sábado, 26 de junho de 2021

LÁ FORA O LUAR SE ESPARRAMA

 

Os carros trouxeram o turismo para as novas gerações (Arquivo Edson Silva)


       Bem cedo, antes dos passarinhos acordarem, me encontro lendo. O livro passa, um dia se acaba, mas seu conteúdo não. Ele fica na cabeça da gente. Por isso é importante registrar nossas percepções, sentimentos e lembranças. É assim que se espalha coisas pelo mundo, tal como sementes levadas pelos ventos, pássaros, insetos etc. Alguém, certa vez, me recomendou a prestar atenção e cultivar a memória do povo caiçara, do nosso lugar. Desconfio que é isso que faço desde sempre.

     Eu sou de uma geração da segunda metade do século XX, que estava na transição do sistema roça-pesca para o turismo. Conforme dizia a tia Astrogilda, do tempo em que "a gente só olhava um para o outro, esticava o pescoço e já achava que tava namorando"; do tempo em que, nas noites de lua cheia, a gente saía para apreciar na praia aquele brilho e aquela beleza de noite todinha iluminada que só se contempla do lagamar. Do tempo em que, nos lares, as lamparinas em claridade tremeluzente conduziam nossas imaginações fantasiosas ou medrosas; do tempo em que cada falecido era velado em sua própria moradia, entre prosas e rezas regadas com café e cachaça, seguindo, ao amanhecer, em cortejo até o local da última despedida dos parentes caiçaras; do tempo em que até os sinos nas capelas anunciavam a tristeza das perdas, de gente a menos a vencer os caminhos na busca de sustento e de alegrias. Importante dizer que não havia pressa porque o tempo tinha outra marcação, estava em outro calendário (sol, chuva, festas, cardumes, plantio, colheita...).

    Na transição da minha geração ainda havia a fartura das nossas roças, das imensas matas, do límpido mar, das praias e costeiras oferecendo o de comer entre as marés. Quem morava na cidade e nos bairros que viravam loteamentos precisava comprar de quem vivia na roça. A minha infância transcorreu testemunhando as farinhadas e as caminhadas com cheirosas cargas indo abastecer esse pessoal carente. Aquelas imagens dos mais velhos carregando sacos brancos de farinha de mandioca permanecem em minha memória. É essa memória que cultivo endereçada a quem chegou depois, mas rega e zela a curiosidade, a vontade de saber da nossa história; gente que acredita na importância da memória coletiva para se viver melhor.  

     Enquanto isso, no terreiro, até quase agora o luar se esparramava. Ah! Já tem passarinho piando!

   

Nenhum comentário:

Postar um comentário