domingo, 31 de outubro de 2021

MIGRANTE DE PERTO

 

Árvores na praia - (Arquivo JRS)

    Luiz Monteiro de Oliveira era o seu nome, mas para nós era Seo Lica. Ainda hoje, no bairro da Estufa, os mais velhos saberão lhe dizer onde era o Sertão do Lica.


   O saudoso Seo Lica era avô da amiga Fátima Albado, do Ostinho e de tanta gente boa. Com ele escutei boas histórias. Grande orgulho dele era dizer que se aposentara com funcionário da prefeitura de Ubatuba, sendo seu grande trabalho a preparação do terreno para o Campo de Aviação (aeroporto). Também se orgulhava de ter plantado a maioria das árvores antigas da cidade. "Daquelas que estão nas praças e pelas ruas, muitas fui eu quem plantou. Sabe aquelas magnólias, da Praça Nóbrega? Pois é, coube a mim e ao Modesto cavar e colocar cada uma em seu lugar. Na outra praça [13 de maio], onde era o campinho da rapaziada, outro tanto de mudas deixamos ali onde era só areia e capim".


  Seo Lica não era caiçara. "Eu sou caipira de Catuçaba. Nasci na Cachoeirinha, perto do Morro do Chapéu, onde está até hoje a capela de Nossa Senhora do Alto. Todo ano tinha uma festa muito bonita lá, com padre indo de São Luiz para celebrar a missa com o povo. Havia muita dança e comedoria nessa ocasião Era por onde passava a antiga estrada que descia para Ubatuba. Eu vi muitas tropas de burros levando e trazendo coisas por ali. Havia um entrocamento onde é Catuçaba, lugar que mora ainda bastante gente. Lá a estrada tinha três braços: o que acompanhava o ribeirão do Chapéu, indo para a cidade de São Luiz; outro seguindo na direção da Lagoinha, de Guaratinguetá, o caminho mais antigo, que ligava ao sertão de Minas Gerais. O terceiro descia até Ubatuba. Eu era rapaz novo quando começou a passar carro depois de melhorarem a serra. A tal de jardineira [uma espécie de ônibus] passava sempre, duas vezes por dia, entre Ubatuba e Taubaté. Foi por onde eu vim com a mulher e as crianças ainda pequenas. Aqui tinha trabalho garantido; lá dependia da roça e de quem comprava as nossas coisas. Por isso, assim que soubemos que havia a possibilidade de trabalhar e viver no litoral, eu e a mulher decidimos fazer isso. Embarcamos as poucas coisas nos jacás e descemos a serra. Assim que cheguei, fui contratado pela prefeitura e de lá só saí depois da aposentadoria. Desde aquela época eu moro aqui, neste lugarzinho da Estufa. Eu e o Sérgio Lucindo somos os mais velhos daqui. Pois é. Por isso eu digo a essa gente que veio de mais longe: eu sou migrante de perto, não precisei andar muito, nem usar carro ou ônibus".

sábado, 30 de outubro de 2021

AI DE TI, UBATUBA!

 

Praia Grande 2021- Ubatuba  (Arquivo Santiago)

Praia Grande por volta de 1960 - Ubatuba  (Arquivo Ubatuba)

Santiago, nas andanças e nos trabalhos, partindo daqueles que são sinais da resistência contra todas as formas de exploração, produz mais um texto claramente em prol da VIDA PARA TODOS e não para uma minoria. Valeu, irmão!

 

Ai de ti, Ubatuba!

Nada a comemorar!

    No aniversário da cidade há sempre um ufanismo em se comemorar a data. Ufanismo vazio, como todos são. Mas cada vez mais há menos a comemorar nas terras de Cunhambebe! Uma terra roubada dos povos originários e posteriormente roubada dos caiçaras e quilombolas!

   Uma cidade que não tem saneamento suficiente para uma população inchada, para o crescimento desorganizado que as administrações públicas fomentam e incentivam. Uma cidade que não tem segurança adequada para seu povo e para os visitantes.

   Uma cidade que polui seus chamados principais atrativos turísticos, suas águas, com esgoto, plástico, restos de construção civil, que invade as margens de seus rios arrancando a mata ciliar e construindo em cima de seus manguezais, berçário dos oceanos.

   Uma cidade que não apoia seus povos tradicionais, que não reconhece e valoriza sua história, que homenageia genocidas colonizadores e genocidas atuais da república. Que não apoia seus povos indígenas em suas lutas essenciais.

   Nada a comemorar! Ao menos para nossos povos tradicionais, expulsos de suas terras, que foram e continuam sendo griladas descaradamente. Uma cidade que derruba árvores para levantar prédios num ritmo voraz! Que não é capaz de gerir um turismo de qualidade, verdadeiramente sustentável, não apenas para os bolsos de uns poucos, construtoras, incorporadoras e políticos.

   A cidade faz festa, pinta bandeiras, muros, políticos fazem discursos demagógicos, como é de especialidade deles, mencionam as comunidades tradicionais como é de praxe fazerem quando tem interesse, embora pouco façam por elas, enquanto ao redor o plástico, o esgoto, a violência, o abandono alastram-se imensamente, prédios crescem sobre a restinga, sombreando as praias e enchendo os bolsos de empresários da especulação imobiliária.

   Parafraseando uma antiga crônica de Rubem Braga, "Ai de ti, Copacabana", escrita em 1956, em que ele vaticina contra toda hipocrisia e vaidade de uma cidade que crescia sem planejamento e com avidez de abutre sobre os terrenos seculares dos povos Indígenas e caiçaras, hoje poderia ser perfeitamente "Ai de ti, Ubatuba".

Infeliz aniversário!

 

 

    “Ai de Ti, Copacabana, porque te chamaram Princesa do Mar, e cingiram tua fronte com uma coroa de mentiras, e deste risadas ébrias e vãs no seio da noite”.

“Grandes são teus edifícios de cimento e eles se postam diante do mar qual alta muralha desafiando o mar, mas eles se abaterão.”

    “E os polvos habitarão os teus porões e as negras jamantas as tuas lojas de decorações e os meros se entocarão em tuas galerias...”

   “Então quem especulará sobre o metro quadrado de teu terreno? Pois na verdade não haverá terreno algum”.

sexta-feira, 29 de outubro de 2021

COBRA ENGARRAFADA

     

Uma cobra no caminho - Arquivo JRS

     Chico Lopes estava escavando uma valeta para lançar o alicerce de uma casa de veraneio, na praia das Toninhas. Quem conheceu bem aquele lugar sabe que grande parte daquele terreno era brejo abundante em taboa e caxeta. Somente no jundu, até onde hoje passa a rodovia, existia chão firme, de areia. "Como era linda a restinga das Toninhas!". De repente, lá vem o Chico: "Venha ver o que está aqui, no meio dessa lama fedida". Fui ver. Era uma garrafa bem fechada por uma rolha. Depois de lavada, aquele vasilhame revelou o que tinha dentro: uma cobra. Brinquei: "Bem que podia ter um gênio dentro, do tipo gênio da lâmpada".


   A cobra encontrada naquela escavação nem parecia uma cobra. Era como um fiapo, com uma cabeça na extremidade. Quem reconheceu aquilo como cobra foi o próprio Chico: "É uma cobra e está viva! Olha só os olhos dela! Não parece, mas é uma cobra. Alguém, pelo jeito há muito tempo, encerrou ela aí e enterrou neste terreno. Não está fácil descobrir a espécie porque ele perdeu a cor original. Só que, pode ter certeza, caso seja venenosa, que ela tem veneno com carga mortal redobrada. Pode até ser que, graças ao veneno, ela está viva até hoje. Há quanto tempo será que prenderam ela aí?". Outros dois companheiros de trabalho achegaram-se para ver a novidade.


  Eu precisei sair dali por um tempo. Quando retornei, fui logo perguntando: "E aí, Chico, o que fizeram com o bicho engarrafado?". Prontamente ele me indicou uma enorme pedra: "Eu joguei aquela pedra em cima. Quebrou a garrafa e deve ter esmagado ela". Então continuei: "Agora, o que fez tá feito. Sabe de uma coisa, Chico? Acho que essa cobra, agora defunta, foi colocada na garrafa junto com pinga. Não tem gente que tem esse costume bobo, acreditando que tal mistura é capaz de deixar quem faz uso dela mais macho, potente?". Ele sorriu e concordou: "Pode ser mesmo, mas agora a cobra é morta. E se teve alguém que fez tal preparado, também já está morto há muito tempo! De nada mais vale a cobra dele!". Todos riram deste final do assunto.

quinta-feira, 28 de outubro de 2021

PARABÉNS AOS ANIVERSARIANTES!

 

Mingo e Flávia na janela da vovó Eugênia (Arquivo JRS)


     É feriado em Ubatuba porque é aniversário da cidade (384 anos), mas a festa maior é porque o mano Mingo nasceu no dia 28 de outubro e hoje é Dia do Servidor Público! 

    Também nascido na praia do Sapê, vindo ao mundo ajudado pela vó Martinha, a parteira, o Domingos, dentre a irmandade, foi quem mais gostou de leituras desde menino. Nós vivíamos reinando, fazendo estrepolias de toda espécie, enquanto ele se concentrava em livros e gibis, nossas paixões afloradas assim que entramos na escola e aprendemos a ler e escrever. 

    Encantado pelas histórias, pela magia das palavras, mano Mingo desenvolveu o talento da poesia. O passo seguinte foi a publicação de livros, o resgate de fatos, pessoas e sentimentos que resultaram naquilo que somos e temos. Por exemplo, aqueles trabalhadores-negociantes que enfrentavam caminhos de barro, mar bravo etc. para nos prover com tantas coisas e utilidades, viraram poema no livro PEIXE-PALAVRA:


O MERCADOR


Uma vês por mês

chegava o mascate

que abria seu baú

para revelar

cortes de panos,

fitas,

lenços,

enfeites,

roupinhas de crianças,

que toda mulher

podia comprar

pela facilidade do crediário

na caderneta do libanês,

que todo mundo tratava por turco.

Um verdadeiro fenício

desempenhando seu ofício.


    Finalmente, parafraseando  Washington de Oliveira, o Seo Filhinho da Farmácia, por ocasião do aniversário da cidade de Ubatuba, em 1937, quando completava 300 anos: "Sede todos bem-vindos na terra da Exaltação da Santa Cruz".


      Parabéns à minha cunhada Dulce, aos meus sobrinhos Paula, Victor e Régis, os faróis essenciais do mano Mingo.


    Parabéns aos aniversariantes! E fora esses governantes que fazem de tudo para atormentar a vida dos servidores públicos, as nossas vidas! 

quarta-feira, 27 de outubro de 2021

PESCARIA ARTESANAL E SUSTENTABILIDADE

A pescaria - um tema de Antônio Gomide - Arquivo JRS

     Relendo Povos de Mares, de Antônio Carlos Santa'Ana Diegues, o professor Diegues, caiçara de Iguape, litoral sul paulista, encontrei o tema Equívocos e Falácias a serem esclarecidas em torno dos pescadores artesanais.

1ª Falácia: "Os pescadores artesanais são indolentes e não trabalham com regularidade". 

   Ora, os pescadores artesanais vivem sob a frequência  dos ciclos naturais, que determinam os períodos de aparecimento de certas espécies de pescado, bem com dependem muito fortemente das marés e condições do mar. Daí, como em todos os países do mundo, a pesca artesanal ser uma atividade cíclica, com períodos de maior ou menor intensidade de trabalho, com horas de espera e horas de extenuante esforço físico.


2ª Falácia: "Os pescadores artesanais são mendigos de praia e constituem um problema social a ser tratado por programas assistenciais".

   Na reunião preparatória para a Conferência da FAO sobre o Desenvolvimento Pesqueiro, realizada em Roma em 1983/1984, especialistas do mundo inteiro desfizeram esse equívoco ao afirmar: "Os últimos dados disponíveis de muitos países do Terceiro Mundo indicam que as pescas artesanais são mais viáveis sob o ponto de vista econômico e as mais desejadas sob ponto de vista social, sobretudo quando se explora ecossistemas costeiros... Alguns fatores importantes como a natureza dos recursos naturais disponíveis nas águas tropicais, a dispersão especial das comunidades de pescadores, a ampla utilização de materiais disponíveis localmente, o direcionamento do pescado a mercados locais e regionais, o uso reduzido de combustível fóssil justificam a prioridade a ser dada a esse sistema de produção...". Ou ainda: "No desenvolvimento da pesca artesanal deve-se ressaltar sua comprovada viabilidade econômica e seus múltiplos benefícios sociais". (Expert Consultation on Strategies for Fisheries Development - FAO Fisheries Report nº 295, Roma). Daí a recomendação dos Ministros da Pesca e Agricultura que participaram daquela Conferência: "Dada a crescente importância atribuída à pesca artesanal pelos programas de desenvolvimento nacional e internacional, considerando-se que a produção desses pescadores é quase que inteiramente dirigida ao mercado interno e representa quase metade do pescado consumido mundialmente, esforços especiais devem ser feitos para aumentar a produção desse setor e deve-se dar prioridade às políticas de desenvolvimento da pesca". (Roma, 1984)

    Pela minha origem, participando das fainas pesqueiras com meus avós, meus tios e tantos parentes que ainda estão por aí se virando na vida, me angustio com os rumos dessas  famílias tradicionais de pescadores artesanais brasileiros, sobretudo dos caiçaras. Eram estes, com seus ranchos de canoas, que preservavam o jundu, que não atrapalhavam a visão do mar. Agora, preste atenção, veja que as edificações, pouco a pouco fazem uma barreira entre o mar e nós, enfeiam a orla e inibem os pobres. E para onde corre o esgoto produzido rente ao mar? Como vai se sustentar a pescaria artesanal com os cardumes se distanciando mais e mais da costa? E aquela vida equilibrada pelos ciclos naturais não precisa ser recuperada?


 

segunda-feira, 25 de outubro de 2021

GRANDE ADÃO!

Grande Adão na praia do Cruzeiro.  (Imagem repassada pela mana Ana)

Adão em Caraguatatuba - Arquivo JRS

    Passei, na parte da tarde, na casa da mana Ana. Dela escutei a triste notícia: "Adão morreu, Zé". Que triste perder tão grande amigo e irmão! Adão era amigo de todos, tinha prazer em cumprimentar as pessoas; em seu rosto transparecia constantemente uma serenidade e um ar de alegria. Adorava pescar e distribuir peixes aos vizinhos. Ninguém nunca se esquecerá disso. Além da pesca, fazia artesanatos. Não é à toa que muitos o conheciam por Adão, do artesanato. Naquela loja (Bazar Frei Angélico), pertencente à Casa Paroquial, na Praça da Matriz, ele trabalhou por anos. Ali se aposentou.

   Adão vivia sozinho. Sua irmã mais próxima e os sobrinhos moram no Rio de Janeiro, em Santa Cruz, se não estou enganado. De vez em quando eles apareciam para visitá-lo. Como essas visitas o deixavam feliz! Me confessou que, crises entre os pais, resultaram na dispersão da irmandade. O reencontro aconteceu muito tempo depois.

  Ah! Adão tinha, há mais de quarenta anos, uma moto CB 400. Ultimamente não se via ele se deslocando com ela. Sabe onde ficava? Dentro da sala dele, coberta, perfeita como se tivesse acabado de sair da loja. Me confessou que a deixaria para um sobrinho. Impressionante o cuidado desse meu amigo pelas coisas, pelas plantas cultivadas no reduzido quintal e pelas amizades que cultivou em Ubatuba. Todas as vezes que eu o visitava, sempre saía com uma carga de limões, abóboras e outras delícias colhidas por suas mãos. 

    Duas lembranças materiais do Adão permanecerão na minha sala: um chaveiro de concha e um quadro do Da Motta, presentes de coração. 

    "Toda pessoa que passa por nossa vida leva um pouco de nós e deixa um pouco de si mesmo". Como é verdade, meu irmão! A convivência com você me contagiou com um grande exemplo de vida
 
Faço questão de acrescentar agora o comentário do amigo Carlos Lunardi, de Caraguatatuba:

Muito jovem conheci o Adão quando fui trabalhar na loja de artesanato no centro de Caraguá, o Bazar do Compadre, do Zé, irmão do Mário contador. Nessa época o Adão já tinha essa moto, e a molecada que trabalhava na loja ficava babando por ela. Outra coisa que lembro do Adão era sua paixão por passarinho. No fundo da loja tinha vários, e ele ficava lá cuidando deles. Lembro que tinha canários e um curió que, pelo que ele contava, valia muito dinheiro, foi a primeira vez que ouvi falar que um curió podia valer o preço de um carro ou até mesmo de uma casa. Nunca mais vi o Adão, mas por meu amigo Zé Ronaldo fiquei sabendo que ele ainda morava em Ubatuba. Meus sentimentos aos familiares.

ARQUIVO LARGADO NA MESA

 




Fotografia do Olympio - Arquivo JRS


       "Papai largou umas fotografias sobre a mesa, na área de trabalho. Nossa! Que legal!". Parei ali não sei por quanto tempo. Me detive demoradamente em cada uma daquelas imagens. Sei que são caiçaras; creio que todos os lugares e as pessoas são do lado norte de Ubatuba, do tempo em que nem existia a rodovia BR 101, a Rio-Santos.  

       Eu adoro fotografias - também! Imagino a concentração  de quem fez tal registro, as razões para esse ou aquele ângulo, as escolhas para captar o conjunto da imagem etc. Mas anseio mesmo é entender sobre a temática, aquela que revela muito de quem realizou o ato, produziu a obra de arte, as obras de artes.

       Olympio veio de longe, da capital paulista. Movido pelo desafio da linguística, se embrenhou por lugares distantes do centro da cidade, aos sertões e praias que pareciam ter um falar diferente, com muitas palavras arcaicas da língua portuguesa, do povo originário Tupinambá e dos negros escravizados. Conforme expressão dele mesmo, "a linguagem de vocês caiçaras é quase outra linguagem". Munido de gravador, máquina fotográfica, caderno, caneta e lápis, ele partia na maior disposição, inclusive para enfrentar os mosquitos que faziam de tudo para que ele  desistisse  da  pesquisa  ligada  à  Universidade  de  São  Paulo - USP -, no começo da década de 1970, se estendendo por vários anos até a conclusão, a apresentação e aprovação da tese acadêmica em 1978: O léxico do falar caiçara de Ubatumirim.

      O portentoso trabalho só foi o que foi, só resultou no que é, porque o território em questão ainda era isolado, com poucas influências migratórias. Hoje, o nosso lugar cresceu. A luta pela sobrevivência fez muita gente vir em direção ao litoral norte paulista, em busca de mais oportunidades. Desde que os primeiros portugueses aqui chegaram, no século XVI, as portas estão abertas para quem mais vier. Me atendo às fotografias espalhadas sobre a mesa, não tem como não concordar com alguém que disse um dia isto: "Toda pessoa que passa por nossa vida leva um pouco de nós e deixa um pouco de si mesmo". 

 
    

sábado, 23 de outubro de 2021

CADA HISTÓRIA TEM A SUA RAZÃO

 
Nas praias de Ubatuba - Acervo Museu Municipal de Ubatuba 

        Hoje sabemos, graças às ciências, que houve um tempo de degelo no planeta Terra, na NOSSA CASA, por volta de doze mil anos antes deste tempo atual. Civilizações primitivas deixaram seus registros em forma de histórias, de mitos. 


      Muitos dos povos originários do Brasil, dentre eles os da etnia Tupinambá, dizem que Temendorare /Tamandaré foi o repovoador da Terra depois que tudo foi inundado. O cronista Thevet, que conviveu com os indígenas onde hoje é a Baía da Guanabara, escreveu assim: "Dois irmãos com suas famílias subiram nas árvores que acharam: Temendorare em sua palmeira; Aricute em um genipapeiro". 

      Padre Heliodoro Pires contou de outra forma: "Quando houve a grande cheia que inundou a terra toda, Tamandaré salvou-se no alto da carnaúba, que flutuava sobre as águas".

      Couto de Magalhães escreveu: "Acima das coisas da terra existia Monhan (o construtor, o edificador, o autor). De Monhan nasceram dois filhos: Somé e Caraíba. Deste, que foi queimado pelos selvagens, nasceram também dois filhos: Tamandaré e Aricuta. Tamandaré era agricultor e bom; Aricuta era mau, valente e guerreiro. Logo tentou matar o irmão que, batendo o pé na terra, deu causa a que surgisse uma fonte que produziu um dilúvio. Para salvação de suas vidas, subiram aos mais altos montes, mas com eles subiram as águas. Então, Tamandaré, o bom, subiu numa palmeira e Aricuta se acomoda sobre o genipá. Com toda aquela água, morreram todos os seres da Terra, menos Tamandaré (tab-moi-nda-ré) - 'aquele que fundou povo' - e Aricuta e suas mulheres, dos quais descendem todos as pessoas. Os bons (tupis ou tupinambás) descendem de Tamandaré; os maus (ou teminus), de Aricuta. Por isso existe e sempre existirá guerra entre eles".


     Concluindo: cada história tem sua razão, suas razões. É certeza que cada povo originário tem sua história em torno desse fenômeno, pelo degelo, pelo qual passou o planeta. Agora, tenhamos em mente que esses cronistas, de visão eurocêntrica, cristã,  as adaptarão à cosmogonia deles, aos enfrentamentos que tinham naquele momento de tomada de posse das terras brasileiras e das suas riquezas. Atualmente, em tempo de mentiras instantâneas (graças à tecnologia), que visam sustentar ideologias terríveis, tenhamos isso em mente. Cada história tem sua razão.

   Quem me levou a escrever e repensar sobre isso foi Lita Chastan, na obra São Paulo - Litoral Norte - caiçaras e franceses.

quinta-feira, 21 de outubro de 2021

MENSAGEM DO TIAGO



Tiago e Débora - Convite de casamento - Arte: Estevan


A paisagem - Imagem: Tiago Mariano

      Eu estudei com o pai do Tiago, na escola Deolindo, em meados de 1970. Depois nos desencontramos. Um belo dia, meu filho Estevan, frequentado o grupo de fandango, nos apresenta o jovem Tiago, filho do meu amigo de tempo distante, gente da Barra Seca, todos criados naquele pedaço de paraíso. Que alegria! Mais adiante, Tiago e Débora, já casados, dão à luz a querida Luíza. Com certeza, as gerações mais novas passam por angústias inexistentes nas gerações passadas deste chão ubatubano, e, muitas vezes, as respostas não aparecem facilmente, exigem muito de nosso ser caiçara e causam dores quase intransponíveis se o indivíduo não tiver amizades verdadeiras e uma família que cultive o amor na alegria ou na tristeza, na saúde e na doença. Assim, fico muito feliz pelo seu depoimento, Tiago. Amamos você e sua família. Abraços e beijos.

Esses dias tão estranhos que a poeira fica se escondendo pelos cantos...

Já faz mais de um ano desde a minha última postagem aqui e muita coisa mudou, a noite que parecia que não terminaria nunca já está terminando e já consigo ver raios de sol na minha vida.

A psiquiatra diminuiu a dosagem dos meus remédios e devo ter alta nos próximos meses.

A foto é de um dia cinza, mas aqui dentro o sol está nascendo.

Não foi fácil passar pela depressão, tinha dias que parecia que não ia terminar, teve dias que eu não queria existir, mas tudo passa, tudo sempre passa. 

Se você está passando por isso procure ajuda, converse, não guarde tudo pra você, isso pode ser perigoso.


quarta-feira, 20 de outubro de 2021

O 'SEM CORAÇÃO'

 

Obra de Mestre Da Motta na Mostra de Saberes Artesanais - Arquivo JRS

     O  mano Mingo nos recorda de gente que não tem coração. Assim nasceu o poema seguinte.



O SEM CORAÇÃO

Quando a gente ainda era "bicho do mato"
um diabo vestido de doutor nos visitou
olhou o bananal, os pés de café,
as flores de minha avó,
achou tudo muito bonito demais
para aquela família tão pobre de posses
e propôs um preço vil
pela casa, terras, plantações,
desde os morros até ao rio.
Meu avô esconjurou, fez o sinal da cruz,
o mandou embora e depois chamou minha atenção:
- Meu filho, é preciso sabedoria
para reconhecer aquele que não tem coração.

terça-feira, 19 de outubro de 2021

LIÇÃO DE TEBAS, RICARDO E BIGODE

Cinzeiro - Bigode, artista caiçara - Arquivo Prochaska/JRS


     Demorei bastante tempo apreciando, na Primeira Mostra de Saberes  Artesanais, os trabalhos do saudoso Mestre Bigode. Eu já postei textos a respeito dele.

    Lendo uma artigo sobre Tebas, me veio à  mente dois outros artistas: o professor Ricardo, cujas obras em bambu estão sempre presentes, próximas de mim, e o Bigode, que conheci correndo/treinando para as provas de São Silvestre, participando de conversas e entalhando. Ah! Quando me deparo com alguma de suas obras, espalhadas por aí, em museus e casas de amigos, me emociono demais. Dessa vez, por intermédio da Carol, me ative ao cinzeiro, da família Prochaska, com detalhes impressionantes: "A Cristina me falou que o pai dela mostrou uma fotografia de um cinzeiro, captada numa turnê na Europa, para o Bigode, e lhe perguntou se ele faria algo aproximado daquilo. Tempos depois, ele apareceu com a obra perfeita, melhor ainda do que aquela da fotografia".  Quer ver? Vai lá na exposição, no teatro de Ubatuba! Foi-se o Mestre Antônio Bigode, um talentoso escultor caiçara, mas seu talento continua a se comunicar conosco. A sua humildade foi sempre marcante para mim.
    
    Quanto ao Tebas, foi alguém que nasceu escravizado em Santos, por volta de 1721. Trabalhava com pedras. Entre 1777 e 1778, ele conseguiu a sua alforria. Estava por volta dos 58 anos. Se tornou um arquiteto disputado na cidade de São Paulo. Participou  da restauração do Mosteiro de São Bento da Catedral da Sé.   Apesar de sua história ter sido apagada, as obras do Mestre Tebas continuam, tal como as do Mestre Bigode, nos encantando. Da próxima vez, quando você passar no centro antigo da cidade de São Paulo, tente vislumbrar na Igreja do Carmo ou nos demais  locais citados e em outros mais, um homem que, apesar de ter  sofrido no corpo a escravidão, ali estar trabalhando com maestria, deixando sua marca artística. Pense: quantas vidas deixaram - e deixam ainda! - de dar suas contribuições em decorrência das maldades e dos preconceitos dos outros?  Tebas faleceu em 11 de janeiro de 1811.

      Lição de Tebas, Ricardo e Bigode: nossas obras suplantam nossos limites.
     


segunda-feira, 18 de outubro de 2021

AS ABELHAS

 

Arte no muro - Abelha com máscara - Arquivo JRS



      Bem cedo prestei atenção na pintura do muro enquanto esperava o ônibus. Achei a abelha esquisita. Cheguei mais perto e constatei que ela usava máscara, contra venenos. Pensei: "Que sacada do artista! É uma denúncia contra os agrotóxicos que continuam sendo liberados, sobretudo no tempo presente do Brasil. Assim, a arte continua na sua importância crescente e diversifica suas estratégias para anunciar outras possibilidades à vida". Coisa do Tiano. Logo vi!

      Quem não sabe que o  modelo econômico, baseado na exploração ilimitada, não respeitada nem mesmo a vida dos seres humanos? Imagine se os capitalistas inescrupulosos vão se importar com os "insignificantes seres", com as abelhas!

      Coisa triste é você cuidar de uma colmeia com toda dedicação, e, num belo dia, encontrá-la dizimada, com o chão forrado de abelhas mortas devido ao veneno trazido de uma plantação pulverizada, junto com o pólen recolhido, resultando na contaminação e morte de todas elas. Quantas plantas deixarão de ser polinizadas?  Quanto de alimento deixará de chegar em nossas mesas?

    Neste mês, plena primavera brasileira, fui agraciado pela abundância de abelhas nas minhas plantas: as floradas do jarobá e da uvaia permaneceram por dias num zumbido só. Que prazer olhar aquelas criaturas cobrindo as flores, chamando a atenção dos da casa e da rua também! O resultado logo veio: o cacho de cocos está repleto e as frutas, as uvaias, já amadurecem, despertam os olhares e os passarinhos gulosos.

      Quando iremos forçar essa minoria da população brasileira e mundial  a respeitar a vida, a não quebrar o equilíbrio da natureza? Quando vamos concentrar nossas energias convictos dessa interdependência  vital ao planeta?

       Grito ao tolos que divagam, matam e morrem por ideologias de futilidades, políticas, religiosas etc., mas não tomam posição a favor da vida. São esses tais "cabeças-gordas", os "sem-noção" que vivem atrapalhando os nossos caminhos e a nossa felicidade. São os tais, favoráveis aos discursos do mal e das ações terríveis até mesmo contra os insetos, que precisam parar defronte da pintura da abelha  com máscara e tomar outras atitudes.

Em tempo: vi recentemente muitas queimadas no trecho rodoviário entre Taubaté e Ubatuba. Não sabem os "otários de plantão" que, além da perda da fauna e de um possível extermínio de espécies, as queimadas são responsáveis, conforme informação científica, por alterações nas características físicas e químicas do solo, que por sua vez pode modificar a flora bacteriana do solo alterando a fertilidade e o ciclo de nutrientes? E mais: quantos olhos d'água, córregos e rios já se foram por tamanha ignorância e/ou maldade assim?

domingo, 17 de outubro de 2021

TIJOLOS

 

Piso de caquinhos - Arquivo JRS
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Parede antiga - Arquivo JRS



     Parei diante de uma parede de tijolos. Admirei o serviço feito, os tijolos bem alinhados e no prumo. Certamente o pedreiro, o construtor, já se foi há muito tempo. Me chamou a atenção o fato de não haver cimento na massa que unia os peças provenientes de alguma olaria que também não deve existir mais. Então me recordei que, nos primórdios da construção civil em Ubatuba, todas as casas eram assim, com uso de bastante barro na argamassa. Porém,  precisava dominar uma técnica, saber a proporção de areia a ser misturada com barro. O Zizo me explicou um dia,  há bastante tempo, que um parente dele era especialista em queimar conchas e acrescentar como cal, mas nunca vi ninguém recorrer a isso em todo este tempo que tenho de vida. A preocupação mesmo era, conforme a liga do barro, acertar na proporção de areia, geralmente extraída do rio mais próximo ou de algum ponto da restinga.  Alguns que irão ler este registro, certamente ouviram falar ou testemunharam as retiradas de areia da área entre o Porto do Eixo e o Pontal, na praia do Sapê, onde eu nasci. Em casas mais antigas, elas se compuseram nas paredes e nos pisos cerâmicos.         
 
    Impressionante como nossa visão contempla as coisas e as remetem ao cérebro!

sexta-feira, 15 de outubro de 2021

UMA ÁREA CENTRAL

A piscina municipal Arquivo Ubatuba
 

       Saí cedo pedalando. Logo encontrei o Miro Balio, um cuidador da piscina municipal, localizada na quadra entre a delegacia de polícia e a escola Deolindo. Quando eu estudava, ainda não tinha esse espaço para descobrir e incentivar jovens talentos da natação. Bem mais tarde, na gestão de José Nélio, surgiu o projeto e não custou muito a aparecer a piscina que, com o passar dos anos, encampada pelos pais e mães dos atletas, foi ganhando as melhorias atuais. 

      Seo Antônio Freitas e Dona Terezinha, pai do meu saudoso colega Toninho "Cascão", me explicaram um dia que "tudo aquilo ali, desde onde é a delegacia, Tubão, passando pela piscina, Capitão Deolindo e indo até a prefeitura e esquina da Sabesp, pertencia ao Holanda Maia. Era a sede da Fazendas Reunidas Holanda Maia. Ah! Ele também era dono da Fazenda Jundiaquara, no Acaraú, lá para cima, quase chegando na Praia Grande". Eu sabia vagamente disso. O Chico me disse um dia que ali era a Esquina da Máquina. Mas que tipo de máquina? Uns me contaram que ali era beneficiado arroz; outros juraram que era onde beneficiava madeira, uma serraria. Pode ser que tenha sido tudo isso mesmo. Afinal, matéria-prima era abundante e o Milton de Holanda Maia era um empreendedor. Eu não o conheci. Naquela área, um único empreendedor que eu conheci foi o Pedro Carlota, que tinha uns minis desconfortáveis para alugar e vendia "churrasquinhos de gato" na praça 13 de maio.

 

quinta-feira, 14 de outubro de 2021

UMA CRIANÇA, UMA ÁRVORE.

 

Corrida de canoa no rio Puruba - 2001 - Arquivo JRS


"Histórias podem destruir a dignidade de um povo, mas histórias também podem reparar essa dignidade perdida" - Chimamanda Adichie.


    Fazia tempo que eu não me encontrava com o Nerci. Estava sentido falta  de uma boa prosa e muita risada. Começamos falando sobre mato, árvore, reflorestamento, compostagem, frutas, trilhas etc. De repente, ele me recordou de algo que há muito estava no fundo da memória, mas fazia parte da cultura caiçara. Deixo ele falar:

       "Na semana passada estive visitando meus pais e os levei ao lugar onde a minha mãe nasceu, na Maranduba. Pouca coisa mudou por lá. Ela, circundada por meu pai e eu, se  deteve debaixo de uma árvore bem conhecida por nós, que tem a história ligada ao nascimento dela; repetiu uma história que todos nós lá em casa sabemos desde criança: de que aquela árvore imensa foi plantada em cima do lugar onde o o seu cordão umbilical foi enterrado. Se emocionou, coitada".   

       É mesmo, Nerci! Tinha me esquecido disso! Lá em casa também passamos pelo mesmo ritual: mamãe enterrou nossos umbigos na terra do Sapê e sobre eles foram plantadas árvores. A saudosa Maria Balio, natural da praia da Justa, dizia a mesma coisa: "Lá na Justa está enterrado o meu umbigo. Em cima dele deve estar até hoje um jambeiro amarelo". Que legal, né? Que coisa! Como pude ter deixado escapar esse detalhe cultural nosso?

     Imagine se, a cada criança, conforme fosse nascendo, os pais plantassem uma árvore, de preferência se sustentando em cordão umbilical transformado em seiva! Certamente que teríamos mais árvores familiares e seria bem diferente o nosso relacionamento com a natureza.

      Que bom seria alcançar a velhice e, vez ou outra, poder abraçar a nossa árvore, tal como faz de tempos em tempos a mãe do Nerci.

quarta-feira, 13 de outubro de 2021

NAQUELE CAMINHO

Casa do Zé Roseno com Verônica  - Praia Grande do Bonete - Arquivo JRS



Uma prosa aqui, outra ali;

Um café com satisfação caiçara;

Uma assento para descansar e emendar assuntos.

Gente minha, gente nossa...

Soube do Angelino: está na Bahia.

Quem diria!


Saudades de tantas coisas

E de tantos momentos.

Mais uma caminhada? Aguento!


Depois do morro, o chão do Tio Lindo: 

Que tinha os cachorros Satélite,

O Já disse e o Isca pega.

Dorminhocos na areia da praia;

Desespero quando escutam os botos.

Mas titio, por quê?

"Porque eles provocam com assobios.

A cachorrada fica enlouquecida.

Eu nem ligo: faz parte da vida".  


Outro café com peixe e farinha

Antes de retornar ao rumo.

"Leve esta penca para comer no caminho

E apareça mais vezes, menino".

terça-feira, 12 de outubro de 2021

CAIPIRA ACAIÇARADA

 

Dia de desfile cívico-escolar (Arquivo Ubatuba)

    Professora Heloísa, a estimada Tia Helô, natural da cidade de Lorena, escreveu: "Em março de 1947, vindo de Taubaté, cheguei em Ubatuba para ficar". E foi assim mesmo! Se entregou de corpo e alma à paixão de ensinar e de conviver com a nossa gente. Nos desfiles da minha adolescência, quando as escolas se organizavam para "fazer bonito" pelas ruas do centro da cidade, lá estava em evidência a decidida professora nos retoques finais. Graças aos seus apontamentos e lembranças, nós temos A saga de uma caipira em terra caiçara de Anchieta, obra dela a retratar nossa cidade e nosso povo caiçara de tempos atrás . Em relação às festas, ela grafou:


    Festa aqui era o que não faltava. Hoje, muitas já perderam o prestígio de outrora. Mas, quando aqui cheguei, encontrei uma cidade que se coloria para as comemorações populares, abrindo suas casas de chão de tábua corrida, para danças com tamancos e bate-pé, oferecendo cachaça para os homens e a "consertada" para as mulheres. Bebida inocente , onde se misturava casca de laranja, cidrão, cravo, canela e picumã, com um pouquinho de cachaça. Dava um bom resultado, a garrafa passava de mão em mão e todas tomavam bons goles, dando a volta pela sala do baile. Eu, sem conhecer o resultado, andei tomando uns goles a mais, e soube no dia seguinte, que falei coisas sem pensar. Aliás, pensar era uma coisa que a consertada tirava da gente. Nada se pensava, só se ria.

     A Folia de Reis que ia do Natal até o dia 6 de janeiro, me emocionava com seu toque de viola e suas louvações aos donos da casa, que obrigatoriamente recebiam os cantadores com mesa farta, afastando depois as cadeiras, para então dançarmos o chiba.

    A festa do Divino, com suas bandeiras vermelhas, encimada por uma pomba branca, suas procissões enormes e toda a sua pompa, fazia a cidade correr e se espremer para ver sua passagem solene, acordava o povo com o toque de alvorada, seguida pela banda de música que percorria as ruas da cidade

    As festas juninas, com suas fogueiras, danças e barraquinhas típicas, parece que hoje viraram obrigação das escolas.

   A festa de São Pedro, tradicionalíssima, é a única que continua sendo um grande atrativo, com sua procissão no mar, muitos barcos enfeitados e a sempre bem vinda tainha com farofa.

   E o carnaval, então? Mobilizava toda a cidade. Era formado por diversos Blocos da Folia. Os foliões faziam uma zoeira geral. Era chegado o carnaval, a época tão esperada pelos cantores de marchinhas e bailarinos de rua, mascarados, o terror da criançada.

segunda-feira, 11 de outubro de 2021

MORRO DO FIEL TIAGO

 



Caiçaras em desfile folclórico - Arquivo JRS

     Não tem como não se encantar com o Pico do Corcovado, em Ubatuba. Dizem os geógrafos que é o segundo mais alto do município. O primeiro, do Alto Grande, está na divisa com o município de Cunha. Muitas histórias os caiçaras contam desses lugares, sobretudo do Corcovado, essa imensa pedra aflorada na Serra do Mar, tão perto de nós, onde antigamente só caçadores visitavam. Hoje é ponto turístico, com grupos organizados enfrentando sua subida e nos proporcionando fantásticas imagens lá do alto. É do Corcovado que vem a história de hoje, parte do nosso folclore.


  Contavam os mais antigos que, no tempo em que Portugal mandava em tudo, um fazendeiro português, traficante de negros escravizados, se instalou no Sertão do Corcovado, por onde enviava ao Vale do Paraíba as vergonhosas cargas de homens tornados mercadorias. Esse homem tinha uma linda filha em idade de casamento. Assim que instalou o engenho de cana, apareceu por ali um jovem fidalgo na pretensão de agradar a moça, de se casar com ela. Só que o pai, um homem terrível, era contrário ao namoro entre os dois. Por isso teve a atitude de encerrar a filha na mais recôndita alcova da casa, sob severa vigilância. Por sorte, um escravizado de confiança, servidor da casa, se prestou a manter a comunicação entre os jovens apaixonados. Disso resultou um combinado: eles fugiriam numa madrugada, em direção ao Morro (Pico) do Corcovado, onde o fiel servidor, por nome de Tiago, lá já estaria esperando desde o dia anterior, com as jóias pessoais da patroazinha e com alforges de alimentos. Mas a sua missão maior era auxiliá-los na caminhada pela mata até encontrarem um lugar seguro, longe do terrível pai. Só que o plano foi descoberto. O moço foi assassinado numa tocaia e a moça foi enviada no primeiro navio que partia para a capital do reino português, de onde ninguém mais soube notícias. O velho morreu de velho depois de tantas maldades. E o escravo  Tiago? Contavam os antigos caiçaras que ele continuava lá, na grande pedra do Corcovado, esperando os fugitivos e assombrando os caçadores que se aventuram em se aproximar do local. O primo Rogé me garantiu que, numa de suas caçadas, ele divisou o homem. "O escravo que aguardava a sinhazinha até hoje vive por lá, estava em cima da pedra. E tem mais, Zezinho: vez ou outra tem gente subindo tudo aquilo para ver se encontra as jóias que o coitado levou naquela ocasião. Veja só do que a ambição é capaz!".

    Eu, partindo dessa história, proporia que o Pico do Corcovado passasse a se chamar Morro do fiel Tiago. 

domingo, 10 de outubro de 2021

A FAMÍLIA CAIÇARA

 

Família da beira do mar (Arquivo JRS)

      Em meados da década de 1970, escreveu Olympio Corrêa após conviver um período com os caiçaras da porção mais ao norte do município de Ubatuba:


      A união do homem com a mulher, na sociedade caiçara, constitui o fundamento da família. O rapaz conhece a moça através de visitas ou funções. O fator vizinhança influi bastante neste primeiro contato. Daí em diante o relacionamento processa-se com rapidez, culminando no casamento de fato. Passam a morar juntos, e o casamento, civil ou religioso, só é feito aconselhado por terceiros, por motivos de inventário, e, ultimamente, para o gozo de vantagens legais ou por alguma pressão social. Tomamos conhecimento de um embarcadista, que com uma prole de onze filhos, recusava-se a casar no cartório para que pudesse usufruir do salário família.

     Apesar da ausência de vínculos contratuais, o homem assume a responsabilidade pela mulher e filhos e não existe criminalidade neste setor. As adolescentes muitas vezes engravidam-se cedo e não há preconceitos sexuais. O pai assume a proteção da mulher e da criança e constitui um lar, sem outros sobressaltos. Há ainda a união do homem com mulher, quando esta, viúva ou abandonada, ou por qualquer outra causa, e com filhos, aceita como caseiro um homem que via de regra também está só e quase sempre tem filhos.

     A função da mulher nesta sociedade é essencial e indispensável. Ajuda nas lides da roça com trabalho superior ao do marido; na fabricação  farinha de mandioca a ela está atribuída o processo de sevar a raiz, na roda, e, no penoso forneamento da massa seca, é a companheira insubstituível do homem. A isto tudo, além das atividades caseiras, cujos processos são pesados e extenuantes, soma-se a criação dos filhos, que vão nascendo e vingando, como a natureza manda. Daí o seu valor neste ambiente, onde, se é abandonada, imediatamente arranja um caseiro que aceita a ela e aos filhos com alegria e interesse. O homem sem mulher, seja no sertão ou na praia, quase sempre se torna vítima da bebida, acabrunha-se, abandona o cultivo da terra e passa necessidade juntamente com os filhos. Talvez, por isso, parece não haver o costume de espancamento da mulher e filhos. Há bastante harmonia entre homem e companheira, e a prole, por mais numerosa que seja, é sempre querida e há bastante manifestações de carinho entre todos.

    Os filhos adultos só deixam a família quando se casam, mesmo assim, passam a viver agregados aos pais. Os maiores, que deixam a região em busca da cidade, mesmo quando se fixam nela, não escondem o desejo de voltar para a terra natal. Os pais respeitam a vontade dos filhos, e, quando trabalham juntos na farinha, ou na banana, recebem sua cota de produção à parte. Quando pequenos não são forçados a irem à escola, e as meninas são ocupadas, muito cedo, nos serviços de casa e são desestimuladas a se instruir. Enfim, todo o relacionamento familiar parece pautar-se no respeito mútuo e numa afeição, manifestada com bastante desassombro.

sábado, 9 de outubro de 2021

A SERENIDADE QUE VEM DO MAR

 

Passos no lagamar - Arquivo JRS

           Grande, Santiago! Daí desse seu morro panorâmico ou descendo numa onda, não deixas de receber a serenidade que vem do mar, das matas e da cultura caiçara. Parabéns, amigo!

"Uma vez... há muito tempo... numa praia bem pequena... eu parei pra olhar as distâncias e as águas...um velho homem do mar costurava suas redes numa sombra de amendoeira... um cheiro de café matinal inundava a maré do dia... eu sentei numa pedra por perto e fiquei em silêncio olhando... ele também permaneceu em silêncio... fazendo seu paciente trabalho de remendar os rasgos que algum peixe mais forte ou cardume fizera... depois ele olhou para o mar uns instantes... olhou para a direção das ilhas... olhou para mim... para minhas mãos... e voltou ao seu trabalho... estendeu uma mão para mim e tinha nela uma agulha de madeira feita por ele mesmo... aos seus pés uma longa rede esparramada na areia... peguei a agulha e comecei também a remendar as panagens como aprendi com meu pai na infância e com seus camaradas das antigas... O tempo nesse momento pareceu algo como uma canoa silenciosa parada num mar tranqüilo... sem pressa de ir a algum lugar O velho então começou a falar como se falasse pra si mesmo e para o mar, além de mim... muito além de mim e da imensidão azul que envolve o mistério das ilhas e dos tempos.... contou histórias que ouvira, que vivera, que sabia de há muito tempo...havia uma maresia de melancolia no seu olhar, mas também serenidade que só os que já foram muito ao mar e voltaram têm... Contou que antigamente havia grandes canoas, enormes, que navegavam longas luas para longas distâncias levando muitas sacas de farinha de mandioca, bananas e pipas de cachaça que o velho engenho de Dona Mariquinha do Peres produzia... Contou que nada mais dessas coisas existiam... canoas de voga...engenhos... D.Mariquinha... e que a maior travessia agora era não mais dos mais velhos como ele, que ele já era coisa do tempo e que o tempo anda sempre a levar suas coisas e suas gentes e suas épocas... a maior travessia não era mais de canoas imensas, era de um tempo e era dos novos e dos que viriam ainda... que a maior travessia que restava agora era do mar de gente e dos seus mares de ganâncias.
Ficou em silencio de novo... olhou o céu... descansou as mãos no colo e disse: “Eu já remendei todas as minhas redes e já guardei minhas canoas no rancho do tempo, agora o mar contará outras histórias...” levantou-se e foi por uma trilha para alguma casa escondida na mata... fiquei ali sentado... com a agulha de madeira na mão... olhando a mansidão do mar naquela velha pequena praia tranquila... no chão a rede já não tinha mais nenhum rasgo a ser consertado".
Pode ser uma imagem em preto e branco

sexta-feira, 8 de outubro de 2021

UM ANDARILHO DE SEABRA

 




Zumbi  jogado na quadra-  Arquivo JRS


    Ainda é bem cedo. Sigo para o trabalho esperando um descanso logo mais, nos próximos dias. No ônibus há poucos passageiros. Eu prefiro os assentos do fundão para poder escancarar todas as janelas e deixar o ar circular bem. No último ponto, antes de entrar na rodovia, um rapaz entra todo simpático a julgar pelo bom dia que desejou ao motorista. Também ele se dirigiu ao fundão. Pela aparência, julguei ser um desses vendedores de produtos, tipo brincos, canecas, bonés etc.,  que ralam vendendo nas praias. Anda muito essa gente!


    Ele me cumprimentou demonstrando alegria, de bem com a vida. Notei que tinha um defeito físico, como se a mão direita tivesse sido esmagada em algum acidente. A prosa, já engatilhada, veio no "maior gás", conforme a gíria. Nome: Vinícius.  Natural de Seabra, na Bahia. Aí, Jorge, da terrinha! Estava em casa de recuperação. Veio parar em São Paulo porque "é lugar bom para ganhar dinheiro". Acertei no julgamento! Ele está indo à capital a fim de comprar produtos a serem revendidos pelas praias na próxima temporada de verão. Sem eu perguntar nada, o Vinicius passou a me contar das casas de recuperação, afirmando que "muitos pastores são crentes só de nome, querem ganhar dinheiro às custas de quem foi acolhido, pondo-os a vender coisas nos ônibus, ruas e praias". Como costumamos dizer lá em casa: "Eu já sabia!".


   Desde o princípio, notei que o Vinicius entabulava a conversa tendendo a apelar para a Bíblia. Até citações dela ele fez com certa maestria. Será decorrência de certa forma de lavagem cerebral costumeiramente aplicada em muitas casas de recuperação? Não sei dizer. Mas logo tratei de cortar esse direcionamento. "O caminho não é por aí, amigo. Devido - também! - a essa forma de alienação, foi eleito o pior candidato dentre os candidatos à presidência do nosso país".  Ele concordou; percebeu que eu apelava para a linha da autonomia, do desenvolvimento da nossa capacidade reflexiva e crítica.

  Vinicius, o andarilho de Seabra, pincelou, entre vários momentos, algumas passagens da sua vida. Elas não diferem daquilo que a maioria dos brasileiros vivem. Olhei bem no rosto dele, naquele tom de pele da maioria dos brasileiros que me faz dizer sempre: "Você é um testemunho de resistência, irmão! Pela sua história passou Zumbi dos Palmares e tanta gente nossa!". Perguntei-lhe ainda por quanto tempo ficou em Ubatuba e onde estava hospedado. "Passei seis dias nesta cidade. Fui acolhido numa casa de recuperação localizada no bairro do Ipiranguinha, próxima da igreja católica".  Nesse momento lhe revelei que moro lá há vinte e cinco anos. Notando o seu cansaço, deixei que ele dormisse sossegado. Na despedida, só um desejo: "Segue em paz, Vinícius". 

Em tempo: acabei de saber que hoje se comemora o Dia do Nordestino. Parabéns, gente boa!