domingo, 19 de agosto de 2012

PRESENTE PARA O REI DOS REIS

Orelha-de-burro florida (herança da finada vó Martinha): presente marcante.

Ontem eu recebi um telefonema da amiga Fátima. Como sempre conversamos sobre a nossa história, os nossos causos e as nossas famílias. Sempre é gostoso prosear! Então, aproveito o arquivo do Luiz Moura (O Guaruçá) para publicar mais uma contribuição da herdeira do João de Souza, a nossa Fátima.


             Presente para os rei dos reis

             Foram tantos os Natais na minha vida! E todos foram pontuados por situações inusitadas, cômicas até.
             Não tinha neve, algodão servia para adornar a árvore, que quase sempre era um galho de cedrinho cedido pela Dona Virgínia Lefreve. Ela não gostava muito que dilacerassem suas árvores, mas fazer o quê? Natal é Natal!
             Toda torta, o galho perfumado ia para dentro de uma lata de tinta cheia de areia de construção, envolvido num papel rosa de embrulho. Na lateral da lata, ainda colava figurinhas recortadas das revistas Manchete, Grande Hotel, Capricho, Sétimo Céu, até das embalagens de comestíveis com motivo de Natal. Grudava as figuras com clara de ovo, goma arábica, massinha de trigo. Tinha Papai Noel misturado com anjo. Estrela com guinomo, trenó com sino de igreja. E muitas velas! Afinal todos diziam que Natal é Luz! Tudo era válido para deixar a árvore bonita.
          Assim feito, lá ia ela para o canto da sala, com um monte de penduricalhos brilhantes.
          Cada vez que meu pai ia trabalhar em Taubaté trazia um componente para a tal árvore.
          Até hoje tem enfeite para montar umas três árvores mais.
         Quando éramos ainda em três, hoje somos cinco irmãs, ele trouxe um sino para cada uma. Um sino vermelho, um amarelo e um verde. Ano após ano os três sinos foram pontas de árvore na nossa casa. Então eles sumiram misteriosamente. Perderam-se no tempo. Como memórias que a gente nega e renega e que substitui por outras que, provavelmente, terão o mesmo fim.
        A árvore ficava debaixo do vitrô. Quando ventava, uma melodia se espalhava por todos os cômodos, avisando da chegada do Natal. Os sininhos se desdobravam sob o ataque do vento dizendo: ”- Curtam esse tempo, ele pode repetir, mas não voltará nunca mais com a mesma essência.”
         Olha que às vezes o barulho contínuo era irritante...
         Nós não sabíamos interpretar as mensagens anunciadas por elas.
        Muitas vezes, hoje, estamos envolvidas com coisas tão supérfluas e banais, parecendo que tudo está no limite, não vai dar tempo para nada, o Natal é imediato, e não percebemos que não somos nós que vamos passar o Natal, e sim é o Natal que está passando. Ele passa todo dia. E a gente não tem noção disso.
        Todo ano o galho de cedrinho perfumado era renovado. Até o dia em que acabaram as árvores de cedrinho. Acabou a dona das árvores. Acabou o homem que buscava o galho. Ainda não acabou a família que cultivava a façanha de festejar o Natal.
        Tá certo que a árvore hoje é artificial. Tudo ficou artificial. O Natal não tem a mesma magia do simples. Hoje só tem Natal quem adquirir coisas sofisticadas.
         Esqueceram que a festa do Natal é a comemoração do aniversário de alguém que veio na terra ensinar a beleza da simplicidade contida na alma de cada um.
        Será que isso ainda vale?
        Hoje vi numa loja uma árvore de fibra ótica linda!
        Juro que senti saudade daquela árvore de cedrinho. Saudade de usar toda a criatividade para enfeitá-la com ajuda da família inteira. Saudade dos palpites de todos. Saudade da alegria de concluí-la juntos, e sentir as portas dos nossos corações abertas para chegada do Natal. O individualismo nessa época nunca teve chance lá em casa.
        E isso era Natal, uma comunhão familiar. Do nosso jeito o amor enchia a véspera e o dia de Natal.
        Era assim que presenteávamos Jesus. Pendurávamos naquela árvore o amor de nossa família. Um grande presente para o Rei dos Reis.

Nota do Editor: Fátima Aparecida Carlos de Souza Barbosa dos Santos, ou simplesmente Fátima de Souza, é, sem dúvida, a primeira caiçara da sua geração a escrever sobre temas do cotidiano local. É autora de Arrelá Ubatuba.

(Fonte: O Guaruçá) 

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