segunda-feira, 4 de outubro de 2021

OS MOÇOS E MOÇAS QUE ME OUVEM

 

Tié sangue - Arquivo JRS

     O saudoso Seo Genésio, da praia do Camburi, adorava contar suas memórias e suas lutas pela comunidade. Me recordo de uma ocasião, quando fomos em um ônibus, cheio de alunos da escola Deolindo, para que muitos pudessem conhecer o local e escutar as histórias do Quilombo do Camburi. Na sede da comunidade, atentamos à sua fala e depois transcrevemos para documentação da nossa História Caiçara.

 

     "Os moços e moças que estão aqui me ouvindo, neste nosso lugar, me dão muita alegria. Agradeço aos professores e professoras de vocês que tiveram essa iniciativa, que fizeram esse projeto dentro das comemorações do mês da consciência negra. Eu nasci e me criei aqui, sempre em meio de muita fartura. Não precisava ir longe para pescar; as nossas roças davam de tudo; nos terreiros havia criação de tudo, desde galinha até porco. Era bonito de se ver tudo aquilo, de saber que a nossa gente estava sempre trabalhando para não faltar nada.  O que não era possível ter por aqui, a gente ia buscar em Paraty ou em Ubatuba, no centro da cidade. Sempre o pessoal ia a pé a essas distâncias todas. Todos plantavam porque não havia essas leis contra nós pobres. Digo assim porque, contra doutor, contra essa gente rica, não vale a mesma coisa, não tem o mesmo peso o braço da lei. Vocês reparem, sem precisar entrar pelos caminhos, que as mansões brotam no meio do mato, as estradas particulares são abertas, os condomínios são formados por um montão de lugares onde os pobres não podem mais ter suas roças. Na volta, sigam pela estrada reparando nisso.  Para piorar, até a natureza parece conspirar contra a gente: peixe tem diminuído, já foi o tempo que os cardumes eram enormes, chegava para dar e vender. Quando era o tempo certo, havia peixe de fartura; o outro tempo era para se dedicar aos roçados. Também esse rio aí, que ainda é bonito, tinha mais que o dobro de água que tem agora. Na mata quase não há mais caça. Digo sempre, para quem vem aqui me escutar, que são os homens que vão causando esses desequilíbrios, esses desacertos. Se as coisas estão diferentes é porque nós ficamos diferentes. Veio religião diferente, veio televisão, veio leis, veio carro, veio cobiça desenfreada... Se a gente está diferente, tudo em volta vai se tornando diferente. Eu tenho por mim que nem sempre as mudanças são para melhorar a gente e o nosso mundo. Quero que os moços e as moças que me ouvem aqui, pensem nisso tudo, nas palavras deste negro velho do Camburi.


Em tempo: no mês passado, ou seja, há quatro dias, o blog bateu dois recordes. O primeiro foi de acessos mensal: 47.341.  O segundo foi de acessos diário: 2.055. Agradeço a você e aos demais pelo carinho e pelas buscas dos textos que sigo publicando. A cultura caiçara agradece mais ainda.  

Um comentário: