terça-feira, 1 de junho de 2021

ANJO SEGUE ANJO

Atravessando o rio Quiririm (Arquivo JRS)

         Anjo era o cachorro da Maria, um companheiro que nunca falhava nas longas caminhadas a cada amanhecer. Depois de um café, a primeira parada era defronte ao Cruzeiro, onde se dizia que, originalmente, estava a cruz de Anchieta. Tudo leva a crer que nesse lugar ela se extasiava com o horizonte, onde o mar se fundia com o céu. Ali imaginava um passado, com indígenas olhando aquele ser estranho (um padre em trajes pretos) e a sua tosca obra, onde se ajoelhava e permanecia por muito tempo. "Seria ali mesmo? Ou será que, com o passar dos anos, os homens ajeitaram os fatos e registraram dessa forma?". Mas isso não tomava tempo da Maria! Logo enfiava os pés na areia molhada  e rumava ao outro canto da praia, onde estava a barra do Acaraú.  Ao longo da distância, ela se detinha várias vezes olhando as canoas e os pescados da noite, quando os pescadores retornavam quase sempre satisfeitos e orgulhosos por poderem mostrar os resultados de seus esforços. Várias canoas iam sendo roladas até o jundu, com redes embarcadas.

        Quase sempre Anjo corria na frente assustando guaroçás e provocando revoadas de urubus. Nem adiantava ralhar com ele. Maria pensava sorridente: "Cada qual com a sua razão". Vez ou outra ela tinha um dedo de prosa, bem rápido. Certo mesmo era se demorar com o Barroso, amigo desde sempre da família. Até parente se tornou mais tarde, pois casou-se com  a prima Amelinha. Era no porto deles, perto da capela, que avistou Samuel, filho do velho Moisés, quem contou do pescador misterioso da Ponta Grossa: "É de fora, dona! Um estrangeiro". Por curiosidade, mas também sentindo compaixão, foi ver o estranho. Estava na costeira; tinha o costume de pescar desde quando chegara em noite tormentosa, como se precisasse preencher o tempo e as angústias. Anjo chegou primeiro, sendo acariciado por rudes mãos. Se tornaram amigos na hora. Era estrangeiro mesmo! Mas conhecera, rapidamente, nos poucos meses, o falar, os hábitos e os sentimentos caiçaras. Maria entendeu quase tudo. O restante se revelou na paixão. Se ajuntaram; na primeira ocasião de ter um padre por ali, ocorreu o casamento. 

    O tempo passou. Agora mesmo, estando por ali, debaixo da Figueira do Tião, olhei uns meninos correndo no lagamar. Loiros e morenos, saídos da rua da minha amiga Carmen. Reconheci alguns netos da Maria. Um cachorro cheirou os meus pés e fungou em minha direção. "Anjo! Vem logo!". Era um dos  meninos que gritava. Deduzi imediatamente: "Trata-se de um descendente do antigo fiel companheiro, parceiro da saudosa Maria. Anjo que veio do Anjo". Que linda homenagem! 

2 comentários: