quinta-feira, 28 de janeiro de 2021

FOI-SE UMA PAJÉ

Na aldeia (Arquivo JRS)

    Crianças brincam alegremente. Notadamente, alguém vela por tudo. É dia de festa, de partilha e de reencontros. A juventude, aproveitando a data, com sorrisos e olhares, procura entre si amizades e pretendentes. Alguns, do namoro do ano anterior, seguram suas primeiras crianças. Desse modo se perpetua o grupo. Adílio e Maria trazem para me apresentar a pequena Cíntia. O avô se aproximou. Sorriu orgulhoso pelo casal que segura a menina. Não disse nada, mas pareceu esperar para ver também a minha satisfação. Um grupo de crianças, meninos e meninas, brincam chutando bola no chão de areia. Mais além, no barranco, três rapazes afinam seus instrumentos para a apresentação que vai seguir a programação. Eu admiro tudo. O idoso pajé anda com as mãos às costas. Todos o respeitam e deixam a sua passagem livre. Ele ronda pelos espaços, entre a gente dele e quem está visitando. Não se detém para conversar, apenas acena com cabeça e os olhos brilhantes que se escondem nas frestas do rosto agora bem enrugado, mas pintado com as marcas da tribo. Altino, em outra ocasião, me explicou que ele reza, vigia contra os espíritos maus que querem se misturar ao seu povo. "É nosso guardião. Tem a missão sagrada de prevenir os males e de curar as doenças que aparecem. Conhece os matos e as rezas. Todos que nascem aqui recebem o primeiro nome dele na Casa de Reza. Cada um de nós tem uma razão na natureza e no nosso povo. Nosso primeiro nome está no espírito da natureza. Nós somos parte dela. Cabe ao líder religioso escolher o nome de cada criança que vai se enriquecer com os dons da natureza. A vida dela escorre e alimenta essa pequena porção que é o nosso nome. Cabe ao pai e à mãe da criança  cuidar dessa semente, zelar para que seja uma frondosa árvore, com flores e frutos que agradam. Os pais e a mães da aldeia auxiliam sempre nesta tarefa. Os mais velhos também velam pelo povo".

     Passo horas de muita satisfação. Não noto, em nenhum momento, alguma alteração no ritual de pajé. Sempre indo e vindo lentamente ele passeia no mesmo ritmo. Penso eu que ele enxerga tudo com olhos superiores, com a força da mente e do coração. As crianças continuam como bandos de passarinhos: pulam e voam com as energias de corpos novos. Em volta, as energias dos adultos também zelam pelo espaço. Tudo é sagrado porque tem vida; aqui ela transborda. É a cachoeira ruidosa que me conduz agora. O local da festa ficou lá atrás. Sigo o caminho na mata escutando piados e cantos diversos. De vez em quando um barulho rápido denuncia que um animal correu ao pressentir os meus passos. Esse povo zela por tudo isso. À frente da  aldeia está o velho pajé e o cacique. Eles cuidam com toda dedicação dessa gente primeira do Brasil. O pajé está atento àquilo que paira acima de todos nós: a fidelidade, o compromisso com a VIDA. O seu espírito vive na busca, não se afasta do espírito da NATUREZA.


Em tempo:    Dona Lourdinha, a minha mãe de Juiz de Fora, falecida ontem, mais uma vítima do vírus do momento, poderia ser pajé. Foi pajé! Ela também zelava por nós, dizia que sempre estávamos em suas orações. Apenas quatro dias depois do Júlio ela se foi. Mãe e filho se foram. Resta a nós a forte energia dela que se fez nele, dos momentos que se fizeram conosco e são partes do nosso ser.

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