Mestre Davi trabalhando no jundu (Foto: Nelson Schmidt) |
Fidêncio estava debaixo de uma árvore, sentado num tronco caído, deixado para esse fim. Parecia desanimado, mas para quem o conhecia sabia que era esse o seu jeito. Normal. Tinha vindo da pesca. Vivia embarcado; só passava os dias de claro (lua cheia) em casa. Por isso passei em sua casa para uma visita. Prosa boa era com ele mesmo!
Tiana, a eterna companheira do Fidêncio, mexia na cozinha. Parecia muito atarefada, mas não demorou muito para trazer uma caneca de café para cada um de nós. Deixou na pedra que servia de mesa. A parte plana foi trabalho do Bichinho, um cortador de granito verde, cujo nome encoberto pelo apelido era André. Dizem que se foi, voltou para Muriaé, sua cidade de origem. "Faz falta o danado que fez isso na pedra". "É mesmo", concordou o velho caiçara. E logo emendou na fala:
"Agora estou na mesma embarcação do vosso padrinho Tobias. É uma firma japonesa, mas deixou de perseguir baleias por causa da lei. Hoje só está na pesca da sardinha. Desta vez pescamos lá para as bandas do Rio de Janeiro, descarregamos em Angra e viemos para Ubatuba. Os dois barcos da parelha estão fundeados no Caisão. Estamos passando o claro aqui e depois seguimos para o Sul, para a pesca da manjuba. É tempo dela. Nesta hora os barcos já devem estar abastecidos de mantimentos. O gelo deve entrar amanhã, na parte da tarde. Depois de amanhã a gente parte de novo mar afora".
A prosa continuou acompanhada de uma cuia de biju trazida de dentro de casa. "Isto não pode faltar, né Zezinho?". "Não pode mesmo", concordei. "Sabe que por esse mundo afora tem farinha de todo tipo, mas nenhuma se compara com esta daqui? Na semana passada tivemos de pegar um saco de farinha feita em Mambucaba, mas não é a mesma coisa! Até aquele pessoal que entende pouco de fazer farinha notou a diferença. Era muita fiapada pelo meio, caroçuda, quase nem prestando para fazer pirão. Recomendei ao mestre do nosso barco que fosse fazer compra em algum armazém que negocia farinha da nossa gente. O vosso padrinho recomendou que o barco parasse na Fortaleza para comprar do pessoal de lá. Eu concordei. Acho mesmo que não tem produto tão caprichado como aquele dali. Até já sinto o cheiro e o sabor dela. A diferença, penso eu, é que eles sabem cardear bem. Sabeis como é? Você mistura a farinha já torrada anteriormente à massa seca, antes de ser levada ao forno. Depois, sem parar, vai puxando e torrando sem esquecer de rodar nenhuma porção da quantidade misturada. Meu finado pai não se cansava de orientar para por a farinha quente em cima da farinha fria para não murchar. Só não pode ser vagaroso, de braço mole, na hora da torrefação". E assim chegou o serão. Eu mais escutando do que falando naquela ocasião.
Agora, essa gente toda já se despediu do mundo. Nesta madrugada sonhei com o terreiro do Fidêncio e o avistei com aquele semblante pouco comum à nossa gente. Da prosa eu me esqueci a maior parte. É normal, depois que a gente acorda só fica a vaga lembrança.
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