sábado, 10 de abril de 2021

A PEDRA FURADA

 

Estevan e a pedra lascada no último suspiro de Cristo (Arquivo JRS)


Pedra do Canhão (Arquivo JRS)



       O mar amanhecera calmo naquele dia de maré baixa. Olhei para o lado da costeira, no Canto do Joaquim. Na Ponta avistei uma fumaça. Logo pensei em alguém assando pindá, aproveitando os dias sagrados da Semana Santa. "Mas no dia de hoje?". Me lembrei de tantas histórias e de tantos exemplos. Vovô Armiro não trabalhava em nada, nem barba cortava na semana toda. Mané Souza dizia de um grupo de gente que veio de São Paulo e foi puxar rede na sexta-feira da Paixão: "O mar transbordava de peixes, a rede vinha pesada, mas chegava na praia sem nada depois de tanto esforço. Repetiam o lance e era a mesma coisa, nada de peixe, nenhum. Sabe o que foi? Castigo por não guardarem o dia em que Nosso Senhor foi crucificado!". Até a lenha, cortada previamente teria de dar para passar esse tempo de jejum, penitência e oração. Ninguém se aproximava do canto das ferramentas. Então...quem estaria na costeira?

      Acompanhado pelo Peri, o nosso cachorro, segui pelo lagamar, peguei o caminho depois das pedras e cheguei na Ponta. Ali, na proteção da natureza, onde as grandes rochas formam a Fortaleza, me encontrei com o  tio Dário Barreto, filho da minha tia-avó Bertina e do tio Custódio. Era nosso melhor contador de histórias. Estava sentado, tocando uma viola e cantando. Uns paus de lenha estavam no toco, quase inteiramente queimados. Ao me ver, me convidou a chegar mais e se acomodar. "Senta aí, Zezinho. Podemos falar. Só não podemos exagerar porque temos de guardar o dia santo". Contei-lhe da minha curiosidade ao avistar a fumaça, lá da praia. Ele me disse que estava ali desde a véspera, seguindo um costume que era do seu finado pai. "Papai, todo ano, da quinta para a sexta-feira maior, vinha neste lugar para se recolher e rezar. Dizia que o seus antigos já tinham esse preceito. Traziam um instrumento para tocar e cantar; não comiam nada nesse dia inteiro. Só uma moringa de água, daquela ali encostada, servia para aguentar a sede".

     Permaneci um bom tempo fazendo companhia ao titio, escutando sua cantoria religiosa e histórias. O Peri dormiu o tempo todo, parecia estar feliz com aquilo tudo. Quando eu quis saber o motivo de ser ali, naquele lugar, ele explicou: "É porque essa pedra, nossa maior proteção, foi lascada naquele momento de dor, quando Nosso senhor Jesus Cristo deu seu último suspiro num dia como este. Este lugar era sagrado para os portugueses, servia de fortaleza contra piratas que chegavam de longe. Tais vendo ali aquela pedra furada? É a Pedra do Canhão. Naquele furo ficava travado com correntes um canhão virado para o mar, de onde miravam nos navios inimigos. Desde esse tempo, quando passou o perigo, a minha gente tem este local por sagrado. Por isso que eu continuo cumprindo a minha devoção. Rezo, canto e converso com Deus no sossego daqui. Só depois das três horas da tarde eu retorno à minha casa, à minha mulher e filhos. No serão a gente reza na capela com todo mundo".

     Voltei feliz, pelo mesmo caminho que fui. Ainda catei umas goiabas para levar, pois mamãe adorava. Nunca comentei com ninguém a respeito daquele momento com o tio Dário. Ah! Naquele tempo todo mundo era tio e tia da gente, tinham o direito de nos abençoar e de nos corrigir se fosse preciso. Éramos criados e instruídos pelos mais velhos da comunidade.     

       

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