sábado, 30 de maio de 2020

ESTRELAS QUE O MAR LAMBEU DO CÉU

Depois da maré cheia, elas... (Arquivo JRS)


                O primo Durvalino era simples demais. Ele também tinha um atraso mental, mas em outros tempos, na vida de uma comunidade de roceiros-pescadores, gente assim vivia integrada como todo mundo. “Era um dos nossos”.  Nunca percebi qualquer desmerecimento ao Durvalino. Nas rodas de conversas ele, com suas tiradas desfocadas, sempre causava risos. Não havia uma puxada de rede na praia que não estivesse lá esse primo, filho do tio Maneco Mesquita e da tia Bertolina. Era forte o danado! Dava conta sozinho de balaios de mandioca para sevar. A titia era a sevadeira (quem coloca as raízes na chapa para serem raladas). Só nunca vi ele numa canoa para pescar no largo. Dizia que sentia muita tontura se embarcasse. Numa certa tarde, eu escutava o tio Dário no “Banco do Zequita”, no terreiro deste. Ao nos avistar ali, o Durvalino também se achegou. “Boa tarde, Zezinho. A benção, tio Dário”. Não demorou nada para dizer: “Eu amanheci feliz, mas a maré tá cheia”.  Ele ficou pouco por ali, escutando a prosa; saiu de repente: “Vou jogar de novo na água as estrelas que o mar lambeu do céu”. Foi mais um serão nosso que deixou a sua marca.

                Hoje, escutando as notícias sombrias a respeito da Pátria, me recordei daquele serão distante. “Eu amanheci feliz, mas a maré tá cheia”. Comportamentos identificados com a violência em seus muitos aspectos parecem ter o apoio daqueles que recebem seus salários de nossas contribuições para garantir a ordem institucional. Condutas similares aos meliantes, mas muito melhor organizadas, substituem os transgressores nas comunidades. Notícias falsas sustentam aqueles que deixam de cumprir as leis do Estado de Direito. Diz o ditado que a mentira muitas vezes repetida torna-se verdade. Forças Armadas e corporações policiais estão mostrando o quanto têm de gente que está do lado oposto daqueles que as sustentam. “Um pequeno grupo, como sempre, vai sair fortalecido contra a maioria. Quem paga tudo é o trabalhador”. Durvalino: poeta e profeta! “Um monte de gente, criança de ontem, agora armada e fardada, já não é mais gente. Morre gente grande e morrem crianças aos montes. Urubus rodeiam lá em cima”. Ele se referia aos noticiários radiofônicos. A palavra guerra deixava o Durvalino desesperado. E assim continuam as notícias hoje: a vida pouco importa, mas a economia merece destaque. Há leitos sobrando nos hospitais particulares, que também recebem dinheiro do Estado, mas faltam vagas na rede pública de saúde. Naquele dia distante da Pátria, depois de escutar a frase dele (“Eu amanheci feliz, mas a maré tá cheia”), nem eu e nem o tio Dário discordamos: “De fato, Durvalino, a maré tá cheia”. 

sexta-feira, 29 de maio de 2020

ERA UM FIIIIIUUUUUU CORTANTE

Mãe-da-lua (Arquivo Mary)
Nenê Chiéus (Arquivo JRS)


                Quem passa às margens da BR 101 (Rodovia Rio- Santos), nas cercanias da ponte sobre o rio Tavares, avista casas e pontos comerciais que ladeiam a estrada. Só isso! Não consegue imaginar que, até a década de 1970, era um imenso canavial que ocupava aquela área. Tudo aquilo, que hoje é Jardim Carolina e região, era a Fazenda Velha, dos irmãos Chiéus. Em 2013, tive a oportunidade de conversar com o saudoso Nenê, o último deles, cujo ritual era se deslocar todos os dias do coração da cidade para passar horas no local da antiga sede da cachaça Ubatubana, na estrada para o Monte Valério. Já escrevi a esse respeito, mas sempre escapa algum detalhe da prosa que depois aparece. Naquele agradável dia, após saborear um vinho na pequena casa mantida para esse ritual diário, o Nenê falou muitas coisas, contou muitas histórias. Afinal, desde a década de 1940 eles produziram a famosa pinga. Por ter feito muitas caçadas, imaginei que ele teria alguma história de assombração. Então, cutuquei o homem.

                “Eu vou contar a verdade: não acredito em assombração. Acho que tudo é coisa das cabeças das pessoas. Ali em frente, no Morro da Berta, o pessoal costumava dizer que sempre via e sentia coisas estranhas. De tanto escutar essas coisas, a gente parece até ficar impressionado, querendo evitar passar por esses lugares que têm tantas histórias. Mas comigo aconteceu também. Foi assim: num mês de agosto ou setembro, subi no serão com o Alcides Nunes para caçar;a gente tinha uma seva boa, que não era tão longe. O plano era estar de volta antes do amanhecer. No dia seguinte seria domingo e teria uma festa na cidade porque um deputado estaria visitando seus puxa-sacos. Nem eu e nem o Alcides se importava com isso. Ficamos na espera, no juréu, até depois da meia-noite sem dar um tiro. De repente vem a bulha, parecia um vento quebrando árvores. Mas não era porque nada se balançava por ali. Junto vinha um ronco forte que a gente nunca tinha ouvido igual. De vez em quando assobiava um fiiiiiuuuuuuu cortante e prolongado, mais apavorante que piado de mãe-da-lua. Não chegava embaixo de nós, parecia circular o lugar onde estávamos, num grande jacatirão. Ficamos parados, sem atirar em nada porque nada se via. Ficou quase vinte minutos nisso, rodeando só num sentido. Era barulhento aquilo; não se afastou. Apenas parou de repente, voltando tudo ao normal na mata escura. Tudo era paz. Esperamos, esperamos... Nada de aparecer mais nada. Quase uma hora depois, avistando as Três Marias bem em cima de nós, resolvemos descer. Fomos devagar imaginando que o bicho estivesse por ali. Nada! Mas uma coisa pudemos confirmar: era coisa grande e forte. Um círculo perfeito estava feito em torno da árvore onde estávamos. Era como um carreiro largo, quase uma trilha bem usada. Não conversamos nada até chegar no Morro da Berta. Os dois estavam nervosos porque, certamente, era coisa medonha. Perto da Bica da Onça, novamente o mesmo barulho aparece. Aí eu me arrepiei todo. Aquilo parecia correr rente da estrada, nos acompanhava. Veio vindo assim até a Lagoa dos Patos, onde morava o Zabeu. Eu até falei em parar ali para esperar o dia amanhecer, mas o Alcides tinha outra opinião. Continuamos andando em silêncio. Só no meio do canavial nosso é que voltamos a conversar normalmente. Foi a única vez que vi coisa estranha no mato. Depois dessa, só voltei a caçar mais uma vez, mas não naquele lugar. Então, ali, depois do Vicentão, já chegando no Sertão das Cotias, passou a ser o Rodeado. Quem duvidava da nossa história ia até lá pra ver”.

quinta-feira, 28 de maio de 2020

TEM OUTRO RUMO?

E disso saiu um inseto lindo! (Arquivo JRS)

Olha a flor, logo ali! (Arquivo JRS)


                Eu escrevo as coisas de caiçara porque tudo isso faz parte da minha história. Gal, a minha esposa, também me incentiva muito! Certamente que deixei ao largo muitas pérolas valiosas do meu povo porque não registrei, deixei de escutar mais,  de estudar melhor, tive preguiça etc. Tenho convicção da referência delas: a vida simples, de pobres que dependiam da vivência coletiva, da comunidade. Com o passar do tempo, uma outra onda chegou invadindo os jundus: a especulação imobiliária devido ao turismo. Aqueles sinais de pobres roceiros-pescadores deveriam desaparecer: sumiram os ranchos de canoas e todos os apetrechos de pesca... Sumiram os mangues... Sumiram os portos onde se encontravam a minha gente para os causos nos serões... Sumiram as puxadas de redes... E foram surgindo os casarões... E foram abrindo estradas... E foram facilitando a ida de esgoto para o mar... Fomos vendo as degradações, mas os “olhos cresceram sobre o dinheiro”. E assim... logo tinha estrada morro acima para que mais casarões fossem construídos onde antes havia roçados. Hoje, pode ter certeza, a sujeira (esgoto doméstico, óleo de barcos etc.)  tomou conta de nossas águas. Rios e praias estão em situação crítica. “Aqueles peixinhos que se criavam por ali, na boca da barra, no lagamar, no rio acima...agora tá difícil, meu filho”. Diante disso, desse quadro feio, tem outro rumo? Não, não tem! Seria necessário outras reflexões e outras tomadas de posição diante do mundo que estimula o lucro acima de tudo. Seria preciso entender que o dinheiro não enche a barriga, nem traz uma felicidade autêntica. Por isso que, podendo, saio para o mato ao encontro do pessoal que continua na roça, cultivando mandioca, banana, cará... Por isso que visito comunidades que se agarram ao seu pedaço no jundu, na restinga. Me sinto em casa com esse meu povo ao qual posso tomar café com peixe e farinha.  Com eles converso muito, escuto as novidades. “Até as coisas velhas se tornam novas”.

                Muita gente boa chegou com uma carga maior, de ruindades. Agora, parece inevitável tantos absurdos. “O rio próximo da minha casa é cheio de canos de esgotos. Tudo sai por ali e vai parar no mar”. Quem deveria cuidar disso? O município, o Estado, o governo do Brasil têm esse dever. Eles, por intermédio de suas leis, vão dando os contornos dos direitos e deveres. Arrecadam para isso. Agora, se você é favorável ao livre mercado e ao fim do Estado, você deve achar natural esse caos, do “homem lobo do homem”. Se você grita para privatizar mais e mais, não deve se espantar com a poluição devastadora do nosso meio. Se você não respeita as minorias, então é natural até mesmo uma guerra civil. “Destruir a Amazônia? Tudo bem!”. “Tirar os direitos dos trabalhadores? Tudo bem!”. “Socorrer apenas os grandes empresários? Tudo bem!”. Etc... Diante dos rumos ditados pelo lucro a qualquer custo, precisamos refletir e agir.

                Você pode escrever bonito, se inspirando em vivências que enche de saudades, mas se conformando que a vida é assim mesmo. Mas você pode, a partir de suas lembranças e das energias de boas vivências, restaurar sonhos e viver feliz cada dia que ainda tem pela frente. É isto: a história é feita por nós! Por isso estão de parabéns: os remadores que se associaram, os roceiros que vendem, trocam informações e vendem juntos os seus produtos cultivados de forma mais saudável. Estão de parabéns as comunidades que estão atentas aos apelos de quem mais precisa agora e sempre, os pescadores que se reúnem na colônia deles ou que vendem seus pescados no rancho que bravamente sustentam na beira da praia. Tudo isto e muito mais só é possível porque cultiva-se na memória coisas que são essenciais, capazes de combater as propagandeadas aparências.

Coisas de caiçara, coisas que me tocam, estão na minha essência! Por isso cultivo o meu quintal, visito quem não foi engolido pela onda fascista, aprecio a natureza onde ela é mais bonita. Pensando nas pessoas em dias ensolarados, plantei árvores na calçada. Pensando na beleza e nos seres menores, plantei flores. Olho a cada dia as minhas plantinhas escondidas. Admiro as altas árvores que uns dias atrás eram sementes em minhas mãos. E o melhor de tudo: assim crescem Maria Eugênia e Estevan, as nossas “crianças”, né Gal?
               

segunda-feira, 25 de maio de 2020

ESPANTALHO EM VERDE E AMARELO

Privilégio de escutar umas modas  (Arquivo JRS)


Dito.Mocinha e eu (Foto: Paulo Zumbi)


                Era o começo da década de 1990 quando fui fazer uma trilha com o saudoso Dito Fernandes, no sertão do Puruba. Dia bonito de quase inverno, época dessas. Cheguei preparado, tomei um café com ele e Mocinha, sua esposa. Tinha biju fresquinho, estalando. Não demorou nada para sairmos pelo caminho da roça. O Dito, atravessando uma espingarda às costas, chamou do terreiro dois cachorros: “Quércia, Maluf”. Nem precisa dizer que eles já correram na nossa frente porque eram acostumados com o ritual. Achei engraçado, ri bastante. “Quem pôs esses nomes nos coitados?”  (Para quem é mais novo, esclareço: trata-se de políticos de São Paulo, poderosos naquele tempo). “Eu mesmo! É isso que essa gente merece: servir para nomear cachorro. Não é só cachorrada que eles fazem?”. Não tinha como discordar de tanta precisão na explicação do dono deles. Nunca imaginaria os dois políticos importantes nomeando cachorros no sertão do Puruba!

                Seguindo o caminho, passando por um roçado aqui e ali, avistei um espantalho bem caprichado, em verde e amarelo, segurando um caco grande de prato em uma das mãos; na outra tinha um galho ainda com folhas grudadas, como se vivesse enxotando os passarinhos. Ao perceber a minha parada querendo ver melhor, o Dito falou: “Aquele é o Seo Brasil. Não está muito bonito, mas continua se defendendo porque ainda tem muitas riquezas, pode alimentar o mundo de tudo quanto é coisa. Ficou bom, né? É arte da mulher com as crianças; elas fizeram e eu dei o nome”. Achei o máximo: “Bárbaro, Dito! Outro dia eu volto para fotografar o Seo Brasil! Melhor: irei convidar Miguel, o uruguaio, para essa tarefa. Ele vai gostar também!”. E assim se foi uma manhã caminhando serra acima, coletando coco pati, iscando cachorro atrás de caça. (Só uma cotia eles farejaram, mas ela foi mais esperta e atravessou o rio logo. Felizmente). Uma manhã de muito aprendizado com o Dito!

                Conforme o combinado, uma semana depois eu levei o Miguel Angel, um fotógrafo dos nossos. Ele adorou tudo aquilo, a começar pela recepção que teve. Registrou o Seo Brasil e tantas outras coisas dignas de seu olhar apurado. O tempo passou. Por volta de 2002, quando acontecia uns saraus aos domingos no Bambu de vez, do Bado Todão, a nossa tarde se passava ali, em família, no Pirão Geral. Onde era isso? Ali, atrás da Cadeia Velha! Almoçávamos um pirão caprichado pela mãe do Bado, tomávamos um café de cana... E aproveitávamos as apresentações dos artistas da terra. Numa dessas tardes, o Miguel, na praça Nóbrega, quase ali mesmo, fez uma grande exposição dos seus trabalhos, sobretudo com as imagens do Fórum Social, ocorrido em Porto Alegre (RS). Foi quando me deparei com o Seo Brasil. Que lindo! “Grande, Miguel! Dez anos depois, né? Quanta honra em ver seus trabalhos hoje! Que bom que você topou ir até o sertão comigo naquela vez! Com certeza hoje não tem nem sombra do Seo Brasil, mas a sua foto tá aí. Até a lembrança dela vai me fazer contar a história dela, vivida um dia no sertão do Puruba, com o Dito Fernandes. Valeu, Miguel!”.

Esta foi mais uma oportunidade de contar daquele lugar, daquelas pessoas, do Seo Brasil. Tendo agora de escutar o presidente dizendo que armas é a solução para o Brasil ser democrático, grifo: o Seo Brasil tinha um caco de prato como escudo e um galho de árvore como arma. Nem dei dizer se algum dos filhos do saudoso Dito Fernandes herdou a sua noção de política. Quem sabe?!

domingo, 24 de maio de 2020

POEMA DOS TEMPOS DIFÍCEIS



Frutos do quintal (Arquivo JRS)

Olha a borboleta! (Arquivo JRS)
Em tempos difíceis, o mano Mingo manda...


Poema dos tempos difíceis


Que as borboletas alegrem

as entrelinhas de toda as palavras,


que brotem também margaridas


no meio de todas as lavras.


Da mesma maneira


que um produto não vale pela embalagem,


não importa a prosa das pessoas,


o que vale são as poesias.


E um tapinha nas costas


nada vale sem uma ação amiga:não esqueçam do pão que


sustenta

a cigarra que canta para a formiga.

sexta-feira, 22 de maio de 2020

CAMINHO DE VAGA-LUMES

Caçuroba na barra (Arquivo JRS)



                Eu costumo dizer sempre que os mais novos têm o dever de serem melhores do que eu. Faz parte da evolução a geração seguinte avançar mais do que a geração anterior. Nesta lógica surgiram técnicas, remédios, posturas etc. “Não tem sentido eu pegar a bola e chutar para trás, querendo fazer gol no goleiro do meu time”, escutei numa tarde do Seo Carlos, ao substituir o Nelson Graça numa partida contra os adversários do Saco da Ribeira, o time do Recurso Futebol Clube que estava na disputa com o Esporte Clube Anchieta, do Perequê-mirim. Há muito tempo estes dois times desapareceram. Poderiam ter evoluído? Poderiam! O que aconteceu? Caíram num buraco evolutivo!

                Cair num buraco evolutivo é regredir, deixar de chutar a bola para frente. No caso do Brasil, nos últimos anos, desde 2013 aproximadamente, a pauta evolutiva está travada por uma elite que, ameaçada em seus privilégios (pela implantação de modestas medidas na busca de melhor distribuição de renda e de avanços sociais aos trabalhadores), se abraçou aos aliados externos (que sempre sugaram as riquezas do país) e deu um golpe político. Agora, os absurdos passam por normalidades, a Constituição é desrespeitada e as injustiças se tornam legais. Quem mais sofre? O povo pobre é a principal vítima porque está perdendo direitos que mal tinham sido implantados.

                Perde a agricultura familiar,  os pequenos produtores, porque os latifundiários e grileiros se acomodam em suas posições expropriatórias. Perde grupos indígenas para que grandes empresas, muitas delas estrangeiras, explorem seus territórios e destruam a natureza preservada pelos milênios por esses grupos. Perde outras tantas minorias porque a legislação sofre retrocesso e as forças policiais são defensoras do poder econômico, reforçando ideais fascistas. Perde a juventude porque seus sonhos não vislumbram caminhos iluminados. Isto é o pior! Certa vez me explicou um professor de Antropologia: “Várias  etnias indígenas deixaram de procriar porque só enxergam coisas ruins para o futuro e não desejam sofrimento aos possíveis descendentes. Se negam a deixarem um mundo assim, de perspectivas tão sombrias, aos filhos. E assim vão desaparecendo, tal como uma vela que se apaga”. Grande Porphírio Figueira!

                Eu cresci num buraco evolutivo, quando militares, a pedido dos Estados Unidos, aplicaram o famoso Golpe Militar. Na época, uma importante aliada da classe golpista foi uma parte da religião católica. Muitos, por não terem autonomia de pensamento, caíram feitos patinhos. Eu vivi o retrocesso na educação pública, entre outros. Hoje, novamente, aí estão os milicos associados a um ser no  (des) governo que foi banido de suas alas por desvio moral, por desequilíbrio psicológico. Agora em pijamas, protagonistas da segunda divisão anterior, novamente assumindo o chute para trás. Mas devem estar cientes que continuam na segunda divisão! Na primeira mesmo, somente os grandes capitalistas! E agora, além das linhas conservadoras do catolicismo, ainda tem os neo pentecostais, do grupo dos chamados de evangélicos, fazendo a cabeça do rebanho. “É Deus quem ilumina nosso presidente. Por isso damos todo o nosso apoio a ele!”, se justificou o Pastor João, tal como Totonho do Rio Abaixo e tantos outros que vivem da boa fé do povão.

               Ainda não vemos o fundo deste buraco evolutivo. Mas... dá um tempo aí! Algumas resistências aparecem como vaga-lumes! Dias  desses escutei o economista Eduardo Moreira falando de uma iniciativa para apoiar financeiramente as instituições populares em seus empreendimentos sem passar pelos bancos exploradores que aí estão. “Você sabe o que os bancos fazem com o seu dinheiro depositado? Podem estar até mesmo financiando fake news contra a sua classe, desmatamentos etc. Podem estar ajudando na compra de armas para dizimar minorias, reforçando as milícias etc”. Vale a pena escutar esse homem valoroso! Me aparece como um degrau para superar o buraco evolutivo que nos engole. Outros estão por aí. A nossa cultura caiçara também tem focos de luz para contribuir para importantes  passos evolutivos! Faz lembrar uma travessia da Caçandoca para o Saco das Bananas, numa noite inesquecível: “Só atravessei a mata virgem, depois do Caetano, na Ponta Lisa, porque se enxergava o caminho de tanto vaga-lume que havia!”. A nossa cultura é um desses pontos de luz.

quarta-feira, 20 de maio de 2020

O LOBO COME TUDO

Ponte no Massaguaçu (Arquivo JRS)


              O Brazil não conhece o Brasil/ O Brasil nunca foi ao          Brazil...
                Entre   uô, uô, uô.... Jobim açu, alaúde... ataúde....
                O Brazil não merece o Brasil/ O Brazil tá matando o Brasil...
                Entre    saci, Guimarães, sarará...
                Do Brasil, SOS ao Brasil/ Do Brasil, SOS ao Brasil/ Do Brasil, SOS ao Brasil/.
                Entre    tinhorão, Ipanema, olará....
                Do Brasil, SOS ao Brasil/ Do Brasil, SOS ao Brasil
                Uô, uô, uô

            Dias atrás morreu mais um fabuloso compositor brasileiro: Aldir Blanc. Dias atrás também foi morto pela polícia, sob estranhas condições, um menino no Rio de Janeiro. Mais um!!! Pensa que vai parar logo isso?!? Quem dera!!! E o que tem isso comigo, com a nossa cultura? Tudo! Talento brasileiro, instituição brasileira, gente brasileira! Sim, um menino negro! Herdeiro de um passado a chicotadas, filho de um presente que persegue os mais pobres, as minorias... Qual futuro queremos?

                Na última eleição geral, o resultado final mostrou a cara do grande contingente de brasileiros que idolatram o fascismo, o ódio. Pior: quase todos pobres, contra eles mesmos! Quantos fatores estão envolvidos nos resultados do ódio que venceu o amor? Muitos! Religião elitista, alienada, educação precária, crença em falsos líderes, propaganda massiva contra os valores comunitários, incentivo ao consumismo, o lucro acima de tudo etc. Na praia do Perequê-mirim, numa distância pequena de nós, ficava a casa do “Doutor John e da Dona Tatinha”. Mais tarde soube que eram professores da USP. O carioca Celino era o caseiro deles.

                Celino, como já falei em outras ocasiões, era subversivo. “Qualquer dia ele vai se dar mal”, dizia o meu pai. Eu, sempre tentado a escutar os assuntos dos mais velhos, numa oportunidade parei perto dos dois (Celino e Dr. John) que conversavam. Fingindo estar pegando flores vermelhas da cerca para chupar o docinho delas (aprendi com os beija-flores, ué!), fui prestando atenção. A prosa, notei facilmente, era sobre a política. O doutor podia saber muito, mas o Celino era mais vivido: “Doutor, é lobo comendo a vovó! Depois, logo em seguida, ele engole também a menina! Os interesses dos militares que agora mandam é entregar nossas riquezas para os Estados Unidos. O senhor escutou a música, agora, do  Aldir e Tapajós? Ele diz que o Brazil (com Z) não conhece o Brasil, que não merece o Brasil, que tá matando o Brasil. E denuncia, com o seu uô, uô, uô, a ação das Forças Armadas e da polícia que se presta a esse papel de perseguir todos aqueles que não concordam em entregar o nosso país para os Estados Unidos”. E por aí foi a prosa. Com o balançar de cabeça de quem o escutava com cuidado, o doutor acrescentava mais coisas que eu não escutava direito, nem entendia ainda.  De repente, aquele estalo, coisa de gente nova: “Ah! Tá bom! Agora vou mergulhar!”.

                Hoje, ao iniciar com uns recortes da música Querelas do Brasil, dou os fundamentos de alguém que se foi faz tempo (Celino) admirando quem acabou de ir (Aldir Blanc). Tal como o menino assassinado dias atrás, Celino era carioca e negro, que sempre dizia: “Eu cresci com caixa de engraxate na esquina das ruas Abolição e Princesa Isabel, na placa que indicava a Praça da Liberdade, mas meus avós vieram escravizados da África! E  eu?”. E hoje...

                E hoje?!? O jumento envelheceu, mas as rodas remendadas da carroça ainda conseguem ir do Brasil ao Brazil, entregar outras porções de riquezas em detrimento da maioria pobre da população brasileira. Será que chegará? Pode ser. Afinal, tem  os burros! Tem gado para juntar em parelhas! Tem  cloroquina e fartura de capim!     “Deus acima de todos!”. Ai, ai, ai...

               Vamos estudar, minha gente! Vamos refletir! E pode tomar tubaína!

terça-feira, 19 de maio de 2020

PROSA NO LAGAMAR

Porto do Paru (Arquivo JRS)



          O sol já tinha iluminado tudo, menos o lado do morro onde fica o território do “pessoal do Paru”. Eu, indo para a prainha da Xandra mariscar (porque era maré de Lua era cheia ) , encontrei o Argemiro com uma fieira de peixe. “Madrugou, homem?!?”. Essas pessoas mais antigas acordam antes do galo cantar e dão uma andada para olhar o mar. “Fui na costeira ver como as coisas andam. Aproveitei para ajudar o menino do Paru a puxar a canoa. Bateu um cardume de embetara no tresmalho, todas deste tamanho!”. E eram bonitas mesmo! Eu, que conhecia bem o Argemiro, sabia que ainda vinha história. Ele, tal como o Zezinho Rosendo, mesmo com pressa ainda ficava ao menos uma hora a mais. E ele veio com tudo! “Já que temos pressa, vamos sentar ali, naquela pedra lisa”.

                “No meu tempo de gente nova, como o essa criançada que anda por aí,  a nossa casa era na ponta do Tapiá, onde tinha uma água pequena, mas dava conta da nossa precisão. Era papai, mamãe, minha irmã, meu irmão e eu. Na Pixirica também tinha a família do Velho Bito João. Depois nós saímos dali, fomos de mudança para a Santa Rita porque a nossa roça maior era lá. E tinha a capela frequentada por tanta gente! A mamãe era muito devota da santa! Não demorou muito tempo, o padre resolveu trazer para a Enseada a capela e a santa. Dizem ainda hoje que teve um dedo do Macié e do Bráulio Santos nessa decisão porque eles queriam vender as posses daquela praia. Acredito que era verdade tudo aquilo que se escutava dessa história. Assim que nós saímos, também se mudou a família do Gusto, a família do Bastião Coimbra e a do Targino. Aquela terra toda foi comprada por um tal de Pirani, de São Paulo. O Nirso do Valentim, gente que morava no canto de lá [direito, da Enseada], foi contratado como empregado do ricaço. Agora já faz tempo que eu não ando por lá, mas dizem que tudo aquilo se encheu de casa, uma mais bonita que a outra. E nem quero ver mesmo! Acho que deve ter mudado tanto que eu posso até morrer se ver o lugar!”

                Me despedi confirmando um café para mais tarde, quando estivesse de volta da costeira. Agora o Argemiro já é falecido. Certamente que ele ficaria assustado se visse as transformações na sua Santa Rita, sobretudo em saber que todo aquele mar está poluído por esgoto e óleo dos barcos. Era bem capaz de morrer mesmo!

segunda-feira, 18 de maio de 2020

O VOAR DO BEIJA-FLOR

    
Capela do Itaguá (Arquivo JRS)


Cantoria da cidade (Arquivo JRS)

Pé na jaca (Arquivo JRS)

Promirim (Arquivo JRS)

O primo Ostinho, agora mais do que nunca, continua produzindo seus fandangos. Logo logo essas letras estarão dançando, varando madrugadas com os dançadores e sua damas. Deixa só este tempo ruim passar! Amaaaaanheeeeece, meu povo!

O voar do beija-flor
Autor: Ostinho


Onde o meu amor nasceu
Eu plantei um pé de amora
É lá que eu faço versos
Ponteados na viola

Minha vida é um jardim
Cheio de flor amarela
Ela quem gosta de mim
E sou eu que gosto dela

Eu plantei no meu jardim
Um punhado de flor
Só pra ver a belezura
Do voar do beija-flor

Eu deixei a minha canoa
No clarão da lua cheia
Na areia da prainha
Onde canta uma sereia

Escrevi um verso novo
Pra cantar na lua nova
Pra filha de um violeiro
Eu dei um botão de rosa

Eu plantei...

Quando a lua foi embora
Ficou uma estrela no céu
Pra moça que mais dançou
Eu tiro o meu chapéu

Tá na hora de ir embora
Vou deixar minha lembrança
No ponteio da viola
Fica o canto e a dança.


domingo, 17 de maio de 2020

UM DIA NO SACO


 
Indo mar afora com Rubens, Dito e o menino Danilo (Arquivo JRS)

 
Piragica             (pescariasamilton.blogspot.com)



                Seria interessante ir novamente nesse lugar (Saco das Bananas, em Ubatuba) e fazer novo registro fotográfico. Vinte e cinco anos se passaram. O mais novo desses personagens da fotografia já é falecido. Ao fundo está a praia. Aquela casa, cujo proprietário era chamado de “Seo Bassin”, era a única. Na verdade, em meados da década de 1980, quando o professor Pedro Paulo estava como prefeito, aconteceu uma negociação: o Gregório Crispim vendeu a sua posse para esse “Seo Bassin” e foi morar em Caraguatatuba, junto ao rio Juqueriquerê. Logo em seguida ele, o ricaço, procurou a prefeitura para construir uma escola mais acima, perto do caminho, e, no lugar da antiga escola, ele fez nova casa, a sua, de veraneio. Linda mesmo! Não me pergunte se alguém levou uma recompensa por fora nessa facilitação. Só sei que, uma vez ali, a impressão que se tem é que a linda prainha é particular. Eu, por ter a parentalha por ali, circulava subindo e descendo o morro, mas nem ousava olhar para o lado da casa quando tinha gente lá. Alguns conflitos aconteceram ao longo dos anos. Eu estava lá quando a embarcação dos filhos do Dito Madalena, que chegava da pesca, se chocou contra a enorme lancha do ricaço que estava fundeada no ponto deles. Coisa pouca, quase nenhuma marca, mas aconteceu. Os rapazes juntaram suas coisas e foram morro acima, para casa. Chegaram já contando para os pais (Dito e Constantina). Não demorou muito veio o dono da lancha reclamar do ocorrido. E então aconteceu o seguinte: “Sim, pois não doutor”. E ele começou a explicar o ocorrido. Mas mal começou, o Dito diz: “Vamos entrar, doutor. A casa é pobre, mas recebe o nobre. A gente se entende melhor sentados”. E ele, meio ressabiado, entrou e se acomodou na pobre cozinha, de onde se avistava o grande mar. “Mulher, faça um café para nós. Asse umas bananas para a gente comer com essa farinha que fizemos hoje”. Os rapazes, assim como eu, permaneciam em silêncio na sala, apreensivos pelo desfecho do assunto. E Dona Constantina, além de tudo, ainda fritou umas postas de peixe. E o homem não teve como não aceitar tudo aquilo que fazia parte da acolhida dos caiçaras. Então ele contou, comeu... contou... comeu mais ainda. Queria receber pelos danos causados na sua lancha pela embarcação da família. O Dito, depois de escutar o homem, respirou fundo, deu uma olhada por cima da janela como se a Ilha da Vitória estivesse logo ali: “Escuta aqui, doutor, eu não vou pagar nada. Naquele lugar, onde eu tenho visto a lancha do senhor, é onde fica a nossa poita. Tem até uma boia permanente lá, ela não sai dali porque é a nossa guia, onde a nossa baleeira fica fundeada. A praia é pequena, nós precisamos chegar e sair todo dia para a pesca. O seu barco poderia ficar mais para fora, sem atrapalhar nada. Por que o senhor põem ali, no nosso lugar? Então... eu não vou pagar nada! .Não quero brigar com o senhor e os meninos vão continuar fazendo a mesma coisa que fazem todo dia. Nós precisamos pescar, é disso que a gente vive.  Assim tá bom? E, além do mais, nós somos  vizinhos”. Assim foi resolvida a questão. O “Seo Bassin” saiu de barriga cheia, doido para chegar em sua casa e escovar os dentes para tirar o gosto da piragica frita. Depois eu ri muito. Ainda hoje, ao lembrar do fato, me alegro pelo desfecho. Certamente que o tal ricaço nunca esperava um tratamento desse.

Em tempo:o amigo João Batista (Jobàn) deu a informação de que, nesse tempo, a prefeitura foi acionada pelo Dito Madalena porque o ricaço cercou o acesso à praia. Ele e a equipe foram até lá retirar a cerca.

sábado, 16 de maio de 2020

PEDRA DO ALÇAPÃO

Alguns lugares são inesquecíveis!  (Arquivo JRS)



                Todas as vezes que eu passo na estrada que liga Caraguatatuba e Ubatuba, me emociono quanto estou por perto da praia Brava do Hermínio, próximo do Lamberto (onde localiza-se o Instituto Oceanográfico da USP). É que naquela região, pelas costeiras, eu desconfio que conhecia, quando menino, todos os pesqueiros.

                Pesqueiro é o lugar, nas costeiras, onde os antigos caiçaras sabiam que tinha peixe sempre. Ou seja, não tinha como “perder a viagem”. Geralmente é porque nesses determinados pontos têm tocas preferidas dos peixes devido a lugares profundos, de correntes onde passam cardumes etc. Falo agora de alguns exemplos: logo depois da barra do Perequê-mirim tinha a Pedra do João Brás. Do outro lado, a meio caminho da Santa Rita, ficava o Saquinho Manso. Na ponta direita era o Ponto do Guilherme, onde até lagosta vinha no anzol. Ali, por um longo tempo, o Pio escultor teve uma barraca, onde trabalhava, quase sempre acompanhado de suas crianças loiríssimas, produzindo suas belas obras em madeira. (Possivelmente ele não exista mais, mas continua vivo em nossas memórias e em suas obras pelo mundo). Depois vem a Lage do Jango, mas eu nunca me aventurei por ali porque tinha muitas cracas e eu sempre andava descalço. Próximo do morro onde por um tempo morou o Gentil e a dona Tereza, ficava a Pedra do Alçapão. Ali sim eu pesquei demais com o papai! Era garoupa, era bagre, era gudião, era salema, era moreia... Ai, ai, ai...

                Geralmente era no final da tarde que o meu pai gostava de ir até a Pedra do Alçapão. Quando a gente saía de lá já estava quase escuro de vez. “Nesse horário os peixes estão querendo alguma coisa para comer e depois irem descansar”. Eu achava que era mesmo. Assim, num entardecer, um peixe se agarrou na isca ali, mas logo entocou. Era garoupa. Meu pai esperou um tempo, andou variando as posições de puxadas, mas de nada adiantou. “É bitela, Zezinho! Se eu  forçar muito vai estourar a linha na pedra”. Vendo que a danada não iria desentocar mesmo, o que fez ele? Puxou um galho da árvore mais próxima que resistisse, amarrou a linha sob pressão, bem esticada e... “Pronto! Vamos embora! Amanhã cedo venho aqui ver o que resultou. Ela vai se cansar e vai boiar”. Dito e feito. No outro dia, na hora do café, chegou ele com a garoupa enorme. Depois, várias vezes vi isso se repetir. 

             “Escuta, Gal: a Pedra do Alçapão, logo ali, nunca deixou a gente de mãos vazias!”.  Foi o que comentei com a minha esposa ao passar pelo lugar dias atrás.

sexta-feira, 15 de maio de 2020

PARTES DE MIM

Artesanato na Caçandoca (Arquivo JRS)


                Continuo recordando das minhas raízes, de falas e de contatos que me vêm à memória. Com certeza elas estão em mim e passando nos meus! Os nomes Mesquita e Amorim têm origem no mouro, na cultura árabe. A história da caapora ter se juntada ao parente português é a minha linhagem indígena. Na sala da vovó Eugênia tinha a fotografia do pai, um negro cuja mãe, trisavó da gente, foi escrava na praia do Lázaro. A mãe, Laurentina, herdou seu nome de uma branquíssima italiana, por parte da mãe dela. Papai, natural da Caçandoca, dizia que na sua infância “tinha conhecida uma tia que era ruiva e que escutou muitas vezes dizerem que ela era filha do estrangeiro, da Holanda”. (Observação: naquele tempo, depois dos pais, na comunidade todos eram primos, primas, tios e tias).

                Eu tenho irmãos loiros, de olhos azuis, de olhos verdes... Meus primos também variam entre as características das nossas raízes fundadoras. Vicente, um negro impressionante, Toninho, irmão dele, um loiro de olhos azuis; tio Chico e tio Lúcio que se passavam por índios até mesmo entre os índios; a prima Catarina (filha do tio Chico e da tia Maria) morena, de cabelos loiros, de olhos verdes; Jorge, um cafuzo sempre de bem com todo mundo, do time dos fartos beiços. E um monte de gente com cabelos duros, espetados, narigudos...E com olhos puxados: marca número um!

                Quando criança, eu me impressionava com os olhos da tia Izolina: eram azuis demais, pareciam enxergar dentro da gente. Ela morava na cidade de Cunha, distante daqui, mas regularmente nos visitava. (Mais tarde eu notei que a vovó Martinha tinha os olhos do mesmo tom, mas passavam como normais porque ela estava no nosso cotidiano). Nessas ocasiões, mamãe me escalava para acompanhá-la nas andanças pelas casas de outros parentes. Eu gostava porque escutava muitas histórias. Essa tia – Izolina Amorim -  é a dona de  frases marcantes: “Praga eu não rogo, mas bom fim não há de ter”, “Defunto que não conheço não rezo, nem ofereço”...

                Neste planeta, desconfio que é assim com a maioria dos povos. Neste país, essa colcha de retalhos é que nos faz brasileiros! Tem sentido alguém rumar na direção do preconceito étnico, de aceitar a cor da pele como marca de superioridade ou inferioridade? Tem sentido tantas injustiças decorrentes disso? É preciso reflexão sempre! Meu tio-avô Clemente, filho de negra e de mouro, da ilha do Mar Virado, repetia sempre: “Para ser imbecil e atirar no próprio pé não é preciso muita coisa”.

quinta-feira, 14 de maio de 2020

EU TAMBÉM SOU DE GENTE PRETA!


Mapa dos ingleses na metade do século XIX (Arquivo JRS)
Mastros na boca da barra - Pintura no museu (Arquivo JRS)
Somos brasileiros: a soma de gente que veio fazer a vida aqui, de gente que chegou traficada para a escravidão e dos nativos da terra (os indígenas). Com o passar dos séculos, na sopa cultural de etnias, viemos nós. Estúpido, perverso, imbecil, ruim etc. é quem se acha superior a qualquer desses grupos originais (nossas raízes). Cruel é um sistema que, movido pela ganância, cava as fórmulas para desprezar culturas e exterminar povos. Em tempo de fazer viva-memória da nossa herança negra, me recordei do saudoso Silvério Sabá, o Mestre Sabá. A propósito, dias atrás encontrei, na Pedra Branca, a sua filha Mariana e o seu neto, tranquilo como ele só.
              
    Foi o Sabá, caiçara negro da Enseada, quem me ensinou a história da “Igreja dos Pretos”, que ficava a menos de cinquenta metros da Praça da Matriz“Era ali, onde hoje é uma praça. Depois de tantos nomes, hoje dizem que é da Nossa Senhora. Era ali que ela ficava, perto do mastro onde se costumava prender escravos para corrigir no chicote. Foi construída porque os pretos, a minha gente, não podiam entrar na igreja dos brancos. Mas também não podiam ficar sem a religião dos brancos, né?”. Agora, lendo um relato do Seo Filhinho, achei uma contribuição a essa história. Se referindo à Igreja Matriz, está registrado:


               
     Até 1913 muita coisa havia por fazer: apenas a fachada era rebocada. Todo o restante, isto é, toda a nave e a Capela-Mor, sem revestimento exterior, ostentavam as cavidades que teriam servido de apoio aos andaimes da construção, e nesses buracos viviam e procriavam-se andorinhas que, na primavera, em revoadas enormes, ofereciam empolgante espetáculo. Se é verdade que a Matriz rebocada ficou mais bonita, também é verdade que as andorinhas se foram e não voltaram mais (...). Naquele ano o Padre Paschoal Reale defrontou-se com um seríssimo problema: estava em péssimas condições de conservação, prestes a ruir, a Igreja de Nossa Senhora do Rosário [da Irmandade dos Homens Pretos] – a que tinha sido dos escravos, no tempo da escravidão –e se erguia na pracinha em frente à praia, onde hoje está a imagem de Nossa Senhora da Paz de Iperoig, praça que teve sucessivas denominações, como a do Rosário, Marechal Deodoro, da Bandeira e hoje é de Nossa Senhora da Paz. Faltando recursos para enfrentar o montante das obras necessárias, resolveu demolir aquela igreja e, com o material recolhido, aproveitando parte e vendendo o resto, foi possível efetuar obras na Matriz, concluindo a Capela-Mor, isto é, rebocando-a, forrando-a, cimentando o piso e para lá levando o altar-mor, desocupando a nave que até então era assoalho e  procedeu a outras pequenas restaurações de que o templo necessitava.

                Em 1915 ainda o Padre Reale concluindo obras que elevou a efeito na Matriz de Ilhabela paróquia que acumulava com Ubatuba, trouxe para cá o italiano Antônio Pitigliani, hábil carpinteiro que, aproveitando peças dos antigos altares da demolida Igreja do Rosário, construiu o atual, altar-mor, onde a par de peças novas, lá se podem ver em contraste, as colunas e molduras antigas, em estilo bem diferente.


                É assim! Em relação à nossa raiz africana, podemos afirmar que o resultado de seus esforços e de seus sofrimentos estão presentes onde menos poderíamos esperar. Sabá me explicou, ao seu modo: “A igreja matriz , aquela que tá lá hoje, veio depois da igreja da minha gente. No altar da Igreja da cidade, ali na praça, o que tem serventia de sustentação e mais aparece na igreja dos brancos é parte do altar dos pretos, foi levado da nossa igreja. Ela se acabou. E mais coisa tem lá!”.


                            Lembro-me bem do olhar terno do saudoso Mestre Sabá ao me escutar: "Eu também sou de gente preta, Sabá! Você sabia?".


quarta-feira, 13 de maio de 2020

SOMOS FILHOS DA TERRA

Casarão em Bananal (Arquivo JRS)


Adoro viajar, ver as belezas naturais e culturais, sobretudo nos riquíssimos recantos do nosso país! Viajar, fazer amizades, conhecer outras comunidades, apreciar as artes etc. Tudo é muito bom! Por isso, em tempo de distanciamento por uma causa assustadora, onde tanta gente já morreu, revejo umas fotografias para relembrar outros momentos da vida, das nossas vidas.

                Eu presto muita atenção em detalhes simples nessas minhas andanças. As edificações de outros tempos me atraem demais! Ao olhar, por exemplo, um casarão do tempo onde o Brasil era colônia de Portugal, consigo enxergar  a movimentação daquele tempo, inclusive as condições dos escravos. Imagino as pedras e as madeiras – enormes! – transportadas sob açoites.  “Os dados mostram que as mortes dos negros (pretos + pardos) por covid-19 já superam as dos brancos”.  Admiro o mestre de obra que realizou um projeto, com tamanha harmonia que continua cativando olhares, causando admiração. “Será que tinha uma casa decente?".  Ou, de acordo com uma música: "Tá vendo aquele edifício, moço? Eu também trabalhei lá!". Mas se parar para admirar a casa depois de pronta, pode até se tornar um suspeito de querer roubar. 
       
            Eu viajo no tempo, quando os indígenas, por se oporem à tomada de seus territórios, foram perseguidos. Tantos povos acabaram sendo dizimados! “E hoje, você sabe em que pé estão as organizações indígenas? Ou você sente repugnância ao vê-los pela cidade?”. A ganância resultou em enormes propriedades, em casarões que atestam a riqueza acumulada de seus donos. “Tanta terra nas mãos de tão pouca gente e tanta gente sem nenhuma terra para morar”. E de onde veio a riqueza? Do trabalho de alguém, do trabalho de muitos que, usando a força e a ideologia em suas diversas nuances, foram mascarando os sofrimentos e destruindo identidades. Pior: despertaram a ganância enquanto matavam os valores comunitários. 

     E assim trilhamos por um caminho alimentados pelas desigualdades e pelo egoísmo. "Bobo é quem não pensa assim!". Agora, com nova identidade, tantos são capazes de escolher líderes que vão de encontro a esse novo rumo de raiva, de perseguição às minorias, de justificação à morte de tantos enfraquecidos, vítimas deste sistema excludente, privatizante. “Quem não pode pagar que se dane!”.... “Para que índio precisa de terra?”... “A Amazônia tem de ser lucrativa a qualquer custo”... “Morreu toda essa gente: e daí?”... etc.

                Não! O patrimônio de um país pertence ao seu povo! “Estão vendo todas essas belezas, meus filhos? Elas resultam  da vida de muitos, de talentos diversos! Vamos respirar a presença de todos os atores que resultaram nesses lugares, nessas maravilhas! Vamos receber as energias, mas somente as positivas, capazes de nos manter fiéis aos nossos princípios, às nossas origens!”. Enfim, convém lembrar sempre da frase do velho cacique: “Tudo o que acontecer à Terra, acontecerá aos filhos da Terra”.

domingo, 10 de maio de 2020

QUE SONHO?

Luar no caminho de Aiuruoca (Arquivo JRS)


                Estou andando pelos caminhos. Ouço gente   – e não são poucos!  Dizem: “Após este pesadelo da pandemia, a humanidade voltará a sonhar”. Eu pergunto: Quais sonhos? Sonhos capitalistas de acumulação às custas do trabalho e de vidas dos outros? Sonhos de acabar com a natureza para ostentar padrões de vida absurdos, destoantes da maioria da humanidade? “Não, não e não!”.  O meu sonho é este sonho que está sendo perseguido há muito tempo, bem antes da pandemia. É sonho de uma sociedade mais igualitária, onde o trabalho não seja uma maldição. Meu sonho é que os direitos se alastrem, não sejam destruídos. Não faz parte do meu sonho votar a favor do ódio às minorias, defendendo os interesses dos ricos, das potências econômicas, divulgando mentiras e praticando, em discursos e atos, a violência. Meu sonho é que os direitos humanos se alastrem, não sejam destruídos até mesmo em “embalagens religiosas”. No meu sonho, a paz e a justiça imperam. A pandemia comprova, mediante ações solidárias, que o meu sonho é o mesmo de muita gente. Já o vivenciam aquelas pessoas que não estão escravizadas pelo capitalismo. “Dinheiro não enche a barriga. Rico não escapa da doença. E morre também!”.

                Olho para alguns, caminhantes também, miseráveis: “Infelizmente a culpa é a sua própria verdade”. A morte vai me alcançar um dia, mas meu sonho continuará existindo. Enquanto vivo, tenho o dever de anunciá-lo, de vivê-lo! “Ah! Quantas coisas continuam no livro do silêncio!”.

                Sonhos novos não vão renascer em corações que continuam contaminados, pensando como uma elite que se fez destruindo tanto pelos séculos e séculos. “Ah! Quantos se deliciam no estrume enquanto se negam ao banquete que novos sonhos poderiam oferecer!?”

              O nosso ser e o nosso trabalho precisam ser revisitados, revisados! Não estarão perpetuando a hierarquia de classe? Não estarão alimentando a intolerância e a agressividade?  Que bons sonhos poderão vir com tais bases? “Senhor, livrai-nos do mal, sobretudo das mentiras vindas do governo que almejam o mal para nós, parte da maioria excluída. Amém”.