quarta-feira, 30 de junho de 2021

UM VIAJANTE NA HISTÓRIA

 

Aguatuba atual (Arquivo JRS)


       Volto nas recordações do ano de 1933. Estou na Estrada Imperial, me dirigindo a Ubatuba, no litoral norte paulista. Fizemos uma breve parada no alto da serra, no local denominado Aguatuba, para apreciar o mar lá de cima e tornar a encher o radiador da máquina. É uma visão bonita demais! Estou no primeiro carro a passar por essa estrada depois das tropas de burros. Será o primeiro a ser visto naquele lugar, naquela cidade logo ali. O dia? 21 de abril! Uma mata fechada parece querer engolir tudo. Somos quatro viajantes, e, pelo prometido, teremos uma acolhida sem igual. Luiz Silveira, representando o governador, será o grande honrado no evento.

      A estrada, conforme o nome indica, é um caminho oficial há quase dois séculos, quando por ele passavam cargas com mercadorias de todo tipo, inclusive ouro, devidamente registrado, provindo de Minas Gerais pela Mantiqueira, pela serra de Passa Quatro. Essa via agora refeita, inclusive com  trabalho de prisioneiros da Ilha Anchieta, está aberta aos carros. E lá vamos nós!

    As rodas do veículo, devidamente com correntes para dar mais garra, não nos livrou  de apuros, precisando em alguns pedaços deixar apenas o motorista arriscar nas manobras em curvas medonhas. Muito barro foi se acumulando em nossos calçados; até paramos num rio antes de chegar no centro da cidade para remover o que era possível. Ao longo da estrada, já no plano, poucas pessoas estão à nossa espera. Foguetes estourando ao longe indicam a proximidade do local da festa. Penso o quanto essa gente deve estranhar o barulho diferente, assustando passarinhos e bichos e soltando fumaça escura entre tanto verde.

    Chegamos. Diante de uma praça, na esquina de um bonito sobrado, deixamos o carro. Uma multidão enchia o local. Era dia de festa mesmo! Decretado feriado, o povo acorreu ao local. Rojões rugiam; crianças, mulheres e homens, em seus melhores trajes, estavam admirados da nossa chegada naquele carro.  também estavam contentes porque uma estrada aberta ao trânsito traria visitantes de outras regiões, estimularia o comércio. A economia baseada na pesca e na roça cederia lugar a outras tantas possibilidades. Enquanto acontecia o momento dos discursos, eu me dirigi à praia. Antes parei na igreja. Ali, defronte aquele edifício se arruinando, pensei nas esperanças reacendidas nessa gente, nessa cidade. Certamente tudo aquilo estaria diferente em breve tempo. Na praia, ao lado da cruz, imaginei as transformações futuras daquele lugar. Espero que sejam boas e tragam felicidade.

terça-feira, 29 de junho de 2021

BOCA DA BARRA, CANOAS, FESTAS...

 

Maria Comprida, a veterana. (Arquivo Ubatuba)

1945 - Rio Grande de Ubatuba - boca da barra (Arquivo Borges Schmidt)





         Boca da barra é o lugar onde o rio se encontra com o mar. Quase sempre é por ela que embarcações entram e saem no dia a dia de quem vive da lida no mar, de quem também se distrai nele.  No caso de Ubatuba, por dar acesso ao Mercado de Peixes, o movimento é intenso. Em outros tempos, também era ali o local de contemplar embarcações abarrotadas de produtos da terra, trazidos de localidades mais distantes, desde o Camburi, Picinguaba e outras praias. Vinham vender seus produtos; ali era a rampa onde se puxavam as canoas. Até hoje é comum encontrar caiçaras se referirem àquela rua (Esteves da Silva) como Rua da Rampa.

      "As canoas eram os carros de antigamente", me afirmou um dia o saudoso Velho Rita. "Aqui no Itaguá, quem é mais velho é capaz de lembrar do finado Tibúrcio Mesquita chegando da Fortaleza, vindo lá do rumo do Patieiro, com a sua mudança na canoa. A peça mais valiosa era um oratório que precisou vir atravessado porque era enorme. Nas canoas se levava e se trazia de tudo, de quase tudo. Quando mais novo, quase criança, eu trabalhava descarregando, entrando e saindo da boca da barra da cidade no remo, porque tinha época que havia muitos desses barcos grandes esperando vez para atracar no porto da Prainha. Se o comandante estava sem paciência de esperar, a gente era contratado para descarregar usando canoas, remando. Era ocasião de ganhar um dinheirinho para poder ajudar em casa". 
 
     Hoje, bem cedo, o amigo Rogério, gente nossa da praia das Toninhas, me enviou imagens dos festejos de São Pedro Pescador. Não pude deixar de postar uma imagem com tanta gente boa junto da Maria Comprida, uma canoa que conheci na minha infância, na ocasião que passou um tempo no terreiro do nhonhô Armiro, na Fortaleza, debaixo de uma jaqueira, sendo lixada e pintada pelo tio Salvador Mesquita.
    
   Que sigam as festas e essa gente toda que rema! Que sigam as canoas e os pescadores caiçaras!

segunda-feira, 28 de junho de 2021

SANTO DO MAR

 

Aguardando São Pedro Pescador (Arquivo Ubatuba)

E aquele povo ali,

esperando o Santo

como quem esperava as tainhas.

"São Pedro vem vindo!"

E deixam a boca-da-barra

o Santo, o padre e mais gente.

No altar, boiando em quatro canoas,

Ele abençoa os anzóis,

as redes 

e todos nós.

      

domingo, 27 de junho de 2021

MOMENTOS DE CAUSOS

 

Tais vendo aquela pedra? (Arquivo JRS)

       Bem cedo me deparo com a mensagem da amiga Péola a respeito de um momento de contação de causos. Eu adoro escutar a nossa gente nas impressionantes narrativas. Recomendei a ela que convidasse  também mulheres para o evento. Minhas avós adoravam contar causos e são responsáveis direto por essa tendência em meu ser.  Em momentos desses a gente se encontra com seres estranhos, acontecimentos bonitos, feios ou misteriosos, encantamentos, maldições, assombrações que têm preferência por determinados lugares, gente que é castigada por não obedecer preceitos religiosos, vinganças em locais tenebrosos, animais encantados, tristes sinas, particularidades familiares etc.

      "Creio que todos os causos passeiam entre a fronteira da fantasia e da realidade", afirmou alguém. Acho que é mesmo. No caso caiçara, mesmo naqueles poucos que não acreditam nas histórias, nos causos que escutam, se percebe o valor que dão à memória, à tradição oral; não perdem ocasião de preencherem seus momentos com agradáveis causos. 

      Causo é um gênero discursivo, tal como o mito, o conto popular, a lenda etc. No litoral norte paulista e por este mundo afora, persiste a a cultura da contação de causos. Prova disso é que estamos aqui hoje para compartilhar nossos causos.

      "O valor de uma história", já li em algum lugar, "não se mede pelo grau de realidade que ela contém, e sim pelo alimento que ela pode fornecer à imaginação e pelo bem que pode fazer à alma". Quando passo naquela praia, logo olho a pedra e me recordo do Velho Virgílio: "Tais vendo aquela pedra? É de onde saía o boitatá na época de lua nova. A coisa vinha até o lagamar e fazia a gente correr pra casa".

     Em sua tese de mestrado (Entre causos e contos: gênero discursivos da tradição oral numa perspectiva transversal para trabalhar a oralidade, a escrita e a construção da subjetividade na interface entre a escola e a cultura popular - Unitau 2007), a minha esposa (Gláucia Aparecida Batista) diz que "os resultados desta investigação apontam para a relevância da realização de atividades orais significativas para os alunos, não simplesmente como complemento de outras atividades de linguagem (leitura e escrita), mas como uma forma de exercício de si mesmos na relação social, ampliando o enfoque para além do desenvolvimento de competências, para a construção de sentidos às atividades realizadas na escola, de modo que possam ser transpostos para a vida cotidiana desses alunos [...] Considero que a competência oral não é inferior em importância à escrita e, por isso, deve ser continuamente trabalhada na escola ao lado das demais, constituindo-se não só num instrumento de expressão e de comunicação, mas também numa condição de potencialização do pensamento".

      Assim João de Souza iniciou a narrativa: "Seo Antônio contava que viu lobisomem, disse que o rosto continuava o da pessoa [...] aí ele foi pescar na sexta-feira, o seo Antônio com o amigo dele no Tenório. Aí ele foi buscar o remo, a canoa tava no rolo, meia-noite, a lua... Daqui a pouco ele escutou aquele uivo, né? Aí ele parou assim e viu o amigo dele, o corpo crescendo os pelos tudo, só o rosto dele...". 

       Que venham os causos!

sábado, 26 de junho de 2021

LÁ FORA O LUAR SE ESPARRAMA

 

Os carros trouxeram o turismo para as novas gerações (Arquivo Edson Silva)


       Bem cedo, antes dos passarinhos acordarem, me encontro lendo. O livro passa, um dia se acaba, mas seu conteúdo não. Ele fica na cabeça da gente. Por isso é importante registrar nossas percepções, sentimentos e lembranças. É assim que se espalha coisas pelo mundo, tal como sementes levadas pelos ventos, pássaros, insetos etc. Alguém, certa vez, me recomendou a prestar atenção e cultivar a memória do povo caiçara, do nosso lugar. Desconfio que é isso que faço desde sempre.

     Eu sou de uma geração da segunda metade do século XX, que estava na transição do sistema roça-pesca para o turismo. Conforme dizia a tia Astrogilda, do tempo em que "a gente só olhava um para o outro, esticava o pescoço e já achava que tava namorando"; do tempo em que, nas noites de lua cheia, a gente saía para apreciar na praia aquele brilho e aquela beleza de noite todinha iluminada que só se contempla do lagamar. Do tempo em que, nos lares, as lamparinas em claridade tremeluzente conduziam nossas imaginações fantasiosas ou medrosas; do tempo em que cada falecido era velado em sua própria moradia, entre prosas e rezas regadas com café e cachaça, seguindo, ao amanhecer, em cortejo até o local da última despedida dos parentes caiçaras; do tempo em que até os sinos nas capelas anunciavam a tristeza das perdas, de gente a menos a vencer os caminhos na busca de sustento e de alegrias. Importante dizer que não havia pressa porque o tempo tinha outra marcação, estava em outro calendário (sol, chuva, festas, cardumes, plantio, colheita...).

    Na transição da minha geração ainda havia a fartura das nossas roças, das imensas matas, do límpido mar, das praias e costeiras oferecendo o de comer entre as marés. Quem morava na cidade e nos bairros que viravam loteamentos precisava comprar de quem vivia na roça. A minha infância transcorreu testemunhando as farinhadas e as caminhadas com cheirosas cargas indo abastecer esse pessoal carente. Aquelas imagens dos mais velhos carregando sacos brancos de farinha de mandioca permanecem em minha memória. É essa memória que cultivo endereçada a quem chegou depois, mas rega e zela a curiosidade, a vontade de saber da nossa história; gente que acredita na importância da memória coletiva para se viver melhor.  

     Enquanto isso, no terreiro, até quase agora o luar se esparramava. Ah! Já tem passarinho piando!

   

sexta-feira, 25 de junho de 2021

SANTO TAMBÉM SE SUJA

 

Imagem: Toninho Félix 

        Mané Papudo, de Caraguatatuba, até uns anos desses, era um estranho para mim. Foi na praça da igreja Santo Antônio, a Matriz, que eu o conheci. Havia um canto naquele logradouro que era o ponto de encontro de moradores mais velhos da cidade.  Deve ser ainda. Tomara! Algumas vezes parei por ali para escutar os causos, as histórias. Adoro isto! Agora relato a fala do Papudo a respeito do santo padroeiro, da imagem que em outros tempos veio de Portugal. Não duvidei, mas me lembrei de um dizer do pai do Tiagão, lá da Itamambuca, quando o causo era mesmo espantoso: "A providência divina é capaz de muita coisa!". 

      Segundo o Papudo, houve um tempo em que os rios Guaxinduba e Santo Antônio se encontravam no centro da cidade, se esparramavam pelo grande mangue que vinha desde o Canto do Camaroeiro e rompiam a areia em pontos  diferentes conforme as épocas do ano. Outros, de  igual idade do narrador, amigos entre si, balançavam a cabeça e até diziam que era lugar piscoso, onde abundava robalos, e, no inverno, até tainhas entravam para a desova. Eu acredito que era mesmo, pois alguns lugares que cheguei a conhecer, com características semelhantes, também eram assim, tinham diversidade de pescados. Só que, por ser no centro da cidade, as enchentes causavam transtornos. Porém, naquele tempo ninguém ousava imaginar uma solução. "A natureza é coisa sagrada, não pode ser mexida",  disse um dos presentes. "O jeito era rezar". Mas rezar para qual santo ou santa? Lógico que teria de apelar ao padroeiro do  lugar. Afinal, era a Vila de Santo Antônio de Caraguatatuba. Pensei na hora: "O que um santo poderia fazer em tal situação?". Mas nada comentei. Então veio o espantoso: "O santo mudou o rio, separou os dois".  Nisso, alguém mais jovem ficou curioso, tal como eu. "E como, quando foi isso?". Aí o Mané Papudo assumiu a prosa:

    "Não é do tempo de ninguém daqui, moço. Era a minha avó Maria Saturnina quem contava. Ela viveu mais de 120 anos. Segundo escutei dela, numa noite o santo atendeu as rezas que faziam em relação aos alagamentos e desbarrancamentos. No amanhecer já não havia dois rios se encontrando, estavam longe um do outro. Ficou resolvido o sofrimento de quem morava por ali. Era vila ainda este nosso lugar. Sem dúvida, foi milagre do santo! A comprovação estava no altar, naquela igreja ali, que vocês estão vendo daqui. A imagem dele se encontrava toda suja no dia seguinte, com aquela terra do mangue; até barro preto tinha. Era ele mesmo. A figura toda suja de terra estava ali para quem quisesse ver. Foi uma comoção, estava na boca de todo mundo o  milagre e o esforço feito pelo coitado do santo a noite toda. Quem não gostou do feito foi o padre da época. Não sei o porquê. Até diziam que ele tentou tacar fogo na imagem, mas não conseguiu. Enfim, o importante aconteceu e está aí até hoje para a gente ver. Nunca mais o mangue foi o mesmo. No nosso tempo de crianças já não era tão grande. Hoje nem existe sombra dele. Foi todo aterrado, está debaixo de onde tem tudo aquilo ali, na avenida da praia. Os carros passam por cima, as pessoas dançam, praticam esportes, namoram e fazem tantas outras coisas sem imaginar que tudo ali era mangue alimentado pelo encontro dos dois rios.  Santo Antônio é merecedor de nosso reconhecimento até o fim da vida. Viva Santo Antônio! ".  

quinta-feira, 24 de junho de 2021

ERA UMA ILHA DE PAZ

Tranquilidade agora (Arquivo JRS)

 

     Olho para cima, de onde vem a barulhada. Eram baitacas conversando. Algumas ainda traziam alguns frutos dos arredores para comer ali, empoleiradas, na paz da ilha. Quem diria que, em 1952, no dia 20 de junho, acorrera ali uma grande revolta? 

     Estou me referindo à Ilha Anchieta, em Ubatuba. Lá se vão 69 anos do motim. O descaso pela ilha-presídio resultou nos dias de horror naquele tempo distante. Poucos dias antes da revolta, o professor de Direito Soares Mello visitou o estabelecimento e ficou impressionado pelo que viu: a segurança e as instalações abaixo do mínimo exigido, o que tornava a prisão um verdadeiro barril de pólvora prestes a explodir. A Colônia Penal do Porto das Palmas abrigava 451 detentos. O saldo, escreveram depois, foi de 28 mortos, seis desaparecidos e 24 feridos. Porém, suspeita-se que o número de vítimas fatais tenha sido maior. Meu finado pai falava de prisioneiros vitimados por cações bravos ao tentarem nadar na travessia do Boqueirão. Em maio de 1957, o presídio foi extinto. Os últimos presos foram removidos para Taubaté.

A captura de Pereira Lima (Arquivo Já)


      A liderança do motim coube a Pereira Lima.  Numa revista gentilmente cedida por um amigo achei a seguinte informação:

     João Pereira Lima nasceu em 3 de fevereiro de 1919, em Serra Negra, no interior paulista. Em 1938, alistou-se como voluntário na Força Pública do Estado. Seu primeiro crime foi cometido no ano seguinte, quando tentou matar Júlio Machado Mota, o que lhe rendeu 11 anos de prisão. Dois dias depois dessa tentativa, ele assassinou, num prostíbulo, o sargento Teodomiro Freitas Santos. Depois de outros transtornos e prisões,em maio de 1946 ele é posto em liberdade. Incorrigível, voltou à Casa de Detenção por assaltar um motorista de táxi. Já preso, conseguiu uma arma e, de sua cela, atirou contra o tenente Alfredo Marchetti e outros funcionários do presídio. Foi quando foi removido para a Ilha Anchieta, onde comandaria o grande motim em 1952.

    O julgamento pela rebelião na ilha aconteceu em 4 de julho de 1960. Pereira Lima foi acusado de três homicídios, de chefiar o motim e de promover  fugas de presos mediante violências contra pessoas. Foi condenado a seis anos e um mês de prisão. Recorreu da sentença e se deu mal. No outro julgamento, recebeu 30 anos de prisão. Foi transferido para o Instituto Penal de São José do Rio Preto. Quando tudo levava a crer que realmente tinha mudado, ele foi acusado de assassinato do diretor daquele presídio. Novamente condenado e cumprindo pena, conseguiu a unificação das penas e foi libertado depois de cumprir parte delas. (Revista Já - Diário Popular - 9/3/1997).   Em 1997, seu paradeiro era ignorado. Se vivo, estaria hoje com 102 anos. Um traço de seu caráter passou para a história quando alguns prisioneiros quiseram se aproveitar de mulheres durante a rebelião: "Quem puser as mãos em uma delas morre! Não somos um bando de tarados. Queremos só a liberdade".

      Resumindo: aquele espaço bonito só foi bonito ao meu povo até 1908, data em que os ilhéus caiçaras foram retirados dali pelo governador Jorge Tibiriçá. Depois do presídio veio a área de preservação ambiental onde bem poucos podem desfrutar daquele espaço. Após a privatização, menos ainda poderão frequentar a Ilha Anchieta.  Os pobres dali, de outros tempos, morreram nas boas lembranças e saudades. 

      Escrevi este partindo das lembranças das baitacas em algazarra, um dia, na ilha. Neste momento, em dia alegre de São João, as tiribas festejam, dependuradas no açaizeiro do meu quintal.

quarta-feira, 23 de junho de 2021

REGISTRO OBRIGATÓRIO

 

A turma da primeira prova (Arquivo Arouca)

Lançamento (Arquivo Lunardi)


      De repente me pego numa página do Justo Arouca, que por sinal estará lançando um novo livro - Sabiá laranjeira - no próximo dia 2 de julho. (Gratidão ao amigo Carlos Lunardi pela notícia).  No título Registro obrigatório, do primeiro livro, o líder do grêmio estudantil  relata o quanto a juventude tem força quando decide por uma realização: a prova natatória na cidade de Ubatuba. É a prova de que aquela geração de caiçaras enxergava mais longe, além da vida de pescador e de roceiro; tinha a preocupação de motivar o turismo. Faço questão de notar que a associação desses jovens no Grêmio estudantil 28 de abril, do Ginásio Capitão Deolindo (Ubatuba), tinha apenas um ano de vida ao promover a primeira prova natatória. Que nos conte o Arouca!

   A primeira prova aconteceu no dia 29 de maio de 1960, último domingo de maio. A primeira Comissão a dirigi-la estava assim organizada: Presidente: Justo Arouca; 1º Secretário: Aílton Correa de Figueiredo; Tesoureiro: Pedro Paulo Teixeira Pinto; Membros: William Sebastião Duarte, Luiz Alves Torres, José Luiz de Freitas e Luiz Carlos Vianna. Juiz da Prova: Mário Coutinho de Oliveira. Fiscais e Mesa de entrega de prêmios: Benedito Ciro dos Santos, Hélio Heber Lino, Maria Zélia Waruna Swirski, Ponciano Eugênio Duarte, vereadores Arlindo Alves Torres e Silvino Teixeira Leite. Recepção: José Wilson de Araújo, Ênio Taddei dos Reis e Herbert José de Luna Marques. Rádio Iperoig: Antônio Mário Sidow Pagano. Embarcações: Wit Andrejez Waruna Swirski, Benedito Pinho, Moacir Barbosa, Benedito Barbosa e Marcos Waruna Swirski. 

Nadadores participantes (14): Rivaldo de Oliveira, Carlos Roberto Ferreira, René Sérgio Marques, Antônio José Fragoso, José Alves da Cruz, Benedito Pinho Filho, Custódio Galvão de Oliveira (Caramelo), Onivaldo Serpa, João Maria de Castro Toledo, Joanilson Novais Serpa, Celso Teixeira Leite, Alcione Lamosa Duarte, Bendito José dos Santos, Ronaldo Gonçalves Duarte. Classificação: 1º) Ronaldo Gonçalves Duarte; 2º) Carlos Roberto Ferreira; 3º) Alcione Lamosa Duarte; 4º) Celso Teixeira Leite; 5º) René Sérgio Marques; 6º) Benedito Pinho Filho; 7º) Rivaldo de Oliveira; 8º) Custódio Galvão de Oliveira (Caramelo).

     Faço questão de um detalhe final: o Caramelo era padeiro, trabalhava na Padaria Estrela. Ou seja, passou a madrugada trabalhando e ainda encarou a prova, obtendo a oitava colocação. Bravo! (Observação: quem tiver outros detalhes pode me enviar nos comentários).

terça-feira, 22 de junho de 2021

POESIA NÃO ESCRITA

 

Carcará na sombra (Arquivo JRS)

    O tempo esfriou.  Agora é correr para agasalhar o pinto e tomar cuidado com o gavião. Assim está na poesia não escrita do mano Mingo


No tempo em que lá em casa

Não se escrevia,

Mas se praticava poesia,

Vovó costurou na flanela

Uma blusinha para o franguinho

Doentio transido de frio.

Foi o tempo de repô-lo no quintal

E o gavião catar o bichinho,

Mas ficou só com a flanela

E deixou na Terra um escarcéu

De pinto que pia

De neto que berra

De avó que se ria.



domingo, 20 de junho de 2021

ESTUDANTES SE ORGANIZAM

 

Itaguá Praia Clube - Arquivo Ubatuba




     Em 1958 surge, em Ubatuba, o Ginásio Capitão Deolindo de Oliveira Santos. Funcionava nas dependências da Escola Esteves da Silva, no período noturno. À juventude surgiu a oportunidade de ir além do ensino primário. Alguns adultos também reiniciaram os estudos. Segundo Justo Arouca, da equipe do primeiro Grêmio Estudantil, "110 estavam matriculados logo de início, estando ele na primeira formatura, em 1961, além da Wladinéia Ferreira, Sônia Shimidt, Suley Moreno, Idinéia da Cruz, Hebe da Silva, Raquel de Souza e Anita Nunes. A festa de formatura foi no Itaguá Praia Clube. Faltou luz naquela noite, fato mais ou menos comum naquela época. Lemos o discurso de formatura sob luz de vela, inclinando o papel para receber a precária luminosidade. Mas...um milagre aconteceu: a luz voltou quando a orquestra Ritmos Icaray, vinda de Taubaté, começou a tocar para o baile começar".
      
      Passando pelas diversas escolas do município, noto aquilo que o Arouca fez questão de anotar em seu livro - Ubatuba, onde a lua nasce mais bonita -   denúncia do quanto pecamos em não cultivar a memória do nosso lugar e das pessoas que um dia foram homenageados com seus nomes nas unidades de ensino.

     "Ginásio Capitão Deolindo de Oliveira Santos. Não me recordo que a escola tenha se preocupado em reverenciar seu patrono, ou que comemorasse o dia do seu aniversário. As informações mais consistentes diziam que o Capitão Deolindo foi tio do seo Filhinho da Farmácia e sua graduação teria sido título honorífico que recebera, como honra à jactância pessoal, mas foi Prefeito Municipal. Com ou sem garbo, o Ginásio "Capitão Deolindo" tornou-se o farol irradiante a iluminar o caminho para que a nossa rapaziada ganhasse ânimo e força na trilha segura de um novo tempo".
  
      Foi essa rapaziada, organizada no Grêmio Estudantil 28 de abril,  que iniciou a luta para obter espaço às práticas esportivas. A única quadra de esporte era particular, a do Itaguá Praia Clube, sem convênio com a Prefeitura e sem nenhuma vontade de ajudar. O proprietário era o Dr. Lycurgo Barbosa Querido, empresário de Taubaté, cujos loteamentos iam desde a praia do Itaguá até a divisa com o Sertão da Sesmaria.   

      "Após uma 'briga' de quase um ano para a utilização daquelas dependências, o presidente-proprietário do Clube, finalmente, firmou termo de uso de todas as instalações da praça esportiva. Uma bonita quadra fechada em alambrado, ajardinada em toda a sua volta, com duas quadras de tênis, quadras para basquete, vôlei e futebol de salão. Quadra de areia para vôlei de praia, bocha e quiosque para recreação. Tudo bem cuidado pelo seo Porfírio, o zelador".

        Em 1963, sob a presidência de Ailton Figueiredo, o Caculé, o Grêmio juntou os alunos; fizeram o primeiro movimento público com faixas e discursos, diante da Câmara dos Vereadores, pela construção do prédio novo para o Ginásio. Até bateria levaram para mostrar a animação. No alvorecer da década seguinte, o prédio onde até hoje funciona o "Deolindo" foi inaugurado.

      Me inspirei para escrever este relato após ouvir e ver, ontem (21/06), a energia da UNE (União Nacional dos Estudantes) contra os descasos do Presidente da República pelo nosso povo. É da juventude que pode brotar ações contra a hipocrisia e as injustiças! Eu aposto no protagonismo juvenil! É essa juventude que encarna o mesmo espírito de outros tempos, da juventude do Grêmio Estudantil 28 de abril. Como disse na época o velho Ponciano Eugênio Duarte em frente ao seu bar e mercearia: "Pena que eu não tenho uns rojões para festejar isso. Estou orgulhoso desses meninos".

sexta-feira, 18 de junho de 2021

ESTRAGASTE TUDO, SEU MERDA!

 

A bicicleta do Jura (Arquivo JRS)


        Jurandir, acompanhando modas de fora, construiu uma bicicleta nova juntando pedaços de outras: alongou os garfos, fez uma seleta de encosto, esticou o guidão, arrumou uns faróis grandes e pintou de amarelo  puxando para ocre. Com uma vela queimando, fez uma manchas pretas pelos canos. No para-lama dianteiro, um passarinho de asas abertas pedia passagem. Ficou diferente e bonita, resultando no comentário do primo João Cabral, um solteirão recém chegado de Santos, onde estivera trabalhando por duas décadas: "A mente humana é capaz de tantas coisas, cria tantas novidade...Depois você me empresta para eu dar umas paqueradas".

    Aquela bicicleta era um sucesso em 1970. Seu dono a usava apenas aos domingos, às margens da rodovia para se mostrar aos transeuntes, aos viajantes do trajeto acabado de ser reinaugurado. Logo veio a temporada, com as praias se enchendo de veranistas. Era quando as famílias ricas (da capital e outras cidades grandes) passavam ao menos um mês se deleitando nas praias, se realizando com o imenso mar e comendo bastante peixe fresco.

    As férias escolares eram ocasiões de namoros aos jovens caiçaras. Sempre encontravam um jeito de marcar  encontros com as empregadas trazidas pelas famílias; criavam oportunidades de namoros que sequer conseguíamos entender como era possível. Muitas dessas moças nunca mais subiram a serra, casaram-se por aqui. Seus descendentes são muitos dessa caiçarada de hoje.

    Numa ocasião a sorte sorriu para o já citado João que vivia doido para arrumar uma companheira. Um baile acontecia no "Salão", sede do Esporte Clube Anchieta, denominado de "Cocheira" pela Dona Aparecida, mãe do rapaz da bicicleta. Uma solteirona conversava animada com o João. Depois de duas ou três danças, o casal se dirigiu à praia que era, logo ali, um refúgio dos namorados assim que escurecia. De repente, uma zoeira e uma trombada. Ele foi para um lado e ela para o outro, rolaram sem ainda estar na areia fofa. Jurandir, já chapado de conhaque, surgiu do nada com a bicicleta desgovernada e fez o estrago.  Ela, bem machucada, precisou ser atendida às pressas por Joaquim, o enfermeiro. Em seguida, foi levada à casa do patrão. João estava inconformado. Só restou desabafar a raiva no Jurandir com uns tabefes: "Estragaste tudo, seu merda! Ai que raiva de você!". E estragou mesmo! João findou seus dias solteirão, bebendo cachaça como consolo. Eu sentia muita dó dele.

quinta-feira, 17 de junho de 2021

A MÃE EMÍLIA

Um casarão na beira da estrada (Arquivo JRS)

 

         O Velho Brasiliano adorava um vinho e uma boa prosa. Nos entremeios cantava músicas sertanejas, das antigas. De vez em quando até trazia o pequeno rádio à pilha para que eu ouvisse um programa que ele gostava muito (O homem do sapato branco). Numa ocasião ele me contou uma história emocionante, ocorrida no município vizinho de São Luiz do Paraitinga. Tratava-se de uma família jovem, cuja esposa morreu durante o parto do filho, cabendo à ex-escrava Emília os cuidados com a criança. Nem bem tinha doze anos o menino Antônio, o viúvo se enamorou de uma jovenzinha, causando transtorno no  adolescente. Foi  com muito esforço que ele aceitou o casamento do pai. Não demorou muito para o rapaz ir embora, estudar em outra cidade. Nisso, do segundo casamento do pai, nasceu uma menina. Porém, a jovem mãe logo adoeceu e não houve quem a livrasse da morte. Novamente a escrava, que criara o primeiro filho, assumiu ser a mãe-de-leite da segunda criança. No primeiro período de férias, o rapaz retornou para conhecer a irmãzinha e estar mais perto do pai que sofria com a perda da segunda esposa.  Era a   "Mãe Emília" quem se devotava à menina que se chamava Laura. Com menos de um ano, a bondosa mulher percebeu algo estranho na criança: era cega. Nenhum médico conseguiu tratar da criança. Nasceu cega e cresceu cega. O irmão, Antônio, em todos os períodos de férias, se devotava à irmã, principalmente depois que o pai morreu por picada de cobra. Ele se formou em agronomia e se dedicou toda a vida a zelar pela felicidade da irmã cega. Viviam na mesma casa, juntos com  Emília e seu parceiro Ezequiel; formavam uma única família. Ali vivem até os dias de hoje. É um lugar muito bonito, perto da estrada. Ai deles se  não tivessem a "Mãe Emília"!


   Agora, veja o que eu encontrei entre as narrativas da Idalina:


    Hoje, quem passa pela estrada do arraial de São Luiz, se depara com uma fazendola escondida por entre árvores frutíferas que sombreiam a sua estrada. Mais além, primaveras de todas as cores derramam suas pétalas sobre a relva verde e macia que circundam o alpendre, enquanto um cão dorme preguiçosamente aos pés de sua dona.

    Lauri, bela como um anjo, sorri docemente para o homem moço e esperto, apoiado a um rústico cajado, que lhe conta com minúcias sua última caçada. Um carro passa pela estrada. Nem mesmo assim Antônio desvia o olhar da criança feita mulher que não sente o tempo passar, porque o destino ingrato - mas sempre certo no roteiro de Deus - lhe roubou o maior bem que o ser humano possui na terra, a visão.


   Estou quase acreditando que a história de saudoso Brasiliano é a mesma da Idalina. Laura poderia muito bem ser Lauri, você não concorda? Também me sinto atraído por aquele casarão à margem da rodovia Oswaldo Cruz, em São Luiz de Paraitinga. Imagino ter se dado ali essa história, onde Emília, filha da Mãe África,  foi "Mãe Emília", aquela quem garantiu a existência daquela família. Que coisa!

terça-feira, 15 de junho de 2021

MAR DA VIDA

 

Roseli na dança da fita (Arquivo JRS)

Festa na capela do Itaguá (Arquivo JRS)
    

     É com profundo pesar que me solidarizo ao Mestre Élvio pela perda da esposa Roseli em decorrência da pandemia. Era uma discreta amiga da Comunidade Católica do Itaguá. Conheci o casal por ocasião de uma festa na capela  Nossa Senhora das Dores. Ah, faz tempo!

     No começo do ano passado, antes da pandemia, ainda me encontrava de vez em quando com ela voltando das atividades esportivas no grupo das pessoas aposentadas, se preparando para jogos intermunicipais. 

    Muitas vezes me alegrei com a empolgação do casal nos ensaios e nas apresentações do grupo da Dança da Fita. Sem dúvida que esse fato triste deixou o meu amigo, os filhos, os demais familiares e amigos numa situação difícil. Roseli é mais um pedaço de nós, caiçaras, que se desgarra e se vai no mar da vida, mas continuará sendo um farol aos que a conheceram. Forte abraço, Élvio e familiares. Muita força a todos. 

O ONTEM É HOJE. E AMANHÃ?

O futuro na nova geração (Arquivo JRS)

       Há muito tempo, quando eu era ainda adolescente, o velho Hiroíto ( Hiroíto de Moraes Joanides - 1936-1992, criminoso conhecido como "O rei da Boca do Lixo" nas décadas de 50 e 60, na capital paulista) morou um tempo na praia da Fortaleza. Frequentador do bar do Jorge, da venda do Cáindo, ele convivia com os caiçaras nas prosas. Pelo que soube, apenas um dia, em confusão de bêbado, quis matar o Toninho Caipira. De resto, vivia por ali, em companhia de outros paulistanos que vieram viver em Ubatuba no ideal de estarem mais próximos da natureza e mais livres em seus costumes. 

     Hiroíto, regularmente, dava umas aulas durante as prosas. Explicava o que vivíamos no Brasil. Era o final da década de 1970. Muita coisa a gente só escutava, mas outras eram levadas em consideração, contribuíram com nossos rumos de vida. Afinal, a gente está sempre aprendendo, né? Numa dessas ocasiões, ele discursou sobre barbárie. Logo eu e outros pensamos em barba e rimos, olhando para o João Barbudo, meu tio. "Vocês estão certos!" Segundo a fala dele, era uma classificação do tempo dos romanos antigos, dos desbarbados. Os demais povos, cultivadores da barba e diferentes nos modos da civilização latina, foram denominados de bárbaros, iam em sentido oposto à proposta dos romanos. "Ou seja", esclareceu Hiroíto, "quem quisesse conviver no Estado, no império deles, precisava abraçar os modos deles, escolher entre a barbárie e a civilização. Vocês entenderam?".  Entendemos sim. Quase perguntei na época se ele havia fraquejado na escolha, mas deixei pra lá. Mais tarde, lendo o livro da vida dele, entendi as circunstâncias que o levaram na direção do crime. 

          Hoje, passado tanto tempo, penso que refletir sobre o assunto daquele tempo está atual. Parece que o ontem, com os simples caiçaras escutando aquele homem na aparência de doutor, é o hoje. Afinal, o Brasil não está vivendo uma escolha entre a barbárie e a civilização?

domingo, 13 de junho de 2021

VOCÊ JÁ VIU MUÇURANA?

 

Mestre Élvio (Arquivo JRS)


      Um dia, no Museu Caiçara, foi promovido uma roda de contação de causos. Assim que começou, veio um em cima do outro. Mestre Élvio tinha um estoque deles. O tempo voou; faltou até para escutar mais. Sei que muitos foram guardados, pois todos queriam contar  e escutar. A minha gente é assim, se anima quando se encontra. Um causo que guardei, deixei de fora da prosa, foi o da muçurana, do Sebastião Adolfo, pescador de Caraguá. Conto agora. Ou melhor, ele conta:

     Quando eu era pequeno, acatando a educação do meu finado pai, era preciso estudar e trabalhar. Num determinado dia, quando eu estava indo para estudar, ele disse:

   - Se a professora não for dar aula hoje, você pega a enxada e vem ajudar a carpir esse eito de café. 

  Parece que meu pai estava adivinhando. Minha professora, acometida de um resfriado bravo, não daria aula naquela semana. E assim voltei para casa na intenção de dar uma força ao meu pai. Quando caminhava para a roça, deparei com uma coisa estranha que atravessava a estrada. Fiquei paralisado vendo aquilo que mexia, mexia e ia atravessando, da grossura de um garrote. Apurei a vista e vi que se tratava de uma cobra de tamanho avantajado. Eu nunca tinha visto coisa igual. Ela atravessava, atravessava e não parava de atravessar. Eu não tive coragem de atravessar pulando por cima dela. Teria de explicar para o meu pai porque estava atrasado. Para você ter uma ideia, a cobra começou a atravessar mais ou menos às 8:30 e só foi terminar por volta das 10 horas. Veja como era grande a danada! Eu estava com medo, podia apanhar do meu pai pelo atraso. Naquele momento ele veio, me encontrou ali, ainda parado. Me perguntou o que eu fazia naquele lugar, no meio do caminho. Então expliquei que a professora não foi dar aula, mas que acontecera o imprevisto da danada da cobra que  atravessou naquele lugar. Ele acreditou porque já conhecia essa cobra. Era a muçurana. Ela tem cabeça grande, é forte, de cor azulada. Fazia medo mesmo. Por isso escapei de uma coça.


    Cobra grande existe mesmo. Mas igual a essa muçurana do Tião só essa mesma! Medalha de ouro para o velho pescador. O saudoso Genésio, do Camburi, me contou de uma que morreu na estrada, assim que a BR-101 foi inaugurada: "Um caminhão pesado passou por cima dela, de noite. Amanheceu morta, estirada no asfalto. Ela pegava do mato até a metade da pista; os carros precisavam ir pelo outro lado. Todo mundo foi lá ver". Resolvido: a cobra do Genésio fica em segundo lugar (por enquanto!)

    

sábado, 12 de junho de 2021

IZIDORO VIROU FUMAÇA

 

Uma rosa em casa (Arquivo JRS)

    As flores parecem agradecer nossas atenções. Não tem como eu deixar de vistoriar e apreciar a natureza no nosso quintal a cada dia. Um broto novo aqui, uma flor em botão ali, uma borboleta voejando acolá... As plantas e a terra debaixo dos meus pés me animam, fazem pensar em minha família nos enfrentamentos no mundo, nas alegrias e nos prazeres tão essenciais a nós. Esses traços  - de ligação com a terra e de cuidar das plantas - vem da família, dos meus entes queridos. Meus avós tinham terreiro repleto das mais variadas flores, dos mais variados perfumes; meus pais nunca desaprovaram eu mexendo, plantando, podando etc. Minha esposa me conheceu assim e gosta do nosso espaço. Minha filha sempre acha um tempo para se devotar aos vasos e mudas. Meu filho reclama quando me vê podando, acha exagero.

    Minha vó Martinha sempre chegava em casa com uma planta diferente ou uma flor para presentear. Apanhava pelos caminhos ou quintais alheios. E ainda costumava visitar cemitérios prestando atenção se havia alguma muda a ser adquirida! É mole?  

    Então me lembrei que a Idalina contou uma história engraçada, acontecida com a Mariana.


  Mariana olhou-me e disse sorrindo: 

  -  Vou contar uma história verídica, que passou a ser lenda na boca do povo. 

  -  Como sabe que é verídica?

  -  Pois sei; passou-se comigo. 

  -  Bem, então é verdade. Conta lá, Mariana.

  - A senhora sabe que eu sou quimbandista e como tal fui fazer um despacho no "cimintério" às quatro horas da manhã. Antigamente, o muro de lá era mais baixo e eu era mais moça, assim foi fácil transpô-lo. Terminada minha tarefa, eu tinha a maior pressa possível de sair dali. Assim foi que, dando um impulso ao corpo, formei o pulo, indo justamente esbarrar num cesto repleto de pães, que o feliz padeiro assobiador, precisamente naquele instante, por ali carregava. O grito estridente e pavorosa que deu me fez gelar o sangue nas veias. O padeiro, nem sombra. Este virou fumaça. Refeita do meu espanto juntei os pães como sapinhauá na praia. Escondi a maior parte na rasteira relva que ali crescia em profusão, para quando houvesse oportunidade ir buscar o restante. Já era quase dez horas quando, indo ao mercado, a custo contive o riso. Pois era voz corrente que um fantasma havia agredido, na porta do "cimintério", o Izidoro, para roubar os pães, pois não se encontrou um só para contar a história. Quem passou bem fui eu, comi pão a semana toda.

 Olhei para o rosto moreno sulcado de rugas, mas feliz ao recordar façanhas da sua mocidade. 

  Quase no final do século XX,Idalina se mostrava alegre por boas lembranças da vida caiçara em Ubatuba.

quinta-feira, 10 de junho de 2021

AVISO DE PEIXE-REI

 

Peixes-reis (Arquivo internet)

     Nosso pequeno grupo decidiu passar o fim de semana naquela praia isolada. Fomos hospedados na moradia de uma senhora nascida lá mesmo. Era uma casa  simples, de pau a pique, no jundu. Poucas outras se localizavam pela vizinhança: uma comunidade caiçara. A tranquilidade do lugar e das pessoas levaram à prosa no serão, debaixo das amendoeiras. A lua cheia despontou assim que escureceu; o mar brilhava. Quase nem se escutava o murmuro das pequenas ondas que chegavam no lagamar. Apenas morcegos se manifestavam em guinchos enquanto derrubavam frutos roídos. Surgiram muitas histórias do lugar e de nós mesmos. Falaram de peixes grandes, de marés fortes, de mar bravo chegando nas portas das casas...

   O cansaço da caminhada fez com que logo todos quisessem dormir. A noite voou nas esteiras estendidas pelo chão de terra batida. Bem cedo me levantei, antes do dia clarear. Sai de mansinho, descalço, fui logo molhar os pés nas águas do mar. Fazia tempo que estava com saudade do ritual. Pescadores do lugar já tinham saído mar afora. Vi os rolos e as marcas dos pés deixadas na vazante da maré. Logo se aproximou um cachorro na maior tranquilidade, mas não se demorou. Deitou-se perto dos rolos mais acima, na linha dos primeiros matos. Descobri naquele momento que ele guardava os rolos das canoas, sinal de fidelidade ao seu dono.

   Aos poucos o dia veio. E o restante do pessoal também! Estavam bem descansados e contentes pelo lugar e pela paz. Logo tomamos café, lavamos a louça e nos preparamos para entrar no mar. Um a um os pescadores foram chegando e puxando suas canoas. Peixes frescos, ainda se debatendo nos balaios. Poucos dali tinham visto aquilo. Se admiraram. Um dos pescadores nos deu uma grande enchova: "É para o almoço de vocês". Agradecemos. Levei para dentro, deixei no tanque para preparar depois. Voltei e encontrei todos na água. Maravilha! De repente avisto uma coisa estranha: peixes-reis estão encalhando, comidos pela metade. Pego um deles e mostro  ao Zequinha, um dos que chegaram da pesca. Assustado ele olha para os que estão na água, se divertindo. E grita: "Saiam correndo. Saiam, saiam, saiam logo. Tá chegando peixe bravo". Todos deixaram o mar imediatamente. Então ele explicou: "Tem bicho atacando os peixes miúdos. E está perto daqui! Peixe-rei, quando chega nessas condições na areia, é aviso para nós. Na última vez, no mês passado, era cação, tintureira. Se quiserem podem sentar e esperar para ver. Só não voltem para a água". E assim fizemos. De fato, nem meia hora depois, galhas escuras rodeavam um parcel logo ali. Não houve como se arriscar em mais banhos de mar naquele dia.

terça-feira, 8 de junho de 2021

RECUPERANDO SONHOS

 



1992 - Juventude caiçara agindo na história (Arquivo JRS)

    Mamãe, bem cedo, já distribuía as nossas tarefas: um saía para comprar pão, outro lavava louça depois do café, alguém passaria pano  no chão e assim por diante. Todos tinham o dever de arrumar  suas camas assim que se levantassem. Aprendemos dessa maneira. Depois, obrigação sagrada era ir à escola. Brincar também era um prazer sagrado. E assim fizemos a nossa parte. 

    Vinha a noite, vinham as histórias. Por fim,os sonhos se fortaleciam. No dia seguinte outras ansiedades acompanhavam nosso crescimento. Com a gente também crescia o nosso lugar; mais gente ia chegando. Casas de veranistas foram surgindo e trazendo trabalhadores. Também precisamos trabalhar. Nossos costumes foram se modificando por conta da diversidade; alguns desapareceram. De repente, outras necessidades e cobiça; sonho de ficar rico. Mas o que é riqueza? Ter mais de uma casa, carro, roupas e calçados da moda... Ah! E tudo antes não era riqueza? 

   Por ingenuidade caímos em tentação, fomos iludidos, abrimos mão dos nossos sonhos originais, de querer viver numa grande família, sempre festejando. Nossos pais corriam para nos manter firmes; viviam ainda com um pé na roça  e outro na canoa.  Mais tarde precisaram ser empregados, deixar de lado o tempo da natureza. Com sol ou chuva se fizeram animais para o matadouro. Grilhões novos ao povo caiçara. 

   Ainda bem que estudamos! O mundo está dividido entre patrão e empregado, ricos e pobres. Todas as modificações, sobretudo as ambientais, decorrem disso. Assim o mundo vai se fazendo. É a vontade dos homens... dos ricos! Poucos homens! Sentimos necessidade de se reunir para discutir a nova cidade e os novos desafios. Das diversas comunidades a gente foi se reunindo, discutindo, crescendo e festejando: uma geração recuperando sonhos.  E hoje? 

segunda-feira, 7 de junho de 2021

O MERO DA FOLIA

Ilha do Tamanduá - arquivo JRS


     Me dizia o Aristeu, nascido na Ilha do Tamanduá, que um mero muito grande morava por lá, na costeira, do lado de dentro, avistada da ponta da Figueira. Os caiçaras daquele tempo o conheciam e respeitavam. "Era criatura de mais de cem quilos, segundo o meu finado pai. Tratavam por Vovô".  E eu acredito que era mesmo! Nunca soube que ele foi pescado;  até hoje não sei. Se ainda viver, deve estar repleto de cracas. Meu avô Estevan se referia a ele com se fosse um respeitado ancião: "Nunca, nem de brincadeira, se escutou em causar transtorno ao velho mero do Tamanduá. Outro de quase igual tamanho vive debaixo da Pedra do Tolino, na praia da Raposa. Ninguém há de machucar eles. Quem fizer algum mal a eles, será castigado. A gente que mora ali por perto sempre lança por perto o que acreditam lhe servir de alimentação, lhe tem estima". 

     Peixes grandes e mansos eram considerados sagrados pelas gerações mais velhas de caiçaras.  Outro exemplo são os peixes-luas. "Feliz daquele que já enxergou um peixe-lua", dizia o saudoso Mestre Sabá. "Ele traz paz para o resto da vida".

     Quantos mistérios guarde esse mar? Um tempo desse, contemplando a Ilha do Tamanduá, pensei no mero respeitado pelos pescadores caiçaras. Confesso que nunca vi alguém pescar mero de tamanho algum. De vez em quando me pego imaginando a toca onde esses animais habitam. Com passar do tempo, anos e anos, acho que vão aumentando de tanto se lixarem, se coçarem nas rochas.   Será que é a mansidão deles que cativou, desde tempos antigos, os pescadores? 

    Aristeu, dedilhando o cavaquinho, declamava:

O  mero da Toca do Meio
De vez em quando suspira
E sai um cheiro de limo
Que tudo de cima aspira.

"É arroto do Vovô"
Todo mundo repetia
Se sentavam por ali
Em pedra ou toco que havia.

E quando passeia, então?
Marolas no mar rebrilham
As gaivotas grasnam alegres
Em seu rumo peixes miúdos trilham.

E vou fechando dizendo
Aquilo que toda gente sabia
Que é um peixe sagrado
Cantado até na Folia.  

Sagrado seja esse peixe
Sagrado seja este chão
Sagrada seja a viola
E os versos do Pedro Brandão.

domingo, 6 de junho de 2021

ANTIGOS SIGNIFICADOS

 

Linda  garça na água cheia de nuvens! (Arquivo JRS)


      Domingo... Dia de descanso... Mano Mingo... Saber caiçara em poema.

 

Os caiçaras mais velhos eram analfabetos,

mas antigamente a leitura era outra,

os signos eram outros.

Liam-se os sinais do tempo no comportamento do

mar,

na direção do vento, na cor do pôr-do-sol.

Liam-se as pessoas conforme o coração.

Sabia-se das plantas conforme suas serventias

e elas eram conhecidas pelos nomes

como se fossem velhas amigas.

Liam-se os animais pelos respectivos sinais,

já os pássaros eram conhecidos

principalmente pelos ouvidos.

Cada pássaro com seu canto,

cada vivente com seu encanto.



sábado, 5 de junho de 2021

QUE BOM SABER!

Nunca é tarde para estudar (Aluna no CEEJA - Arquivo JRS)
  
Dona Dalva (Arquivo Caiçaras)

        Certa vez, assistindo Central do Brasil, me emocionei demais pela história do filme. Tudo começa com a personagem principal, na estação de trem no Rio de Janeiro, escrevendo cartas, fazendo um benefício para pessoas analfabetas que queriam se comunicar com amigos e parentes distantes. Nessa ação heroica, gratuita,  surge a história do menino que precisava reencontrar a família, na região Nordeste, muito longe dali.  Infelizmente eu conheci gente assim, que não sabia escrever, resultando em perda de contatos com os seus, vivendo uma espécie de exílio por décadas. O baiano Bartolomeu foi um caso. Seo Zé, do Estado do Rio de Janeiro, foi outro. Acho que vale a pena resgatar suas histórias; já as publiquei. Felizmente também encontrei gente idosa, com netos e bisnetos, que retornou à escola. Que alegria poder acolher esse pessoal! Quem sabe quantas Coras Coralinas estão em formação?

      Toda vez que enxergo esse esforço, tenho vontade de dar um forte abraço. Quantas mensagens uma pessoa assim, vivendo isso, deixou de receber e enviar? Quantas crônicas já passou por aquela cabeça e se apagou? Quantos momentos ela deixou de registrar por não ser alfabetizada? Tem tudo a ver com o enredo do citado filme brasileiro! 
      A escrita e a leitura abrem janelas, clareiam paisagens, permitem ver horizontes e se inteirar com eles. Meu  pai e minha mãe, devido as condições econômicas e por morarem distante do centro da cidade, estudaram apenas dois ou três anos. Liam e escreviam, se viravam bem, escreviam cartas... Mas a geração anterior à deles nem viu escola. Não havia tal "privilégio" nas praias e sertões distantes. Às mulheres havia ainda aquele pensamento de que era bobagem ir à escola porque logo iriam se casar e cuidar dos filhos. Lendo um depoimento da caiçara Dalva Neves, no livro Os caiçaras contam, encontrei o seguinte:

   "Quando eu era jovem tinha muita criança fora da escola. Dizia-se muito: 'estudar para quê? Pra mandar bilhetinho pro namorado?'.  Era assim que a maioria pensava. O engraçado é que, durante muitos anos, recebi gente aqui na porta de casa que não sabia escrever e que vinha pedir para eu escrever as cartas que queriam mandar para os parentes. Escrevi muitas cartas para os moradores de Ubatuba". No ano 2000, a dona Dalva tinha 82 anos. O pesquisador grafou: "Dalva neves foi uma das primeiras professoras leigas de Ubatuba. Simpática, fala português correto, pausado e didático, como se estivesse permanentemente na presença de alunos desacostumados ao idioma oficial. Nasceu no Centro, em 1918".

     Não é espetacular reforçar que o filme estava imitando a vida e que aqui, bem perto de nós, tínhamos a dona Dalva prestando ajuda igual, se alegrando por ter aprendido a ler e escrever?

    

sexta-feira, 4 de junho de 2021

PLATEIA NA PANDEMIA

 

De longe, parece o Antônio no mato (Arquivo JRS)


             Cheguei no portão: "Cadê o Antônio?". Nair, toda radiante, diz que ele subiu no morro, foi olhar a roça e outras coisas. "Não temos saído quase de casa... só por precisão".  Ainda bem! Agora, em tempo de pandemia, todo cuidado é pouco. Mais tarde, voltando, o encontrei na subida da rodovia. "Passasse em casa?  A gente se cuida bem, sabeis?". Máscaras, me garantiu ele, além da que cobre o rosto, outras três seguiam no bolso. Uma garrafinha de álcool não saía da bisaca por recomendação da Nair. “Tá certa ela, mas acho que é até exagerada a minha mulher”. E quando volta então?! Coitado do Antônio! Tem de fechar o portão e já ir deixando as roupas e passar pelo chuveiro do lado de fora, perto da porta da cozinha, de água fria. “Isso é o de menos porque tenho o costume de me banhar só em água fria mesmo. Mas a mulher tá certa, né? Já teve uma porção de amigos que não aguentaram o baque, acabaram abotoados no paletó de madeira. A tal de covid-19 não é mole não!”.

        E assim, o casal, sem filho algum, segue a vidinha. Ela faz uns doces, vende na vizinhança; ele pesca, mas agora está tudo parado, sem turista para vender. O que melhora a situação são as coisas da roça (inhame, cará, mandioca, batata-doce, taioba, banana...).  “Lá no morro tenho um pouco de cada coisa. Até dá para repartir com quem mais precisa”.

        Mais gente, da vizinhança deles, também repara na rigidez da esposa do Antônio. E gostam! Mas gostam do quê? As mulheres das casas vizinhas, sabem do ritual dele por ordem dela. Por isso dão um jeito de se postarem em lugar apropriado, de onde se avista o portão e seu entorno. Vigiam e marcam horário. Grande satisfação é admirar aquele marmanjo pelado, indo para a chuveirada. E ele? Me confessou ter cismado faz tempo, que percebeu a movimentação diferente, mas não fez questão de comentar com a Nair. “Ela, brava igual siri na lata,  se souber é capaz de armar a maior confusão com as amigas. Não quero saber de ‘barraco’ perto de mim, muito menos na minha família!”.  Todo alegre, acrescentou: "Antes eram duas ou três, as de mais de perto; agora é um monte delas. Acho que uma comenta com a outra e assim por diante. Pelos vultos, tem umas delas que são do pé do morro, longe de casa”.                                  

       “Que plateia!”. Ele, sorrindo como de costume, está gostando. “Até vou sentir falta quando a vacinação chegar para todos e eu tiver de largar o costume de largar a roupa assim que entro pelo portão. Tá melhor que no Bloco da Cachorrada você não acha? Aquele mulherio olhando a gente!”.  Escutei a prosa dele com curiosidade, vendo aonde ia chegar. Nunca imaginei de ver gente se aproveitando da epidemia dessa forma. Esse caiçara, gente dos Barbosas, tem cada uma!