Depois da maré cheia, elas... (Arquivo JRS) |
O primo Durvalino era simples
demais. Ele também tinha um atraso mental, mas em outros tempos, na vida de uma
comunidade de roceiros-pescadores, gente assim vivia integrada como todo mundo.
“Era um dos nossos”. Nunca percebi qualquer desmerecimento ao Durvalino.
Nas rodas de conversas ele, com suas tiradas desfocadas, sempre causava risos.
Não havia uma puxada de rede na praia que não estivesse lá esse primo, filho do
tio Maneco Mesquita e da tia Bertolina. Era forte o danado! Dava conta sozinho
de balaios de mandioca para sevar. A titia era a sevadeira (quem coloca as
raízes na chapa para serem raladas). Só nunca vi ele numa canoa para pescar no
largo. Dizia que sentia muita tontura se embarcasse. Numa certa tarde, eu escutava
o tio Dário no “Banco do Zequita”, no terreiro deste. Ao nos avistar ali, o
Durvalino também se achegou. “Boa tarde, Zezinho.
A benção, tio Dário”. Não demorou nada para dizer: “Eu amanheci feliz, mas a maré tá cheia”. Ele ficou pouco por ali, escutando a prosa; saiu de repente: “Vou jogar de novo na água as estrelas que o
mar lambeu do céu”. Foi mais um serão nosso que deixou a sua marca.
Hoje, escutando as notícias
sombrias a respeito da Pátria, me recordei daquele serão distante. “Eu amanheci feliz, mas a maré tá cheia”.
Comportamentos identificados com a violência em seus muitos aspectos parecem
ter o apoio daqueles que recebem seus salários de nossas contribuições para
garantir a ordem institucional. Condutas similares aos meliantes, mas muito melhor
organizadas, substituem os transgressores nas comunidades. Notícias falsas
sustentam aqueles que deixam de cumprir as leis do Estado de Direito. Diz o ditado que a mentira muitas vezes repetida torna-se verdade. Forças
Armadas e corporações policiais estão mostrando o quanto têm de gente que está
do lado oposto daqueles que as sustentam. “Um
pequeno grupo, como sempre, vai sair fortalecido contra a maioria. Quem paga
tudo é o trabalhador”. Durvalino: poeta e profeta! “Um monte de gente, criança de ontem, agora armada e fardada, já não é
mais gente. Morre gente grande e morrem crianças aos montes. Urubus rodeiam lá em cima”. Ele se referia
aos noticiários radiofônicos. A palavra guerra deixava o Durvalino desesperado.
E assim continuam as notícias hoje: a vida
pouco importa, mas a economia merece destaque. Há leitos sobrando nos hospitais particulares, que também recebem dinheiro do Estado, mas faltam vagas na rede pública de saúde. Naquele dia distante da Pátria,
depois de escutar a frase dele (“Eu
amanheci feliz, mas a maré tá cheia”), nem eu e nem o tio Dário discordamos: “De fato, Durvalino, a
maré tá cheia”.