo, coloca nela 300, 400 metros de rede e rema
para o fundo. Lá está a solução de todos os problemas. "Quando chego a um
lugar deserto, aquele marzão, a lua iluminando, olho para um lado, para o
outro, não vejo nada, ninguém, penso: 'Este mar é meu'. Fico muito
contente", diz Jandira. Às vezes dorme na canoa esperando a hora de puxar
as redes. Às 7:30, 8:30 da manhã, chega à praia com os peixes quando outros
pescadores, diz, ainda estão se preparando para sair.
Caminhando
pela grande faixa de água rasa, pelos calcanhares, que caracteriza a praia da
Enseada, ela conta como se iniciou na pesca. Criança, ganhou uma canoa "em
que mal cabia", diz ela. Pescava com o pai, de linha e anzol.
De
repente, Jandira interrompe a história. "Ali deve ter siri
escondido", diz, ao ver uma lata de tinta tombada, semiencoberta pela
água. Silêncio. Ela enfia a mão dentro da lata cheia de areia e de lá retira um
siri. "Molinho, olha que beleza!", diz ela.
Como
sabia? Muito simples: ela mostra ao lado da boca da lata um casco de siri. Ora,
os siris, explica Jandira, precisam livrar-se da casca dura quando crescem.
Nesse momento ficam ao mesmo tempo mais apetitosos e mais indefesos contra as
bicadas das garças - havia, inclusive, uma por perto. Por isso precisam se
proteger. Um casco de siri próximo a um bom esconderijo é uma charada fácil
para os que, como Jandira, decifram o mar.
Uma
lição puxa a outra. "Olha onde um siri grande está enterrado", diz,
desta vez indicando uma área que aparenta ser exatamente igual às outras em
torno. Mas não era. Ela tira de lá mais um siri e mostra a pista da descoberta.
"Está vendo essa farinha branca?" Depois de certo esforço, orientado
pela pescadora, é possível distinguir da areia também branca aquilo que ela
chama de "farinha": outro subproduto da mesma transformação de siris
pequenos e duros em grandes e moles.
Esses
conhecimentos de Jandira seriam transmitidos apenas aos filhos ou às pessoas
mais próximas se ela não tivesse realizado recentemente outra mudança em sua
rotina. Agora, além de pescadora, ela é professora de pesca, no projeto São
Sebastião Tem Alma.
(Transcrito de https://www.sescsp.org.br/online/artigo/9_A+CULTURA+DO+MAR,
em 07/11/2020, seguindo o exemplo do Peter, http://canoadepau.blogspot.com/).