sexta-feira, 1 de janeiro de 2021

CONSERTADA PARA SOLTAR AS PERNAS

 

Maré de cisco no Perequê-mirim (Arquivo JRS)

          O dia amanheceu nublado; até algumas gotas de chuva vieram assim que a escuridão se foi.  É novo ano (para os que seguem o calendário cristão).

     Isso de marcar o tempo é coisa antiga, dos povos antigos. Precisavam prestar atenção nas estrelas e no Sol, nas fases da Lua, nos comportamentos dos bichos, na brotação das plantas e em tantos outros fenômenos para terem mais sucesso nos desafios, nos empreendimentos e poderem festejar. Assim nasceram os calendários. Depois das chuvaradas, as cheias dos grandes rios traziam nutrientes à terra, cisco de montão, permitiam a agricultura e o surgimento das cidades com suas organizações. Pelas águas (mares e rios) se estabeleciam relações, vieram os contatos com povos diferentes, de saberes distintos e outros costumes.

   Na cultura caiçara, em Ubatuba e região, a praia era o lugar onde se estabeleciam relações com o mundo exterior. O trabalho e o lazer convergiam para este espaço. As novidades partiam e chegavam com as canoas, na força dos remos. Nas praias, sobretudo próximos dos ranchos das canoas, onde remendava rede e fazia manutenção dos apetrechos de pesca, a caiçarada fortalecia os laços sociais enquanto proseava, contava histórias, causos... tiravam pasquins, propunham adivinhações, combinavam pitirões, caçadas e festas.

   Com o passar do tempo, a sanha imobiliária modificou tudo. Os jundus foram ocupados pelas "casas dos tubarões". Depois, na década de 1970, surgiu a moda de acampar nas praias. Nem decretos municipais são capazes de controlar o fluxo nos feriados prolongados, final de ano e férias escolares. Neste momento, imagino famílias inteiras acumulando lixo (que serão deixados ali mesmo ou jogados no mato mais próximo), perturbando até a natureza com seu barulho infernal, em diversas praias, na areia mesmo. Continuam "comemorando" o novo ano. Faz parte da massificação cultural. 

  Atualmente, irreconhecível o espaço de sociabilidade de outros tempos,  a comunicação acontece pelo asfalto, televisão e internet. Uma nova geração de ubatubanos e de pessoas que adotaram a cultura caiçara está se recompondo no novo contexto, marcando o nosso calendário com eventos que são recuperados de outros tempos, onde a praia tinha um papel fundamental em tudo. Quantos encontros sobre musicalidade os fandangueiros realizaram no ano que se findou? Quantas oficinas de saberes tradicionais aconteceram? Quantas violas e rabecas essa geração de artistas produziu? Quantas imagens foram trocadas e divulgadas para resgatar traços importantes da nossa cultura? Apesar da pandemia, quantos momentos bons aconteceram no nosso território cultural? 

   Neste momento, olhando para um rótulo de uma bebida nossa, imagino as angústias do meu povo festeiro, do Dito do Antônio Clemente louco para dançar e poder gritar "amanheeeeeece".   Recorrendo à sensibilidade do Santiago Bernardes, exclamo: "Ah uma consertada para soltar as pernas e viola de  montão!".   
      Neste novo ano, apenas desejo que as nossas amizades se fortaleçam em torno da nossa cultura e do combate ao discurso de ódio que está corroendo o Brasil.

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