sexta-feira, 16 de outubro de 2020

MÁQUINA DO TEMPO

 

Flores da Dilma (Arquivo JRS)


                Hoje comecei o dia lendo Rubem Alves. Tem uma passagem que é muito interessante, sobretudo quando nos identificamos como bons escutadores de histórias que também gostam de contar causos. É assim: “Já houve um tempo em que fui criança [...] O tempo é isto: o poder que faz com que coisas que existem deixem de existir para que outras que não existam, venham a existir [...] Eu posso passear no seu mundo, que existe. Mas eu gostaria que vocês passeassem no mundo da minha meninice, que não existe mais. Acho que vocês gostariam, porque era um mundo tão diferente...”. E, seguindo a narrativa, ele diz que “é preciso embarcar numa Máquina do Tempo”, que ela “está dentro da nossa cabeça”. “Ela se chama imaginação”.  Lindo, né?


                Eu gosto de ouvir coisas atuais, mas adoro quando contam situações vivenciadas em outros espaços e em outros tempos. Ah! Quantos causos! E quando eles vinham sob luz bruxuleante, de lamparinas que pareciam estar nos últimos suspiros, nos convidando para dormir!? Coisa boa demais! E quando eram histórias de assombração, que nos arrepiavam por toda a narrativa!? Pior era depois ter de sair para o terreiro, pois na minha meninice não havia banheiro dentro de casa. A solução era o cisqueiro (“usar o mato”) ou o penico. Olhar aquela escuridão, os salpicados pontos luminosos dos vaga-lumes... escutar os sapos, a nimbuias e toda a passarinhada da noite era alimentar a nossa imaginação medrosa. Mas era preciso se superar diante da pergunta-ordem da mamãe: “Todo mundo já mijou antes de ir pra cama?”.


                Num desses dias, comentando uma situação de medo de escuro, afirmei que as assombrações do meu tempo de criança desapareceram depois que chegou a luz elétrica. A nossa imaginação perdeu força com essa tecnologia, essa “facilidade da vida”. Coitadas delas (das assombrações)! Ah! Mas também apareceu a televisão substituindo os contadores de causos, de histórias que embalavam nossas vivências! E hoje, aparelhos mais modernos enfeitiçam nossas vidas, transferem os prazeres para outras esferas, nos tornam mais egoístas, indiferentes para esse mundo tão próximo, de pessoas tão concretas. A função deles? Criar outras necessidades (comprar computadores e outros equipamentos de última geração,  games etc.), gerar outras dependências que garantam os lucros de uma mínima parcela da população, deixar a autonomia mais longe no horizonte da utopia!

                Ontem encontrei o pai da Tainá, uma ex-aluna que não vejo há mais de dez anos. “Ela se casou, vive na Islândia. Eu tenho uma linda netinha”. E já foi puxando, do celular, uma série de imagens de uma terra muito distante de Ubatuba, onde Tainá nasceu e se criou. E, empolgado, me mostrou desenhos de animais e plantas tropicais: “São trabalhos, aquarelas da Tainá. Ela agora está aqui. Na semana que vem certamente você a verá, pois ela vem nos fazer uma visita”. E a minha Máquina do Tempo é ativada pela menina tranquila, estudante, num tempo que a internet ainda era, para poucos,  a grande novidade.



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