quarta-feira, 21 de outubro de 2020

RAÇA DE MANDIOCA

 

Vida de pescador (Arquivo JRS)


                Tempo de crise, dia nublado... Uma caminhada para ver gente e saciar a visão com as cores do meu lugar. Não demoro muito para reconhecer entre os pescadores o caçula do Maneco Jordão.

                 Maneco Jordão tinha casa depois da barra, no fim do caminho das Galhetas. Aquele morro todo era cheio de roças. De passagem por ali, nunca se podia rejeitar uma prosa e alguma coisa para comer. Era desfeita ao caiçara. O assunto naquele dia, quando eu era apenas um adolescente andejo, foi mandioca.

    "Este eito que vem desde as grimpas até o córrego é eito novo. Só plantei agora da raça dois irmãos. Está tudo em cepa brotando ainda. É raiz mansa, a vizinhança toda tem dela agora. Dizem que foi trazida de Iguape, longe daqui, mar de manjuba, lugar que eu não conheço ainda. Tem esse nome porque dá só duas pernas, como ova de tainha. Dois irmãos, né? Aquela dali, que estamos colhendo neste tempo, é catarinense. Repara na folha dela: não é bonita mesmo?"

    A tal mandioca catarinense eu já conhecia porque o vovô Estevan cultivava no Sapê, no areião da Queimada, defronte ao porto do Eixo. Era bem diferente no formato das folhas: miúda, cheia de recortes, delicada. Se dava muito bem naquele chão (quente e cheio de tocas de marimbondo caçador) que rodeava a casa. 

    Todas as variedades de mandioca serviam para fazer farinha, mas as bravas eram melhores, no dizer do meu povo. As conhecidas como mansas eram preferidas ao cultivo devido as criações (galinha, pato, porco...), mas sobretudo à nossa alimentação. Não havia perigo em alimentar os bichos com elas. Já as bravas viviam causando transtornos. O saudoso Maneco tinha delas também.

    "Na derradeira subida, no enforcamento do morro, virando para a posse do Henrique Mesquita, é só gongá. Raça de raiz mais brava do que aquela ainda não conheci, nem ouvi falar em lugar algum. Acho que não tem mesmo! Só que não tem melhor do que ela para fazer farinha! Desde do tempo do finado meu avô - que Deus o tenha! - nós preservamos dessa rama aqui. Ele contava que foi trazida do sertão do Ceará, do lugar chamado Poranga. 'Chegou junto com os escravos do Bernardino de Sá, numa carga dele', dizia de vez em quando. Creio que repetia sempre na intenção da gente não esquecer a história, de onde veio essa rama brava. Contava também um fato para nos manter atento ao perigo da gongá: 'A primeira vez que foi colhida aqui, sem ninguém conhecer direito, ao socarem no terreiro para a criação, sentiram o prejuízo. Os mais velhos contavam que morreu no mesmo dia toda a criação de porcos do fazendeiro, daqueles que viviam soltos, andando por aí tudo. Também se perdeu patos e galinhas. Dessa época em diante, a mandioca mais respeitada é a gongá. Farinha boa é farinha de gongá! Quando eu chego na cidade, com farinha para vender, logo tem alguém perguntando se é de mandioca gongá. É gente que prefere dela, né?".


Em tempo: confesso que eu não sabia da existência de tantas variedades de mandioca. Quem me explicou foi o estimado Marcílio, da Estação Experimental, do Horto Florestal, em Ubatuba. O ano era 1997, quando ainda havia pesquisadores ativos naquele local que foi um importante centro de pesquisas agronômicas do meu chão caiçara.  (Hoje, andando pelo Horto, dá vontade de chorar vendo o grande descaso dos governantes num tempo tão breve). Numa área, entre as palmeiras (pupunhas) e o bambuzal, cento e vinte cinco espécies de ramas de mandiocas estavam devidamente identificadas para estudos. Tinha gongá? Não sei. Até me esqueci de perguntar.

Nenhum comentário:

Postar um comentário