domingo, 23 de janeiro de 2022

O QUE IMPORTA É A TERRA SEM MALES

Arte da minha Gal - Arquivo JRS


    Estudando a demografia histórica de Ubatuba, escreveu a pesquisadora Maria Luiza Marcílio: 

    "Pelo mar chegaram os primeiros conquistadores e segundos povoadores:  de Portugal e Ilhas, mas também da África ou dos portos da própria colônia. Vieram também europeus de variada procedência e em todas as épocas. Os índios remanescentes, que conseguiram sobreviver ao etnocídio do século XVI ou que não escaparam para as montanhas ou outras Capitanias , tiveram que assimilar-se logo aos novos-vindos. Uma simbiose biológica, social e cultural que permitiu a permanência e a sobrevivência de uns e outros". 

   A citação nos permite entender as origens da cultura caiçara e a importância de cada grupo para a formação de núcleos populacionais surgidos ao longo da costa brasileira, sempre assentados na monocultura, naquilo que a elite portuguesa apostava como lucro certo. Na sequência da retirada de madeiras, começou o ciclo da cana-de-açúcar, depois o do café... O comércio de gente escravizada na África foi muito lucrativo. Mesmo após a proibição do tráfico, pela costa do litoral norte paulista eram muitos os portos de desembarques clandestinos. As trilhas que ainda existem ligando o alto da serra às praias até hoje são provas disso. Aqueles escravos que, devido a fraqueza e doenças da travessia pelo Oceano Atlântico não conseguiam subir a serra, esses caminhos que permanecem e atestam quão dura empreitada era aguardada sob peso do açoite e agrilhoados, acabavam sendo vendidos aqui mesmo por valores bem abaixo do mercado. Não demorava muito para esses sobreviventes serem descartados, se  juntarem em quilombos e nas atividades de sobrevivência dos outros pobres que aqui resistiam. E assim se fizeram, fundaram essa nossa cultura caiçara com base na pesca, agricultura  e caça. Tudo entremeado pelos aspectos festivos e místicos.

    Com o passar de tempo, com a intensificação do povoamento, se usa o termo caiçara para quem é morador tradicional daqui, sem diferenciação se pratica ou não as atividades tradicionais, querendo manifestar orgulho, sendo um atestado de identidade cultural, como se dissesse: "Eu sou caiçara porque eu pertenço a este território". Está valendo! Prova disso é gente de fora nos fandangos, se tornando pescador, participando das provas de canoas, gerando novas reflexões, produzindo artesanato, querendo vida simples, preservando a natureza etc. A grande verdade é que ser caiçara envolve dinâmica constante da relação entre o homem e o meio ambiente (mar, terra, rio e serra), marca o pertencimento a um território que garante a sobrevivência. O que se mostra como desafio após o advento do turismo é como as transformações do espaço vão sendo acompanhada pelas mudanças culturais. Tenhamos em mente que a nossa origem foi de agrupamento de etnias, de gente desvalorizada e/ou perseguida pela classe dominante europeia. Portanto, que esse princípio seja a marca principal da cultura caiçara. Não nos acomodemos e tenhamos claro o horizonte, a firmeza incessante da busca da terra sem males que já servia de farol aos povos originários desse território. Esta é a nossa esperança contra as forças opressoras e espoliativas que chegam de fora, muitas vezes sorrateira como uma cobra. O que me preocupa há muito tempo são os mecanismos dinâmicos que reduzem as pessoas a enxergarem  a natureza e os seus próximos apenas como fonte de acumulação do capital, esquecendo (ou desconhecendo) que este espaço já possui uma organização anterior. Bem anterior!

  Enfim, cabe discutir, fazer e celebrar nas comunidades, nos diversos grupos existentes e na sociedade civil organizada os diferentes projetos relacionados ao mesmo espaço: o NOSSO ESPAÇO CAIÇARA. Da resistência nasce a TERRA SEM MALES.

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