É fantástico ouvir até hoje os causos de assombração do povo caiçara. Tem de tudo, mas os que mais impressionam são aqueles que tratam de lobisomem. Todos eles contribuíram para que se evitasse a escuridão, se mantivesse sempre próximo da moradia e não ficasse, sem necessidade, até tarde da noite “batendo pernas”. Também tinha a questão religiosa, onde o divino ou o representante dele poderia ser a única barreira contra o inimigo, “o coisa ruim”. Assim nós escutamos sobre o padre expulsando a serpente da Gruta que chora, o frade que interveio na assombração do Corcovado, o choro do canto da casa que não foi mais ouvido após o benzimento feito pelo sacerdote e outras coisas mais. Todas as narrativas eram arrepiantes! E os contadores e contadoras então? Eles são um caso à parte! Que maravilha o encantamento produzido por suas falas! Mesmo tremendo ninguém queria sair na metade do causo. Interessante também era o horário de tais momentos: no serão e logo após o jantar. Será que ajudava na digestão? As casas dos meus avós foram lugares privilegiados no conhecimento dos causos, das histórias arrepiantes: os meus avós paternos (Estevan e Martinha) reuniam a gente no quintal, no serão, embaixo de frondosas árvores; lá nos “seguravam” até quando queriam. Na casa dos meus avós maternos (Zé Almiro e Eugênia), o espaço mágico era a espaçosa sala, onde, no escurecer, um lampião a querosene, fazendo tremeluzir as sombras, deixava a atmosfera mais propícia ao medo, ao “deixar impressionado”. As palavras causavam arrepios, faziam as lágrimas transbordarem e serem enxugadas pelas mangas das camisas. Porém, poucos admitiam estar com medo.
O causo seguinte é uma homenagem ao nosso Mané Hilário, que no último dezembro completou 102 anos. “Devemos valorizar as pessoas enquanto estão vivas”: eis um dizer antigo que continua valendo. Quando lhe perguntei sobre “coisas do outro mundo”, o vivido caiçara respondeu “que assim como tem fé e esperança em Deus, acredita que tem (existe) o bom e tem o ruim; se teve até para Jesus, que foi tentado pelo demônio, quanto mais para nós na Terra”. Assim ele conta um causo vivido na sua juventude:
“Imagine alguém dizer que não tem, não existe o demônio, o coisa ruim...tem. porque em casa tinha um cachorro chamado Saúva, um cachorro bonito. Quase toda noite o pobre do cachorro apanhava no lado de fora. Nada se via, mas nós escutava o rumor da guasca que batia no cachorro, e ele, coitadinho, botava a cauda no vão da perna e vinha na porta chorando, daí nós botava ele pra dentro. Uma noite daquelas, o Saúva tava apanhando de dá dó, aí a minha tia Elídia, que morreu com cento e poucos anos, se pegou com Deus e saiu, enfrentando, falando alto: ‘Tá batendo no cachorro, seu porco, sem vergonha, seu pé de pato?’ E xingava o que era, aquilo que não podia ver. ‘Espera que eu já vou com um tição de fogo aí’. Foi lá na cozinha, pegou um tição de fogo. Ela sabia muitas rezas. Chegou no terreiro, pegou a rezar em voz alta. O que era saiu pelo caminho do poço. Quando chegou perto do poço deu dois assobios: fiuiuuuuuu......fiuiuuuuuuuuu.... Tia Elidia respondeu: ‘Tá sobiando ainda, seu malandro, seu sem vergonha, seu ordinário!? Creio em Deus Pai Todo Poderoso, Santíssimo Deus!’. De lá veio uma risada. Minha tia pegou o tição de fogo e jogou com força, que ele foi cair lá no meio do mato. Eu disse assim: vai pegar fogo, o capim melado tá seco. Mas não pegou fogo. Aí o que era desapareceu; nunca mais voltou. O que era não sei. Então ela dizia: ‘Era o demônio meu filho, o coisa ruim que anda rodeando a casa, atentando a vida da gente’. Então eu digo: tem”.
É isso! Quem batia no cachorro?
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