sábado, 3 de outubro de 2020

O MENINO DA ENSEADA

 

Logo cedo, na praia (Arquivo JRS)

        Não faz tanto tempo assim que mais um dos antigos faleceu. Belinho nos deixou quase alcançando um século de vida caiçara. Lá se foi mais um menino da Enseada de outros tempos. O que eu posso fazer? Escrever partes das suas prosas!

    Belinho, da família Rocha era bom de prosa. Seus causos sempre me davam com muita satisfação. Por isso era comum, mesmo se estivesse com certa pressa, eu parar ao seu lado, sentar defronte a sua casa, na Rua Gastão Madeira, e ficar escutando suas narrativas.

    "Me chamam de Belinho desde menino, quando vivia na praia da Enseada. Bons tempos! Peixe era em fartura; cada puxada de rede na praia era uma montoeira de todo tipo de peixe, arraia, tartaruga... E no tempo de tainha então!?! O Macié, que negociava de tudo, pagava muitas pessoas para consertá peixe. Era na barra, perto da subida do morro dele, que alguns passavam o dia naquele trabalho. Era um trabalhão! Depois de alanhado e salgado, era tudo estendido no jirau para apanhar sol. Depois de seco, o barco que fazia viagem pra Santos comprava tudo para revender por aí afora, em outras cidades. A gente, criança ainda, vivia se tecendo, fazendo um trabalhinho aqui, outro ali. Sempre tinha alguém que pedia uma ajuda da gente. Em volta das casas, subindo morro acima, ficavam as roças. Mandioca e banana não podia deixar de ter. Cafeeiro era pouco, só para o gasto mesmo. Cana todo mundo usava para adoçar o café de cada dia porque açúcar era custoso. Depois viemos de mudança para a cidade. Logo fui contratado pela prefeitura, fazendo serviços por aí tudo. A cidade foi crescendo, ganhou campo de aviação; obras foram surgindo por todo quanto é canto. O comércio também cresceu porque a freguesia aumentou. Nem todos os comerciantes progrediram, mas a maioria se ajeitou de alguma maneira. E por falar nisso, agorinha mesmo passou um carro anunciando que é só até sábado uma tal de promoção naquela loja nova da Praça Nóbrega, onde antes tinha um chafariz bem grande, depois um relógio de Sol. Querem vender, né? Me faz lembrar de um reclame assim que vim para morar na cidade: 'Acudam ao armazém do Lindo Lipe porque chegou mercadoria nova!'. Eu, menino da Enseada, agora na cidade, também ficava curioso e passava por lá só para ver as novidades, as mercadorias novas. Ainda gosto das novidades! Por isso que eu gosto de me sentar neste lugar, ver o movimento de tanta gente passando, de carros...".

2 comentários:

  1. Conforme escreveu um filósofo africano, "cada vez que uma pessoa idosa nos deixa, é como uma biblioteca que se queima".

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