Flores que cuidamos - Arquivo JRS |
Neste começo de 2022, perdemos dois exemplos de resistência caiçara na comunidade do Camburi, em Ubatuba: Seo Salustiano e Dona Alaíde.
Morrer faz parte do ciclo da vida. "A única certeza de quem nasceu é esta: vai morrer", comentava vez ou outra o meu saudoso pai. "Se vai ser rico, pobre, bonito, feio, triste, contente...isso ninguém sabe. Mas morrer é certeza!".
Faço sempre questão de lembrar a frase de um pensador africano, mais ou menos assim: "Toda vez que morre um idoso, é como se uma biblioteca fosse queimada". Portanto, cabe à comunidade fazer um trabalho de resgate e fixação desses nossos pais e mães. Cada Centro Comunitário local deveria ter um arquivo, construir painéis com a finalidade de manter viva memória dessa gente, ter aulas a partir dali. São as nossas raízes culturais que nos permitirão viver melhor, sem sucumbir às tentações espoliadoras de um sistema que tem a vida comunitária como inimiga. As novas gerações não podem ser encantadas pelas novidades que se apresentam em ondas que vão nos sufocando. É preciso estar em constante vigilância, cultivar o senso crítico 24 horas por dia. "É muito fácil ser imobilizado pelo canto da sereia", me disse o amigo Beto em referência ao pensamento de muitos desse município que acreditam na verticalização, em prédios cada vez mais altos, como alternativa à nossa felicidade.
Qualquer um desses pais e mães da nossa cultura, criados em contato direto com os recursos naturais do nosso lugar, levarão para seus túmulos as preocupações com as sujeiras sendo escoadas pelos rios, os jundus desaparecidos, os morros tomados por casas de quem não precisa de casa, as gerações mais novas negando a própria cultura etc. Os mais novos, se nada for resgatado, se prevalecer a narrativa dos dominadores, se não houver celebrações dessas memórias-raízes..., serão como folhas ao sabor das águas e dos ventos, sem autonomia e sem referências comunitárias.
Há várias décadas, estando no Pé-da-Serra com o Chico Lopes, nos deparamos com o único morador de lá na época: Dito, um caipira que veio morar em Ubatuba, em meados do século XX, para ser mão-de-obra no advento do turismo. Ele vivia de produzir carvão perto da Estrada do Jipão, mas sonhava que ganharia muito dinheiro vendendo lotes ao redor. Tirando um papel encardido de uma pasta velha, nos mostrou um mapa daquele local. "Na verdade, meus amigos, tudo isto ainda cheio de árvores, de mato, já é um loteamento feito pelo Araquém Santana. Eu vou ajudar ele a vender a área". De fato, havia um empreendimento riscado e, aparentemente aprovado na Prefeitura. Aquilo já era um loteamento. Atualmente, o lugar é um bairro formado, com gente marcando mais posses serra acima, comprometendo ainda mais o meio ambiente, sobretudo a qualidade das águas dos rios e nascentes. Quem era o Dito? Alguém que abraçou a solução apresentada de se desfazer da terra, de vendê-la para ser feliz. Com toda certeza, o oposto de Seo Salustiano e de Dona Alaíde que prezavam a felicidade dentro de uma comunidade. O Dito morreu pobre, isolado e sozinho. Nem sei se tem algum interesse à sua memória.
O nosso jardim será a resposta da nossa dedicação a ele.
Obrigada por compartilhar tanta memórias histórias que deveriam estar presente na boca dos pais ao conversarem com seus filhos, nos currículos escolares e na nossa vida! Que Deus abençoe a cada dia sua sabedoria e sua memória.
ResponderExcluirGratidão, amiga. Você também é parte da minha memória. Abração.
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