Imagens na rua (Arquivo JRS) |
Imagens na rua (Arquivo JRS) |
Ilha Anchieta - Porto das Palmas (Imagem da internet - Pousada Pataxó) |
A minha amiga Núbia, se referindo à Ilha Anchieta, assim expressou: "Você acredita que eu não conheço?". Logo pensei em tanta gente, inclusive do meu pessoal, que apenas agora, por lindas imagens, conhece esse lugar maravilhoso. Eu a conheço desde pequeno, pois meu pai costumava pescar em seu entorno. Morávamos próximos, na praia do Perequê-mirim. E a história do presídio também me era familiar, era assunto que sempre aparecia nas prosas caiçaras. Por ali e nas praias próximas ainda moravam os velhos moradores da ilha, aqueles que tiveram de deixar suas áreas para os prisioneiros no começo do século, conforme consta na placa da entrada do presídio:
1908 - Colônia correccional do porto das Palmas. Mandada construir pelo governo do Estado de S. Paulo, sendo presidente do Estado, o Exmo. Snr. Dr. Jorge Tibiriçá; secretários da Justiça os Exmos Snrs. Drs. José Cardoso de Almeida e Washington Luiz Pereira de Souza. Projeto do engenheiro Dr. Ramos de Azevedo. Constructor o Engenheiro Luiz Teixeira Leite.
Em 20 de junho de 1952, ocorreu o grande motim. Antes disso, pelo que falavam, havia ocorrido apenas uma tentativa de fuga, quando Pedro Rex e Moleque Marinho tentaram escapar numa jangada improvisada. Apenas Moleque Marinho foi resgatado com vida. Seu companheiro morreu atacado por tubarões.
A rebelião, que resultaria no fechamento do estabelecimento, foi chefiada pelo presidiário João Pereira de Lima. Dentre os depoimentos de ex-funcionários, recolhidos por Lita Chastan, os motivos incluem péssima alimentação, promiscuidade, trabalho forçado e tratamento desumano. A extinção do Instituto Correcional se deu em maio de 1957, quando os últimos detentos foram transferidos para Taubaté.
O tempo passou. Xavier foi o último guarda, ali permaneceu até se aposentar. Pelo decreto de lei nº 9.629, de 29 de março de 1977, foi criado o Parque Estadual da Ilha Anchieta. De lá para cá vemos crescer o desenvolvimento turístico do local. As ruínas do antigo presídio, as belas praias e o mar de águas límpidas constituem os principais atrativos da ilha
Embarreamento do Rancho - Perequê-açu - Arquivo JRS |
Olha o fandango!- Arte: Estevan |
Assim seguem os tempos atuais nas antigas terras tupinambás, onde o chão descalço vai sumindo sob o cimento e o asfalto quente. As trilhas vão sendo fechadas por portões e cercas farpadas protegendo a propriedade nova onde antes eram os caminhos de servidão do povo. Mudam até os nomes das praias.
As ruas bucólicas da antiga pequena cidade litorânea vão se modernizando com seus shoppings, lojas, bares e as velhas casas vão ruindo, descendo sob o peso das grandes pás das máquinas devastando além das paredes e telhados, memórias, histórias que o povo contava nas tardes serenas à beira mar, quando as canoas descansavam da lida marinha.
Agora as canoas olham as águas e quase não as reconhecem.
Onde o progresso não encontra mais espaço vazio, ele compra casas, quantas forem preciso. E derruba-as! É necessário crescer! Nem que seja para cima, já que de tão estreita a cidade entre o mar e a serra já não tem muito espaço. E nesse curto espaço é preciso colocar mais automóveis, mais apartamentos, mais gente, mais propaganda da doce vida à beira mar em suaves prestações a perder de vista. E perde-se de vista também o prometido mar pela janela. A não ser que se possa adquirir os apartamentos da linha de frente das praias ou a cobertura, para poucos.
E os resíduos de tudo isso continuam frequentando cada vez mais as águas, já se sentindo em casa, enquanto os peixes vão sumindo, migrando quando podem, os mangues vão sufocando espremidos entre rios retificados e a cidade que se avoluma sobre tudo.
O cartão postal mais disputado pelas sucessivas administrações que giram na troca de cadeira municipal é sempre a avenida beira mar central. Todas querem deixar sua marca nela. Troca-se a mão do trânsito, destroca-se, põe e tira-se a mão dupla. Tira-se o espaço livre do povo e coloca-se shopping de bugigangas e penduricos “importados” de uma conhecida e movimentada rua da capital. Tira-se rancho de pesca tradicional e coloca-se pista de skate, afinal canoa não tem rodinhas e não é moderna. Põe centro de informações turísticas, tira centro de informações turísticas. Coloca-se estátuas celebrativas de genocídio indígena num espelho d’água que não espelha a verdadeira história, mas a vaidade dos mandatários locais cheios de ideias tão geniais aplaudidas em inaugurações apenas pelos seus pares. Fincam-se postes de iluminação na areia, sem base que os segure quando a maré encher. E a maré insiste em encher sempre nestas costas tropicais. É preciso avisar a prefeitura ou dar uma tábua de marés para pendurar nas paredes dos gabinetes. Tiram-se os postes e colocam-se atrás das pequenas muretas onde por baixo é areia também... A engenharia explica, ou deveria, se pudesse. Ou talvez ela tape os olhos para não ver o que andam fazendo em seu nome... Tiram o jundu e colocam cimento. O mar sorri quando levanta as placas de calçada e esparrama suas areias de volta aonde elas já estavam há muito tempo. O mar só respeita o jundu. Talvez seja preciso colocar essa palavra no dicionário municipal. Ou chamar um daqueles senhorzinhos antigos, de chapéu de palha, que ficam ali na beira da praia entralhando redes para explicar como isso tudo funciona. Mas desconfio que eles já estão cansados de falar dessas coisas e ninguém escutar. E cansados dessa gente que os olha saindo antes do sol raiar, com suas derradeiras canoas, e miram seus aparelhos celulares para tirarem fotos e postar em redes sociais virtuais onde todo mundo está feliz por vir morar na praia aproveitando o momento tão propício de uma pandemia. Viva o “home office”! O trabalho em casa pela internet. Mas é preciso democratizar o acesso à internet, aprimorar a educação, valorizar os trabalhos que não são possíveis de se fazer em casa, que estão nas ruas, no dia a dia, pegando ônibus lotado todas as manhãs. Mas isso é política pública de base, coisa que não se vê do alto das sacadas alambradas dos apartamentos que vão subindo diariamente. Mais um lembrete para a porta da geladeira dos sucessivos gabinetes municipais.
Troca-se o calçamento que permite a água adentrar a terra tão sedenta das chuvas pelo asfalto liso, sólido, compacto e feio, mas que se rompe em algumas temporadas de chuva, tão naturais por estas terras atlânticas. (Avisem também a administrações sucessivas que aqui chove bastante).
Ou não.... Pois é preciso sempre ter verba para tapar os previsíveis buracos por onde se anda.
Muda-se os trajetos das ciclovias que, de tão planejadas em inclinação e drenagem, quando chove se tornam hidrovias.
Enquanto as administrações sucessivas disputam qual é mais destruidora do patrimônio natural e da cultural local, vão subindo prédios, vão sumindo árvores. Da noite para o dia, literalmente.
Há árvores centenárias no caminho do progresso. As cercas não podem desviar. Ou nada que uma boa motosserra não resolva. E um laudo bem assinado por um técnico especialista. Há vários no mercado.
Há poucos anos, em frente a uma das últimas construções antigas da cidade, embora sua engenharia colonial tenha sido erigida sob a chibata e o sangue nativo e africano, mas que ainda está de pé e já foi câmara municipal, museu e agora é a secretaria de turismo municipal, estava numa prosa com o então secretário de meio ambiente. E ao perguntar sobre as árvores que foram cortadas na orla e estavam ali com seus grossos troncos e raízes expostos aos ventos e aos olhares mais atentos... Estes poderiam ver que seus troncos cortados não apresentavam nenhuma deterioração ou praga, estavam limpos e sólidos.
-Porque cortaram essas árvores?
- Elas estavam condenadas.
-É mesmo?! E por qual crime?
Numa terra em que se condenam árvores por taparem a visão do mar para os carros dos turistas na avenida e para poderem sempre remodelar a orla com cimento, não deveria ser de se admirar que os prédios subam da noite para o dia enquanto as árvores descem.
E assim segue a vida na terra de Cunhambebe, levantando prédios, derrubando árvores.
"Velho Giró" na praia da Enseada (Arquivo Família Prochaska) |
Relendo Joatão e a ilha, um romance ambientado no presídio que funcionou por meio século na Ilha Anchieta, em Ubatuba, me deparo com esta sensibilidade:
Um barco de pescadores caiçaras, quase igual ao dos presidiários, voltava do alto mar, passou perto. Martim e Zé Trindade acenaram amistosamente; os caiçaras retribuíram, sorriso aberto nos lábios.
Joatão abismou-se. De onde vinham aqueles homens tão cedo da manhã? A canoa arreada, superlotada, quase fazendo água: peixe demais pesando no casco, ameaçando adernar a frágil embarcação. Levantou os olhos para o oceano e se perdeu no fundão do mar. Que coragem a daqueles caiçaras, avançar mar adentro naquela casca de noz! Severino contara-lhe muita coisa desses intrépidos pescadores que saem da orla ainda de madrugada, empurrando as canoas para a arriscada aventura no mar. Enfrentam o oceano, o barco é pequeno, frágil demais, não vira; pequeno demais para que o mar dele se aperceba. E então some na imensidão esverdeada, ao balanço das ondas, desaparece da vista do observador terrestre. Os caiçaras nada temem; sabem que o mar é vasto mas seus mínimos movimentos são de amor à terra. Por isso voltam, o mar não os engana. São íntimos: sabem quando o mar não os quer, quando prefere que eles, pescadores, fiquem em terra. E quando se largam no mar tudo enfrentam sonhando os cardumes de peixes, a boa sorte que a qualquer instante pode surgir. e assim lutam, assim vivem, assim morrem sempre enamorados do mar...
Praia Grande, por volta de 1977 (Arquivo Ubatuba) |
"Fazenda boa. Dá uma linda calça! É mescla, pano duro". Isaías, o alfaiate garantiu. Como era gente de confiança, Bito Cristóvão encomendou a roupa que seria usada no casamento do primo, morador no centro da cidade. Maio estava chegando.
Dito e feito! Trabalho perfeito, no prazo combinado, uma semana antes de evento tão esperado. Até veio de ônibus para chegar "nos conformes". Depois da missa, os festejos e a comidoria. "Você nem imagina o tanto de gente que foi!".
Festa boa é assim: quase atravessa a noite. "E agora para voltar para casa? ". Bito Cristóvão era caiçara das Toninhas, distante seis ou sete quilômetros da cidade. O negócio era ir a pé como fazia sempre. Até o bairro do Tenório, ele tinha a companhia do parceiro de festa, do primo Élvio, rapaz novo, filho da prima Celeste . Depois seguiria sozinho.
Os dois foram tagarelando, nem viram o tempo passar. Só notavam, vez ou outra, os pios de corujas pelas árvores do jundu. O baile era o assunto principal, cada um afirmando que dançara mais do que o outro. Não entravam num consenso, mas Bito Cristóvão tinha certeza que aquela calça nova fizera diferença. Só que, para caminhar longas, distâncias não era vantagem, pano duro demais. Quase teve a iniciativa de tirá-la para evitar assadura entre as pernas, mas se sentia muito orgulhoso de tal vestimenta ainda que fosse noite escura, sem ninguém pelos caminhos. E assim andou toda aquela lonjura vestido nela.
Chegou à travessia da praia Grande. Agora sem o Élvio. Sozinho teria que passar, na escuridão, quase a metade da viagem. Ainda havia histórias de lugar mal-assombrado. E ele sentia medo de tantas coisas que falavam. De repente, na calmaria das ondas, além de sentir o coração disparado, ainda escutou um poc-poc-poc. Se arrepiou, mas parou para ver se tinha alguma coisa ou alguém lhe seguindo. Nada. Retornou a andar e novamente o barulho, como se seguissem. Parava e tudo sossegava. Se virava e nada de nada na escuridão da noite. Andava e escutava; parava e nada de diferente em volta. Apressava o passo tremendo de medo; o barulho também acelerava. Corria. A coisa corria atrás. Com o coração na mão, desesperado chegou em casa sem saber como, no canto direito das Toninhas. Estava todo assado por baixo. No dia seguinte contou aos seus da assombração. Gertrudes gargalhou. "Que corajoso o meu primo! Não sabeis que pano duro faz barulho mesmo? Era a mescla das pernas da calça nova que lixava uma na outra. Isso era a vossa assombração!". Não teve quem não caísse na risada e não contasse para mais gente. Assim essa história chegou até aqui.
Bacupari (Foto: Geraldo Zuliani) |
No ano de 2006, ministrando aulas na E.E. Capitão Deolindo de Oliveira Santos, em Ubatuba, o professor Jorge Ivam Ferreira organizou em um livro textos de alunos do curso Supletivo (EJA): Algumas lembranças. Grande realização! Graças a essa obra, eu posso conferir impressões de gente que se parece comigo em muitos aspectos. Hoje escolhi o texto do Odesmar para relembrar uma fruta nossa que pouca gente conhece.
O MEU PÉ DE BACUPARI
Quando eu tinha uns 10 ou 11 anos, estudava na centenária escola "Esteves da Silva", pois sou nascido e criado em Ubatuba e nessa época só existia essa escola aqui. A cidade era muito pequena. Ao lado da escola passa o rio Grande, que desemboca na Barra dos pescadores.
Desde pequeno, sempre fui muito curioso. Passando esse rio, existia uma mata muito grande e, num certo dia, cismei de atravessar o rio com a curiosidade de ver o que tinha do outro lado. Quando entrei na mata, uns 50 metros, eis que surge na minha frente um pé de bacupari gigantesco - para quem não conhece, é uma fruta originária da Mata Atlântica parecida com a ameixa, mas mais deliciosa.
Pelo tanto de fruta que tinha, conclui que ninguém sabia da sua existência. No outro dia, contei a todos o meu achado e todos foram saborear da fruta, mas eu era como se fosse o dono.
Hoje não existem mais o pé de bacupari, pois a própria natureza desviou o curso do rio e este levou a árvore. Sempre que penso no passado, me lembro do meu pé de bacupari.
(Autor: Odesmar José Carneiro)
Que legal, né? Muitas outras pérolas estão em Algumas lembranças! É assim mesmo: as pessoas se vão, os lugares se transformam, mas as lembranças ficam.
Praia da Figueira (Arquivo JRS) |
Dia bonito, claro. Amanheci bem disposto, firme em meu intento de ver os parentes do lado sul: Henrique e Maria, Zequinha da Paulina e João Quintino. Um fim de semana é pouco para ir das Galhetas até a Ponta Aguda. Uma manhã inteira, ali na Figueira; comecei degustando café com farinha e peixe assado. Henrique Quintino e Maria, contentes com a visita, me contaram das últimas notícias, dos filhos que não querem mais que eles continuem morando naquela praia, longe de tudo (mercado, médico...). Em seguida fomos colher fruta conde (ou pinha). Coisa deliciosa! Depois, com a maré seca, Henrique já foi pegando um balaio e uma ferramenta para mariscar. Me convidou. Lógico que fui junto! Ali, no canto esquerdo, os mariscos ficam no raso, numa água que parece de lagoa, sem risco algum. Fazia pouco tempo que a Odócia havia morrido, na costeira da Lagoa, quando mariscava com a Dirce. Uma onda a arrancou das pedras. Lugar perigoso. Que mulher! Uma caiçara de muita fibra, cunhada do Henrique, esposa do Aristeu. No almoço comemos marisco cozido, do jeito que veio da costeira, com arroz e feijão. Voltamos a relembrar de outros momentos que vivemos juntos, quando mais gente morava naquele lugar. Desta vez não me demorei, nem dei aquela cochilada sagrada debaixo do abricoeiro do jundu, pois pretendia ir até a casa do Zequinha para a prosa da tarde e o café na tranquila Ponta Aguda.
Praia da Ponta Aguda: cheguei pelo canto, no caminho que desce acompanhando a costeira. Deserta...assim parecia. Logo avisto alguém vindo do outro canto. Pelo balanço do corpo sei que é o Zequinha. Sorriu de longe ao me reconhecer. "Fui armar o cumbu. Agora é tempo de raposa gorda". Bem perto, logo ali, junto a um mandiocal, ficava a sua pequena casa. Desde que a mãe falecera, dizia ele, "é só eu e Deus". A nossa prosa chegou ao serão e foi noite adentro, depois do jantar. Naquele sossego eu pernoitei. Ah! Ia me esquecendo! Houve um intervalo para ir até a praia Mansa e armar o tresmalho. Em outros tempos nunca seria possível imaginar, em tempo bom, a nossa gente deixar de ir em busca do peixe nosso de cada dia. No dia seguinte perdi a hora. Quando a claridade entrava pelos vãos da telha, escutei barulho no tanque: era o meu anfitrião que já consertava uns peixes. "Nossa! Já foi visitar o tresmalho?". Eu não devia me admirar, pois desde criança vivi momentos desses. Depois de um café, me preparando para subir a estrada até onde morava o João Quintino, o meu parente informou: "Vai perder a viagem: o João saiu no escuro para a Tabatinga". "Como você sabe?". "Quando passou lá em cima, no caminho, ele deu três assobios, me avisou".
Eu até tinha me esquecido desse costume deles e de tantos velhos caiçaras que se comunicavam com assobios. Me conformei. Pedi que entregasse minhas lembranças ao primo. Agora só os dois moram na Ponta Aguda. Os demais foram enxotados pela violência do Zé Palmeira, um jagunço a serviço de importante grupo que pretendia tornar todas aquelas terras um condomínio de ricaços, tal como Laranjeiras, antes da praia do Sono. Nem esperei para o almoço. Voltei para casa com algumas embetaras para a semana. Valeu visitar mais uma vez esses meus parentes. Valeu muito!
Coisa boa essas nossas prosas! Agora são lembranças!
Ilha do Prumirim (Arquivo JRS) |
Joatão reabriu o mapa. A Ponta do Respingador ficara para trás, aproximando-se da Ponta da Jamanta. As lindas praias da orla se sucediam, os penhascos também. Despontou em toda a sua extensão a beleza agreste da Praia de Itamambuca. Para o lado do alto mar viam-se diversas ilhas, três maiores - Rapada, das Couves e Comprida - perfeitamente reconhecíveis. À frente a esperada Prumirim com seu canal estreito separando-a do continente: a Anchieta [lancha] passaria ao meio do canal, penetraria a Enseada de Ubatumirim.
- Estamos indo em linha reta - disse Negrinho - e com boa velocidade. Temos gasolina para ir mais para cima. - O piloto improvisado parecia estar gostando da navegação. - Costear por lá...
Joatão esclareceu:
- É o Saco das Andorinhas.
- ... e largar a lancha mais perto do Rio de Janeiro!
Era demais a pretensão. Ferreira amuou. Não sentia forças sequer para intervir. Lino ficou em dúvida, semi-perdido, destituído de condições de mando.
Foi Joatão quem definiu a situação:
- O nosso mapa termina um pouco além desse Saco das Andorinhas. Dali para a frente teremos de navegar adivinhando o litoral. Acho interessante desembarcar o mais longe possível, escapar dos limites do Estado de São Paulo, sumir em qualquer praia do Estado do Rio.
Raízes de mandioca (Arquivo JRS) |
Selo cubano (Arquivo internet) |
O 19 de abril remete ao dia em que delegados indígenas, representantes de várias etnias de países como o Chile e o México, reuniram-se, em 1940, no Primeiro Congresso Indigenista Interamericano.
Essa reunião tinha o propósito de discutir várias pautas a respeito da situação dos povos indígenas após séculos de colonização e da construção dos Estados Nacionais nas Américas.
Arte: Eudes (Arquivo JRS) |
Arte: Marta (Arquivo JRS) |
Praça da Matriz no início do século XX (Arquivo Ubatuba) |
A 4 de julho de 1875, por iniciativa dos paulistas José Bernardo Gonçalves Duarte e Alfredo Augusto da Silveira, foi fundado o Gabinete de Leitura Ateneu Ubatubense, cujo fim era a instrução dos seus associados, mantendo uma biblioteca particular para uso exclusivo da associação. Teve a glória de iniciar a vida social a diretoria composta dos seguintes senhores:
Presidente: tenente-coronel Francisco Gonçalves Pereira; vice-presidente: Alfredo Augusto da Silveira; 1º secretário: Francisco Maria da Costa e Paiva; 2º secretário: tenente Antonio Marçal dos Santos; tesoureiro: Francisco de Paula Soares Viana; bibliotecário: José Bernardes Gonçalves Duarte; procurador: Luiz Domiciano da Conceição.
A introdução deste cabe a Esteves da Silva e foi escrito quando acabava o século XIX. Mas por que comecei com esse recorte? É porque a rua que nos interessa hoje é a Coronel Domiciano, aquela que cruza o centro da cidade, passando defronte a Biblioteca Pública, na praça 13 de Maio, a duzentos metros da praia. Pensei no personagem da nossa história; reparei que ele estava como procurador no nascimento do primeiro espaço voltado à leitura, aos leitores, na vida desta Ubatuba. Até sublinhei o texto. O acaso dá sentido à rua que lhe homenageia por passar na entrada da nossa biblioteca!
Dele escreveu o dr. Antônio Paulino de Almeida, em 1937, por inauguração da rua em seu nome, substituindo a denominação anterior de Esperança. É de seu texto que extraímos a seguinte informação:
Filho de Ubatuba, Luis Domiciano da Conceição se tornou farmacêutico e professor, chegando ao cargo de diretor do grupo escolar Dr. Esteves da Silva. "Conheci-o já velho e enfermo. Foi por uma manhã do mês de Agosto de 1916, quando dirigindo-me à esta cidade a fim de assumir o exercício do cargo de promotor público da comarca, encontramo-nos a bordo de um pequenino navio costeiro. Vinha ele de sujeitar-se à melindrosa intervenção cirúrgica, na Capital, onde havia permanecido por vários meses. Ao pisarmos as areias brancas de nossas praias, tive ensejo de notar o grau de estima que os ubatubenses lhe devotavam, pelo elevado número de pessoas que compareciam ao seu desembarque no porto da Prainha. Desde esse dia não mais nos separamos, porque o cel. Luis Domiciano era como que o oráculo da cidade, cujas palavras eram por todos acatadas, cujos conselhos eram por todos ouvidos.
Aos seus atos de benemerência, direi apenas que, por muitas vezes era ele encontrado, em altas horas da noite, afrontando as ventanias, para, de lanterna em punho, apoiado em uma bengala, socorrer a algum enfermo nos mais distantes arrabaldes da cidade, - ele, que bem o sabia, estarem próximos os seus dias.
Aposentado, mantinha sua modesta farmácia, quase que exclusivamente destinada aos pobres. Mal podendo comunicar-se pela palavra falada, servia-se de uma pequena lousa, em que escrevia o que queria. E porque não o amedrontasse a lembrança da morte, - todas as noites reunia os amigos em sua residência, distraindo-se ao lado dos jovens que rodopiavam pela sala, ao som da música, - hábito que conseguiu manter até a véspera de seu falecimento, fosse para iludir-se ou para disfarçar a tristeza íntima que envolvia o seu espírito".
Interessante mesmo é o final do texto:
"E se algum dia, alguém perguntar-lhe quem foi o coronel Domiciano, poderão vocês, - crianças de Ubatuba - responder com firmeza:
- Não tivemos a felicidade de conhecê-lo. Mas, de um peregrino que por aqui passou, soubemos ter sido um Ubatubense Ilustre, e, sobretudo, - um justo e um bom".
Enfim, o fim! Ainda não encontrei nada se referindo à atuação política de Coronel Domiciano, mas sabemos que, quem tinha título assim, da nobiliarquia republicana, representava uma força politica importante. Quem sabe alguém se interesse em pesquisar, em ir muito além deste resumido texto que aqui deixo. Quem sabe ?
Ilustração no livro de Hans Staden (Arquivo JRS) |
Ilustração no livro de Hans Staden (Arquivo JRS) |
Fazendo balaios (Arquivo JRS) |
Mais um Momento Literário dentre tantos outros que vivemos e ainda esperamos viver enquanto houver vida. Tudo começou de forma gratuita, na família, com as histórias narradas por nossa mãe, por nosso pai. Quem não viveu aqueles momentos noturnos, quando a imaginação corria solta ouvindo as aventuras, os medos e as alegrias que nos introduziam no sono e nos sonhos? Tudo era gratuito! Que viagem! Quantas viagens!? Nem um tostão se gastava. "Os tempos são outros", ouço repetidamente. E daí? As coisas podem se modificar, evoluir ou regredir, mas as pessoas são as mesmas, permanecem na mesma espécie sapiens!
O derradeiro tema, por sugestão de tanta gente boa, foi em torno de lendas, um dos gêneros literários que gostamos muito. Na verdade, muitas dos nossos primeiros encantamentos literários provém de lendas. Mas de onde vem esta palavra? Por isso parti da etimologia, da origem do termo.
Lenda deriva do latim, a raiz da nossa língua portuguesa e de outras mais. Legenda deu origem à palavra lenda. Significa, literalmente, "a serem lidos", de legere "ler". Era hábito nos mosteiros, sobretudo durante as refeições, alguém ficar lendo, de um púlpito, aos demais. Eram narrativas sobre as vidas dos mártires, dos santos, dos momentos significativos à vida da Igreja Católica. Esse conjunto de histórias se agruparam no livro de Jacopo de Varazze, Legenda Áurea, do século XIII. São mais de mil páginas a cultivar um desejo pelo maravilhoso, pelo paraíso prometido. Encurtando a prosa: de legenda vem lenda.
Livro nosso (Arquivo JRS) |
Quem nunca ouviu uma lenda? Elas fazem parte do repertório de histórias populares de uma determinada sociedade; são repassadas oralmente pelas gerações; também servem de base na evolução do processo civilizatório, querem passar uma moral, um preceito, uma advertência etc. Por exemplo, quando vovó nos contava a lenda da Gruta que chora, estava reforçando a ação do padre que livrara a comunidade da serpente, do dragão que apavorava aquela gente. Seria legenda caso estivéssemos na Idade Média, a ser lida; agora se vestia de lenda contada por nossos saudosos entes queridos.
Assim como quase tudo que ouvimos e lemos, podemos notar nas lendas resquícios de narrativas mais antigas, dos primórdios. Muitas vezes ainda são preservados até mesmos os nomes antigos, de tempos que nem se sabe, de fronteiras além da Ameríndia. Ou seja, se vestem com novas roupagens, mas continuam sendo essenciais a uma espécie que permanece: a nossa, sapiens.
As lendas são construções coletivas que seguem ganhando novos significados conforme a comunidade vai passando por transformações. Ao ouvir uma lenda, logo quero saber a razão dela. Porém, me encanta mesmo é imaginar a trajetória feita por ela e me emocionar pelo conjunto. Aquelas que ficaram no papel, quando alguém quer jogar fora, eu as transformo em balaios, um saber caiçara aprendido enquanto ouvia histórias.
Gratidão ao pessoal que participou de mais um Momento Literário.
Em tempo: mitômano é o hábito patológico de mentir. Ou seja, é doença de quem não consegue viver sem mentir.
Capa do livro de Hans Staden (Arquivo JRS - Edusp, 1974) |
Agora falarei de uma rua da nossa cidade que se relaciona com os povos originários deste lugar (Ubatuba), com as pessoas que viviam neste território: os tupinambás.
Detalhe do mapa das ruas (Arquivo internet) |
A rua Cunhambebe, outrora Indayá, onde seria a estação ferroviária no final do século XIX, é longa, cruza a cidade de ponta a ponta; digna do bravo guerreiro Tupinambá que enfrentou os portugueses e seus aliados em meados do século XVI. Os estudos recentes defendem que Cunhambebe, cujo nome parece estar se referindo ao ser feminino (cunhã: mulher. Varnhagen explica o nome como "o voar da mulher"), era um cacique temido por sua bravura, cuja aldeia se localizava onde hoje é território fluminense (Paraty). Foi um grande líder da Confederação dos Tamoios. Dizem que morreu de peste logo depois da chegada dos franceses no Rio de Janeiro. A seguir, no livro de Hans Staden, há uma referência interessante:
Alguns dias depois, conduziram-me a uma outra aldeia, que chamavam Arirabe, ao chefe Cunhambebe. Este era o mais nobre dentre todos os chefes. Em sua morada haviam-se reunido ainda alguns outros e à sua maneira tinham preparado uma grande festa. Queriam também ver-me, por isso ordenou Cunhambebe que fosse eu trazido para lá naquele dia. Quando vinha me aproximando das choças, ouvi um grande alarido; cantavam e tocavam em seus instrumentos de sopro. Diante das choças estavam espetadas cerca de quinze cabeças sobre postes. Eram cabeças de maracajás, seus inimigos, e que eles haviam devorados.
Conforme já foi escrito, houve ao menos dois chefes com esse nome. O segundo, me parece, estava em Iperoig, foi amigo do padre Anchieta, que o descreveu na sua carta de janeiro de 1565, inserta no vol.III, das Cartas jesuíticas, publicada pela Academia Brasileira (Rio de Janeiro, 1933, página 196 e seguintes). Agora fiquei em dúvida sobre qual dos dois Cunhambebes a nossa cidade homenageia: o do local, onde foi fundada Ubatuba, aparentemente amistoso, ou o temido guerreiro?
Em tempo: o meu amigo Silvio Fonseca, do blog ubatubense.blogspot.com, mora no final da Cunhambebe, numa travessa depois da rua Liberdade. Muita gente boa mora por ali!
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