quinta-feira, 14 de maio de 2020

EU TAMBÉM SOU DE GENTE PRETA!


Mapa dos ingleses na metade do século XIX (Arquivo JRS)
Mastros na boca da barra - Pintura no museu (Arquivo JRS)
Somos brasileiros: a soma de gente que veio fazer a vida aqui, de gente que chegou traficada para a escravidão e dos nativos da terra (os indígenas). Com o passar dos séculos, na sopa cultural de etnias, viemos nós. Estúpido, perverso, imbecil, ruim etc. é quem se acha superior a qualquer desses grupos originais (nossas raízes). Cruel é um sistema que, movido pela ganância, cava as fórmulas para desprezar culturas e exterminar povos. Em tempo de fazer viva-memória da nossa herança negra, me recordei do saudoso Silvério Sabá, o Mestre Sabá. A propósito, dias atrás encontrei, na Pedra Branca, a sua filha Mariana e o seu neto, tranquilo como ele só.
              
    Foi o Sabá, caiçara negro da Enseada, quem me ensinou a história da “Igreja dos Pretos”, que ficava a menos de cinquenta metros da Praça da Matriz“Era ali, onde hoje é uma praça. Depois de tantos nomes, hoje dizem que é da Nossa Senhora. Era ali que ela ficava, perto do mastro onde se costumava prender escravos para corrigir no chicote. Foi construída porque os pretos, a minha gente, não podiam entrar na igreja dos brancos. Mas também não podiam ficar sem a religião dos brancos, né?”. Agora, lendo um relato do Seo Filhinho, achei uma contribuição a essa história. Se referindo à Igreja Matriz, está registrado:


               
     Até 1913 muita coisa havia por fazer: apenas a fachada era rebocada. Todo o restante, isto é, toda a nave e a Capela-Mor, sem revestimento exterior, ostentavam as cavidades que teriam servido de apoio aos andaimes da construção, e nesses buracos viviam e procriavam-se andorinhas que, na primavera, em revoadas enormes, ofereciam empolgante espetáculo. Se é verdade que a Matriz rebocada ficou mais bonita, também é verdade que as andorinhas se foram e não voltaram mais (...). Naquele ano o Padre Paschoal Reale defrontou-se com um seríssimo problema: estava em péssimas condições de conservação, prestes a ruir, a Igreja de Nossa Senhora do Rosário [da Irmandade dos Homens Pretos] – a que tinha sido dos escravos, no tempo da escravidão –e se erguia na pracinha em frente à praia, onde hoje está a imagem de Nossa Senhora da Paz de Iperoig, praça que teve sucessivas denominações, como a do Rosário, Marechal Deodoro, da Bandeira e hoje é de Nossa Senhora da Paz. Faltando recursos para enfrentar o montante das obras necessárias, resolveu demolir aquela igreja e, com o material recolhido, aproveitando parte e vendendo o resto, foi possível efetuar obras na Matriz, concluindo a Capela-Mor, isto é, rebocando-a, forrando-a, cimentando o piso e para lá levando o altar-mor, desocupando a nave que até então era assoalho e  procedeu a outras pequenas restaurações de que o templo necessitava.

                Em 1915 ainda o Padre Reale concluindo obras que elevou a efeito na Matriz de Ilhabela paróquia que acumulava com Ubatuba, trouxe para cá o italiano Antônio Pitigliani, hábil carpinteiro que, aproveitando peças dos antigos altares da demolida Igreja do Rosário, construiu o atual, altar-mor, onde a par de peças novas, lá se podem ver em contraste, as colunas e molduras antigas, em estilo bem diferente.


                É assim! Em relação à nossa raiz africana, podemos afirmar que o resultado de seus esforços e de seus sofrimentos estão presentes onde menos poderíamos esperar. Sabá me explicou, ao seu modo: “A igreja matriz , aquela que tá lá hoje, veio depois da igreja da minha gente. No altar da Igreja da cidade, ali na praça, o que tem serventia de sustentação e mais aparece na igreja dos brancos é parte do altar dos pretos, foi levado da nossa igreja. Ela se acabou. E mais coisa tem lá!”.


                            Lembro-me bem do olhar terno do saudoso Mestre Sabá ao me escutar: "Eu também sou de gente preta, Sabá! Você sabia?".


2 comentários:

  1. realmente o Sabá era uma figura, sempre alegre, infernizava a minha mãe , Maria da Dores a benzedeira com brincadeiras que ela fica tiririca, pesquei muito com ele

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  2. Que bom que tenho testemunhas das minhas crônicas! Escreve, João!

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