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Leopoldo Louzada, pescador de outros tempos. |
Eu
comecei a escrever um texto sobre caiçaras de outros tempos. Parei logo no
começo. Pensei: certamente que outros mais gabaritados já escreveram sobre
isso. O primeiro nome que me veio à mente foi o de Eduardo Souza; eu tinha quase
certeza de que o título (Velhos Caiçaras) lhe pertencia, tinha sido escrito há
certo tempo. Não demorei a achá-lo graças ao arquivo de O Guaruçá! Espero que muitos façam bom proveito!
Ah! Reforço o elogio feito
ao Ezequiel! Bom moço do Sertão da Quina! Vida longa e muito sucesso em seu empenho!
Milan
Kundera diz que: ..."Dom Quixote saiu de sua casa e não teve mais
condições de reconhecer o mundo. Este, na ausência do Juiz supremo, surgiu
subitamente numa terrível ambiguidade: a única Verdade divina se decompôs em
centenas de verdades relativas que os homens dividiram entre si. Assim, o mundo
dos Tempos Modernos nasceu..." (A Arte do Romance, Editora Nova Fronteira)
Por que citar aqui o escritor tcheco? Para me dirigir ao amigo Ezequiel dos
Santos, que luta, lá pelas bandas da região sul de Ubatuba, o bom combate para
manter viva a memória daquela cultura em que fomos forneados, e lhe dizer que
seus textos, no jornal Maranduba News, sobre a Tia Maria Gorda e o Chico Romão,
transportaram-me à infância, fizeram-me refletir sobre a cultura caiçara, sobre
os velhos caiçaras e lembrar de minha vó materna.
Penso
que uma palavra resume bem o que foi essa cultura: religiosidade. A religião
católica tradicional, com sua riqueza de rituais e símbolos. Sem esquecer do
sincretismo, da herança de negros e índios. Basta pesquisar as danças e outras
manifestações que hoje fazem parte do folclore. Lembro-me de que, nas casas,
fossem elas de alvenaria ou de pau-a-pique, os oratórios ocupavam um canto
privilegiado da sala ou do quarto, todo enfeitado, cheio de imagens dos santos
da devoção, a Virgem Maria, o crucifixo ao centro, a vela e um vasinho com
pequenas flores colhidas no canteiro da casa. Na casa de vó Maria, o oratório
era no quarto, e havia, dentre tantas, uma pequena imagem de um santo por quem
tenho simpatia até hoje: São Benedito. Praticamente todo o folclore caiçara tem
um fundo religioso, católico.
Aquele
universo caiçara, de comunidades isoladas do resto do mundo, incrustadas em
sertões e praias de difícil acesso, tinha um Juiz supremo, a Verdade, que
permitia discernir o Bem do Mal, que estribava a existência e que permitia
consolidar uma comunidade. Hospitalidade, generosidade também são palavras
plenas de sentido quando me lembro das casas caiçaras em que fui recebido desde
a infância até boa parte da juventude. Nas casas mais humildes sempre havia
para a visita um café com farinha de milho ou com peixe seco assado nas brasas
de um fogão à lenha. Naquele universo havia ordem e hierarquia. Os velhos eram
estimados. Não havia necessidade de um código do idoso para que lhes
reconhecessem a dignidade. Era prudente ouvi-los. Respeitava-se também a
parteira, a benzedeira, o padre e a professorinha, espécies de autoridades
naquelas praias e sertões.
Quando
se perscruta o rosto de um velho caiçara, como o de Chico Romão, na foto
publicada no Maranduba News, o que se lê? Há ali uma sabedoria esculpida na
lida com a terra e o mar. Expressão de uma cultura resultante do enfrentamento
e dominação da natureza, de um sentido para o sofrimento alicerçado na fé. Não
quero de modo algum dizer que todos os velhos caiçaras que conheci eram
repositórios de sabedoria, não, havia aqueles que cerziam e condimentavam a
vida da comunidade com a alegria, com o humor dos causos, com o pitoresco de
suas vidas: Zé Capão, Sidônio, Macuco, Dito Olinto, Pica-Pau, Santinho, Chico
Sapo, Chico Alves, Lindolfo, dentre outros, foram alguns desses personagens.
O
texto do Ezequiel também me fez recordar minha avó materna, Maria Amaro de
Oliveira, sentadinha num banco de madeira, à beira do fogão de lenha, a acolher
os netos na "barra da saia" - porque nós, os netos, na iminência de
um castigo por alguma peraltice, corríamos para ela - e a contar histórias dos
tempos dos bugres e dos escravos lá para os lados da Praia Dura. Vó Maria era
comadre e madrinha de meio mundo e a todos recebia em sua casa. Foi nessa
humilde casa, de porta sempre aberta para a rua, que tive meu primeiro contato
com algumas manifestações que hoje fazem parte do folclore como a Dança de São
Gonçalo e o Xiba. Era também naquela pequena sala que ela recebia a Folia do
Divino, cujos integrantes nunca deixavam de visitá-la. Morreu com pouco mais de
100 anos. Tinha os olhinhos pequenos, mansos, usava sempre um vestuário de luto
pelo marido, meu avô Bento Paulista, exercia, só com um aceno ou um lance de
olhos, aquela autoridade matriarcal que as mulheres de hoje já não têm mais e
em cada ruga de seu rosto esplendia essa sabedoria que se norteia na caridade e
na fé.
"Pois
é, o tempo tá virando!" - disse o Chico Romão à filha, antes de morrer.
Pois não é que virou, Ezequiel. Um tempo terrível, um sudoeste bravo, que
entrou com suas nuvens plúmbeas e que permaneceu sobre estas terras até hoje.
Mas esse vento veio de longe, Ezequiel, dos confins do mundo, virando tudo de pernas
pro ar, relativizando tudo, afastando o Juiz Supremo, entronizando ideias cujos
frutos hoje estamos colhendo. O homem se colocou no centro do universo e
reduziu a vida ao econômico e ao político, ao dinheiro, ao partido, à
ideologia, à imanência, ao hedonismo.
Esse
vento trouxe o fim da nossa cultura. Chegou por aqui pelos meados do século XX.
Acabou com a tradição, com a hierarquia, com a ordem, com a família. Trouxe-nos
os bezerros de ouro da modernidade para adorarmos. Deu-nos também a angústia
generalizada. O sentido da terra reduziu-se ao valor monetário. A explosão
imobiliária introduziu a onipotência do dinheiro. Simone Weil diz que "...
o poder do dinheiro e a dominação econômica podem impor uma influência
estrangeira a ponto de provocar a doença do desenraizamento"; que "o
dinheiro destrói as raízes por onde vai penetrando, substituindo todos os
motivos pelo desejo de ganhar"; que o dinheiro "vence sem
dificuldades os outros motivos porque pede um esforço de atenção muito menor"
e que nada é mais claro e simples que uma cifra. Veio também, nesse tempo, o
ciclo do turismo e da construção civil, a imigração desenfreada com sua
mão-de-obra barata; a energia elétrica, o telefone, a televisão, o contato com
uma classe média paulistana infectada de modernidade, o tombamento da Serra do
Mar e a Polícia Florestal; as novas seitas religiosas, a nova teologia da
prosperidade, de igrejas compradas prontas e a relação mercantil com a fé. O
caiçara experimentou de tudo e ficou com o que havia de pior. Hoje somos
espécie em extinção, um reduzidíssimo cardume de tainhas posto numa lagoa
artificial e rasa.
Eduardo A. de Souza Netto
Fonte: O Guaruçá