Alguém desabrigado (Arquivo JRS) |
"Quando eu aprendi a 'ler' barulhos?". Pois é, acordei pensando nisto.
Um zumbido próximo é uma mamangava. Um farfalhar discreto é vento chegando, trazendo frio. Um ronco horrendo é um sem-noção da vizinhança deixando o caminhão ligado para infernizar os arredores. Uns piados alegres são os pardais em busca de comida no terreiro. Um assobio breve repetidamente, como se balançasse, é beija-flor contente com o bebedouro abastecido quase agora pela minha filha. Pancadas ao longe é alguma reforma doméstica. Canto lindo, capaz de me tirar do texto, é sabiá cantando no pé de carambola plantado por mim há mais de duas décadas, que serve de abrigo às ninhadas ano após ano...
O menino se apaixonou, não vê a hora de estar com sua amada. Seus desenhos são reflexivos e repletos de significados. Agora ele toca um instrumento de corda, cujos acordes me parecem melancólicos. Escuto tudo daqui, de onde escrevo.
Ouvir o vento, saber que um frio mais intenso vai chegar depois de uma possível chuva... Ouvir os lamentos dos desabrigados, dos abrigados sob árvores e espaços acessíveis ao público, nas beiras de praias... Tomar a atitude de acudi-los porque desta vida não se leva nada.
É preferível acreditar ser abençoado nas lembranças do que ser amaldiçoado pelos tempos. Agora, cedo ainda, psiu, não faça barulho porque tem gente dormindo.
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