Fim do dia. Logo era serão. O lugar, bem longe de qualquer casa, era o Morro da Anta, já no espigão que dá vista para a Lagoinha, defronte ao Morro da Jacutinga. Para chegar ali se enfrentava uma só subida de quase hora (mesmo que tivesse sempre alguém com fôlego para subir correndo em menos de trinta minutos); quase igual ao Morro do Ai Jesus, no Saco dos Morcegos. Ao escutar os primeiros pios de curiabôs nas grotas, cada um dos presentes catava a sua ferramenta porque o dia estava encerrado, embora alguns deles ainda deveriam ir armar o tresmalho para garantir peixe fresco para o dia seguinte. Afinal, conforme o tio Maneco Armiro: “Quem resiste a um escardado de sargo, de piragica ou mesmo de jangolengo?”. Eu, um dos últimos, estava encarregado de descer com algumas canas para a garapa do café da manhã seguinte. De repente, grita da badeja o tio João: - Zezinho, traga a jararaca. Tá pendurada na carquera.
A minha vontade era largar aquele bicho feio, de cabeça amassada pelo olho da enxada. Onde já se viu ficar se preocupando com cobra mesmo depois de morta? Mas... quem tinha coragem de tal ato? Era como cometer um pecado gravíssimo. Assim, só restava fazer aquilo que a tradição do lugar determinava: levar a peçonhenta até o Buraco da Cobra. Assim eu cresci. Até hoje penso na quantidade que lá foi depositada. Deve ter muitas ossadas ainda por lá, se diluindo aos poucos para o mar.
O Buraco da Cobra fica na Costeira do Cambiá. Era para lá que, independentemente de onde tivesse sido morta, as pessoas abandonavam os temíveis seres. Por isso que era comum, sempre que se zanzava na praia, ver passantes arrastando medonhos troféus. De vez em quando, aparecia uma víbora diferente, tal como o preto e brilhante urutu cruzeiro, que momentaneamente se tornava atração. Linda mesmo é a coral! Esta é a minha opinião. Creio que a vivência de tal tradição me deu uma característica importante: nunca tive medo das cobras.
Em uma ocasião, debaixo de um sol cruel de dezembro, enquanto cuidávamos de um fogo na capoeira, perguntei ao meu avô tudo o que eu ainda não sabia sobre o Buraco da Cobra, do costume que a gente tinha naquele lugar. Vovô me explicou tudo. Era um costume antigo, do tempo dos índios; diziam que osso de cobra é tão venenoso quanto a picada da mesma. Por isso que os ossos não podem ficar em qualquer lugar, oferecendo risco às pessoas. Aquele lugar do Cambiá é e sempre foi usado para isso. Foram os índios que deixaram isso para nós; é um valor: além de se preocupar com a gente mesmo, também não desejamos que ninguém passe por tal mal. Arrematando a prosa, disse-me ele:
- Meu neto: fazei o bem sem olhar a quem, e, o mal, a ninguém. Quando você estiver com maus pensamentos, imagine o Buraco da Cobra e abandone naquele lugar feio todo tipo de ruindade, tudo aquilo que pode envenenar você e os outros também. Faça isso e seja feliz.
Leitura recomendada: Pedra do Reino, de Ariano Suassuna.
Boa leitura!
José Ronaldo dos Santos
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