terça-feira, 26 de dezembro de 2023

QUANDO A GENTE SE ENCONTRA

 

             

Eu, Domingos, Clóvis e Ana - Arquivo Mingo

   

      Na minha família, quando a gente se encontra, a prosa varia, mas sempre tem muitas risadas. Ontem, o almoço de Natal com a irmandade e familiares me fez recordar de tantos momentos ao longo desses anos desde a infância, quando os motivos eram diversos (raspar mandioca, juntar peixes na rede, prosear no jundu, escutar histórias, fazer cantoria nas casas etc.). Sentimos as ausências do Jairo e do Guinho (Wagner) por motivos particulares. Senti uma grande alegria pela sobrinhada que há tempos não via. Pena  que Estevan e Pedrinho não estavam. Também pensei na Mônica.

     Muitas mudanças são notórias ao longo da existência da nossa irmandade, sobretudo devido às ocupações dos espaços por turistas e migrantes pobres que para cá acorreram em busca de melhores condições de sobrevivência e de lazer, resultando em diminuição das áreas de cultivo  e em extinção das áreas, nas praias, destinadas aos ranchos das canoas e demais apetrechos de pesca. A juventude também perdeu muito! Sumiram os campos de futebol. Desapareceram os sombreados nos jundus onde ocorriam alegres encontros; muitos namoros tinham ali seu ponto de partida. Tudo isso me veio à mente lendo agora umas anotações deixadas pelo Olympio Corrêa. Eis o que está detalhado da metade da década de 1970:

 

        Entre os caiçaras, a mandioca é cultivada em larga escala e dedicada quase que exclusivamente ao beneficiamento, isto é, a ser transformada na sua respectiva farinha. Mesmo na praia, onde a pesca é uma atividade importante e as roças estão em decadência, sua população ainda fabrica a farinha para o gasto e, às vezes, para a venda. Todavia, é no sertão que esse beneficiamento constitui a principal fonte de renda. Os produtos derivados da mandioca são, além da farinha, a goma, a tapioca, o biju e o polvilho.

     Na alimentação caiçara, seja do sertão, das praias ou dos emigrados para a cidade, a farinha de mandioca constitui a metade dos demais  comestíveis. É comumente misturado ao feijão, ou misturado ao café. Quando juntada à banana amassada, torna-se paçoca, quando torrada com toucinho ou carne é farofa e, ainda, como pirão, quando cozida na água quente ou no caldo de peixe. As próprias criações, inclusive cães e gatos, têm na farinha seu principal sustento.

      A operação do beneficiamento da mandioca dura de um dia e meio a dois dias. A programação da quantidade da farinha de  mandioca a ser fabricada é feita no dia anterior ao forneamento. Conforme o número de membros da família, sua capacidade de trabalho e suas necessidades, o chefe da casa planeja de dois a três tipitis de massa, que renderão de dois a três alqueires de farinha.


  Nesta última parte até parece que o autor se referia ao vovô Zé Armiro, da praia da Fortaleza. Saiba que cada alqueire - medida antiga! - equivale a aproximadamente 25 litros ou 20 quilos. Metade dessa produção ficava para ser consumida por nós e a outra seguia para ser negociada no centro da cidade ou em qualquer mercado maior de alguma praia.

segunda-feira, 25 de dezembro de 2023

RIOS QUE GRITAM

 

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Dia de trilha - Praia da Ribeira - Arquivo JRS

       Mano Mingo, na poesia Rio dos pitus, camarão de água doce conhecido pelos caiçaras por cafula, me faz recordar da nossa cachoeira, do rio principal da Fortaleza, praia natal da nossa mãe (Dona Laurentina) que teve grande importância no ser que somos hoje. Atualmente esse rio quase que nem é percebido porque mingou, mas continua a falar. Na verdade, ele grita devido a esgoto e lixo que recebe de tanta gente e vai despejando no mar, resultado de atitudes que alimentam a cobiça, indiferentes à vida que é nossa. Não se trata de salvar o planeta, mas de salvar a nossa espécie e muitos outros seres. Daí a urgência de políticas ambientais, de combate aos agrotóxicos, aos plásticos etc. Certamente nós nos extinguiremos, mas a Terra continuará o seu ciclo. 

      Os rios gritam! Quem sabe a maioria das pessoas aprendam essa linguagem quando essas vozes já tiverem se calado para sempre. Quem sabe?


Na casa de meus avôs tinha um rio palrador

que contava histórias naturais

escachoando entre as pedras, 

na Praia da Fortaleza.

Quem nada compreendia

dizia que era só rumor de correnteza.

domingo, 24 de dezembro de 2023

AMANHÃ É NATAL, MAS...

 


 

Eu e Caetano - Arquivo JRS

      
   Hoje, véspera de Natal, eu e a filha (Maria Eugênia) fomos até a roça do Caetano, na estrada do Monte Valério. Por ali tudo vai se transformando rapidamente por conta da  proximidade com o centro urbano. Foi-se o tempo em que aquele lugar parecia distante, dava até preguiça de andar.  Quando adolescente, eu achava que era uma lonjura danada.  Naquele tempo quem produzia nessa terra eram os japoneses. Hoje mudou muito, logo tudo vai estar com ruas e casas. Portanto, a área plantada vai se reduzindo até chegar um dia em que o Caetano ou seus descendentes terão apenas a porção que fica debaixo da rede elétrica. Ali, certamente, se concentrará toda a produção.

     Chegamos pouco depois das seis horas, bem cedo. Mas o amigo Caetano já estava lá, debruçado sobre o canteiro, transplantando rúcula entre cebolinha. Um abraço gostoso deu início à prosa atualizada. A primeira parte foi sobre as condições de saúde do Velho Caetano: “Eu quase que morri, Zé e Maria. Se não fosse o telefone, o celular, eu estaria morto. Me senti mal, fui quase que rastejando até o barraco. Lá chegando, tentei  telefonar, pedir ajuda. Passei sufoco, me dei como morto. Só que o filho da vizinha conseguiu contato com o meu filho que veio e me levou ao hospital. Agora estou bem, produzindo de tudo um pouco, aproveitando a época que mais vendemos couve e pepino. Lá, depois do canteiro, tem berinjela, inhame, jiló e abobrinha”.

     Que bom encontrar o Caetano com tanta disposição! Em seguida fomos tomar um café. É um ritual que fazíamos mais frequentemente, mas outros rumos surgiram no horizonte, quebraram esse nosso prazer . Nisso a conversa segue para a criação de patos. Dele ouvimos: “Por esses dias eu vendi quase quatrocentos patos. As galinhas não se dão muito bem comigo. A criação está lá no terreno do Gilberto. Já estive cedo lá alimentando as aves. Cheguei aqui por volta da quatro e meia, ainda no escuro”.

     É assim; sempre foi nesse ritmo. O meu amigo, o Velho Caetano, costuma madrugar cotidianamente. Ouso dizer que quando o seu dia não for assim, não começar desse jeito, podemos desconfiar  que coisa boa não é. É a minha experiência de anos convivendo nesse espaço e com essa nossa gente.

     Eu e Maria deixamos o nosso anfitrião na tarefa e fomos dar uma volta pelos canteiros, vendo o vigor e os arredores. Depois voltamos para as despedidas. “Amanhã é Natal, mas a roça não para. Eu estarei aqui, se Deus quiser. Tudo de bom a vocês e à toda família. Foi bom rever você e a Maria. Apareçam sempre e mais vezes”.


sexta-feira, 22 de dezembro de 2023

BANANA VELHACA

 

Eu e Maciel - Arquivo Maria Eugênia


Banana velhaca - Arquivo Maria Eugênia


     Por estes dias, na Feira Agroecológica Caiçara, passei um tempo proseando com o amigo Maciel, natural do Ubatumirim, mas há alguns anos vivendo da agricultura em Catuçaba, bairro do município vizinho de São Luiz do Paraitinga. Eu recomendo os seus maravilhosos produtos que estão à venda semanalmente na Feira (quarta-feira, das 9:00 às 14:30 horas), no centro da cidade de Ubatuba (Rua Orlando Carneiro, 422).


     Além da diversidade de produtos que o Maciel traz a cada semana,  a minha surpresa foi encontrar uma variedade de banana que até já tinha esquecido que existia. Trata-se da banana velhaca. Assim a nomeavam os mais velhos. Num primeiro momento ela se assemelha muito à banana da terra, com algumas sensíveis diferenças: cresce mais, tem uma cor alaranjada por dentro, produz poucas pencas com um mínimo de frutas dispostas de forma desengonçada. Ou seja, é uma espécie “pouco” produtiva. Porém, há um detalhe muito particular, que mais chama a nossa atenção. Estou me referindo à forma como se planta essa raridade. Vou explicar essa particularidade especial: você abre um buraco, uma cova adequada ao tamanho da muda, faz um lastro no fundo com brasas e cinzas e deposita a muda. Sim! Ela é plantada em cima de brasas vivas, de cinzas quentes! Em seguida entra a terra que vai preencher o buraco feito e afirmar a nova plantinha. Depois é só aguardar o crescimento e a produção. E se deliciar, claro! Não sei dizer porque a nova muda passa por esse processo inicial. É um saber antigo, um fazer que deve ter uma razão mais profunda. Fica a dica para uma pesquisa na área da Agronomia e afins. O Maciel me contou o seguinte: “Lembro-me bem do vovô plantando banana velhaca. Geralmente era no fim da tarde, em dia de forneada de farinha, quando tinha bastante brasa e cinza acumuladas no forno. Ele catava aquele tanto e jogava no buraco. Depois botava a muda em cima e preenchia de terra em volta. Eu, lá no meu terreno, já colhi dessa banana com mais de quarenta centímetros”.


      Gostou da informação? É pena que os espaços caiçaras se reduzam assustadoramente. Também sinto muito por muitas espécies, outrora cultivadas nos terrenos do litoral, que estão desaparecendo. Mais triste é saber que fica na ignorância de muitos o total desconhecimento de tamanha riqueza cultural que garantiram a vida dos nossos antigos. Por isso louvo os esforços do Maciel e de mais algumas pessoas preocupadas em zelar por determinadas plantas, em mantê-las e apresentá-las às gerações mais novas. Gratidão ao meu amigo por ter levado, botar na banca a banana velhaca!

terça-feira, 19 de dezembro de 2023

TIÃO GIRÓ

 

Tião Giró explicando a técnica - Arquivo internet


Velho Giró e filho na praia da Enseada - Arquivo Família Prochaska

Imagem atualizada - Arquivo Elder



     Quando criança, morando na praia do Perequê-mirim, vez ou outra eu escutava o meu pai falando do Tião Giró. Pescavam juntos de vez em quando, conviviam por ali, na vizinha praia da Enseada. Devem ter compartilhado muitos causos, mas a grande admiração de papai era pelo domínio da técnica da pescaria de cerco que o amigo detinha. Mais tarde conheci a filha e o filho do Tião Giró; pude encontrá-lo vez ou outra em minhas andanças. Ainda adolescente tive o prazer de conviver com uns parentes deles (Sidney e Sônia Giraud); fiquei sabendo que gente com esse sobrenome era descendente de franceses que migraram para Ubatuba no século XIX. Com Elder, o filho, meu companheiro de trabalho, fui conhecer o seu lugar de moradia, bem defronte da capela Santa Rita. “Ah! Querida Enseada! Ah! Querida capela onde eu e meu pai fizemos o forro há décadas!”.  Respirei aquele entorno, me recordei de outros momentos vividos por ali, sobretudo das canoas abarrotadas de pescados e dos rostos de tantas pessoas que conviveram conosco. Outro dia, proseando com a Cristina Graça, ela deu notícias da tia (Zenaide) e do pai (Eduardinho): “Papai está com 92 anos. A tia Zenaide com 90. Certamente são os mais idosos do nosso  lugar”. Novamente pensei no Tião Giró, no nosso pessoal da Enseada.

      Tião Giró, nascido Sebastião Giraud Filho, em 1943, era filho de pescadores. O pai dele já trabalhava com a técnica dos cercos flutuantes trazida pelos japoneses por volta de 1920. Foi observando, trabalhando com o pai, que ele se tornou um especialista em cercos flutuantes. Aos 25 anos ele já era um mestre. Eu recomendo o texto OS ÚLTIMOS MESTRES REDEIROS DA ARTE DE PESCA DE CERCOS FLUTUANTES, dos pesquisadores Roberto William Von Seckendorff, Venâncio Guedes de Azevedo e Josef Karyj Martins.

    Fazer um cerco flutuante eficiente, garantir uma pescaria perfeita, não é fácil. Foram décadas de vivência que se encerraram agora, em dezembro último. “O pai do Hélder está muito mal, Zé”. Quem deu a notícia foi o meu primo Zé Roberto. No dia seguinte havia falecido esse último mestre da técnica de pesca de cerco porque ninguém se importou em aprender com ele. Assim, aquele modelo assimilado dos migrantes nipônicos, onde era possível escolher os peixes maiores e soltar os menores para que crescessem tende a desaparecer, assim como desaparecerão os enfrentamentos no mar dos caiçaras de outros tempos. Também vai depender de nós a memória de Tião Giró, Acácio, Zeca Paru, João Quintino, Dito da Mata, Elídio, Dito Funhanhado, João Vitório e muito mais gente que fundeavam cercos e tresmalhos  pelas nossas costeiras, sobretudo no entorno da Ilha Anchieta.

   Ao receber a triste notícia, citei para o Zé Roberto aquela frase do pensador africano Hampaté Bah, do Mali: “Quando morre um africano idoso, é como que se queimasse uma biblioteca”. Isto vale para todos os povos, para todas as culturas, inclusive à cultura caiçara. Agora, mais um esteio dessa nossa cultura nos deixou. Aquela gente fotografada bem criança, na década de 1940, está se despedindo de nós. Quem registrou, quem deixará para a história um pouco dessas “bibliotecas” que seguem nos deixando?

   Que cada um de nós, cada ser caiçara do presente, possa se apropriar dessas memórias que nos trouxeram até aqui. Muita força aos filhos, parentes e amigos que conviveram com ele. Gratidão ao Tião Giró pelo exemplo de vida!


Em tempo: O menino da foto é o Otacílio, irmão do Tião Giró. Gratidão ao Peter pela observação.


segunda-feira, 18 de dezembro de 2023

SOBRADOS

 

 

Sobradão do Porto - Arquivo Ubatuba 

     Hoje, a partir de uma fotografia de meados do século XX, cujo autor desconheço, permitirei uma noção do espaço central da cidade de Ubatuba, onde, quando criança, ainda alcancei vários edifícios arruinados, sendo demolidos, a praça 13 de maio cheia de capim, a avenida Iperoig com um canteiro central amplo de plantas vicejantes etc. . Para isso estou me valendo do escrito do Seo Filhinho, do livro A farmácia do Filhinho.


     Nas praças – sem jardins – não raro muares pastavam abusivamente na viçosa vegetação que ali crescia.

     Se as residências mantinham remanescentes calçadas de rústicas pedras facetadas, que lhe protegiam os alicerces da fachada, por elas ninguém transitava. Desaforado aquele que ousasse subir e por elas transitar, desvendando o interior das casas, pelas janelas de pouca altura e costumeiramente abertas!

    As edificações, poucas apresentavam satisfatório estado de conservação. Na maioria dos casarões antigos de largos beirais e vergas arqueadas, o descolorido das fachadas, os desvãos dos vidros semi quebrados – alguns até com vistosos arbustos vicejando no telhado limoso e enegrecido -, demonstravam a decadência econômica a que chegou grande parte da população.

   Poucos sobradões ainda teimavam em perdurar. Além do Sobradão do Porto, tão citado e decantado por sua imponência e notoriedade histórica, havia dois outros no largo da Matriz, em boas condições, onde residiam, num, o cel. Francisco Gonçalves Pereira – um dos argentários de antanho e ex-deputado provincial – e sua filha solteira d. Aninha e, no outro, d. Aninha Vitorino, já velhinha, viúva do comendador Joaquim Vicente da Cunha. Esses dois imponentes sobradões, já necessitando de obras de conservação, foram demolidos para darem lugar ao prédio do atual Cine Iperoig.

   

Observação 1: o citado livro foi publicado em 1989. Hoje não existe mais o Cine Iperoig que tantas vezes frequentei. Tudo foi demolido, dando lugar ao Teatro Municipal.


Observação 2: Na fotografia, no andar do sótão, lá no alto,  uma prova de que havia detalhes (vasos, estátuas) enfeitando as colunas. ornamentando o casarão do comerciante Balthazar Fortes. Onde foram parar?

sábado, 16 de dezembro de 2023

A PREMIAÇÃO

  

Antologia 2023 - Foto: Paulo Zumbi

      Dia de muito calor, turistas afluem às praias. De vez em quando o trânsito quase dorme. Somente as motos e bicicletas parecem não se importar. É dia de premiação dos concursos de poesia, contos, textos de teatro e crônicas. Me apresso porque sei que às 18:00 terá início a cerimônia.  O modesto espaço do Ateneu Ubatubense, da Biblioteca Pública Municipal, está repleto. Quem chegou depois de mim precisou assistir de mais longe ou se espremer. Sorte que tudo estava muito arejado, com ventiladores dando conta do recado. O cerimonial foi conduzido por uma pessoa que muito admiro: Zeca. O diretor presidente da Fundart e o responsável pelo acervo local se destacaram. Zumbi, o fotógrafo, filho da estimada Dona Cida, que conheci ainda adolescente nas Toninhas, está a postos. Dele recebi os exemplares da Antologia 2023. Gratidão, Paulo Zumbi!

      Cinco modalidades fazem parte das premiações nos seguintes concursos: Poesia, Poesia Estudantil, Contos, Texto de Teatro e Crônicas. Poucos dali me conheciam, mas me senti orgulhoso ao ser chamado para entregar os prêmios do 9º Concurso de Crônicas "Professor José Ronaldo dos Santos". A grande novidade dos concursos foi o expressivo número de participantes da Penitenciária "Dr. José Augusto César Salgado" (Tremembé II), com quatro premiações, sendo um deles uma crônica encantadora (Crônica de uma época), de autoria de Ronaldo dos Santos Ferreira. Pena que os autores não puderam comparecer às premiações. A minha sugestão é que o estabelecimento penal promova em Tremembé uma cerimônia a fim de valorizá-los, de atrair mais gente para a literatura.  O diretor presidente (Luiz Antônio Bischof) poderia ir ao ato, agradecer por nós aos que enviaram seus textos, parabenizar os premiados.  Naquele momento, com muita gente contente, pensei em Malcom X numa penitenciária dos Estados Unidos, no século passado, encabeçando um movimento para montar bibliotecas, apresentar a literatura aos detentos daquela terra. Agora, o mais importante: agradeço às professoras e professores que incentivaram os discentes  a participarem. Vejo poucos nomes de escolas diante das tantas do nosso município. Certamente que nas edições vindouras haverá maior empenho na divulgação e participação. Grande destaque foi o empenho do corpo docente da E. M. Professora Maria Salete Nepumoceno do Amaral, do Perequê-açu. Na categoria poesia estudantil - 1º ao 5º ano -, os três selecionados  saíram deste estabelecimento de ensino. Parabéns a quem fez a motivação e garantiram Iulla, Isaac e Maria Clara nas premiações. Como sempre, deixo aqui os meus agradecimentos, sobretudo a essa juventude que desperta para a literatura. Agradeço também aos pais, mães, amigos, escolas, professoras etc. que apostam no poder da leitura, das palavras que edificarão mentalidades livres e libertadoras. Sou grato, sobretudo, ao pessoal que, há quase quarenta anos, lançou as bases da Fundação de Arte e Cultura de Ubatuba. Assim chegamos à conclusão deste fundamental evento citando uma frase do André Telucazu Kondo, um veterano participante dos nossos concursos: "...Se o corpo tinha fome, a alma sentia-se saciada".

sexta-feira, 15 de dezembro de 2023

LARANJA-CRAVO

 

Cará moela, maçã e especula (teta de vaca) - (Arquivo JRS)


          Laranja-cravo é mexerica. Eu adoro! Quem não gosta?

          Antigamente, por todos os terreiros, pelos caminhos, se encontravam os pés de laranja-cravo, as mexeriqueiras. Era a preferida nossa porque é gostosa e fácil de retirar a casca. Ela se desprende muito bem  dos gomos. Essa laranja é rica em sumo e odor, denuncia quem acabou de saborear uma delas. O meu bisavô (Nhonhô Armiro) cultivava um lindo pé entre a sua casa e a praia (da Fortaleza). Eu e o mano Mingo éramos os que mais cobiçavam aquelas frutas conforme iam amarelando. Na época certa, por volta dos meses de abril/maio, não resistíamos a pegar algumas e saboreá-las no jundu, debaixo de uma amendoeira, olhando o mar. O Nhonhô percebia as pequenas pegadas e sentia o cheiro quando, retornando para casa, tínhamos que passar pelo seu terreiro. Ele dava uma leve bronca, dizia que era para esperar que amadurecessem mais. "Escute aqui, criançada: carece de deixá as laranja devezá. Agora é que vai amarelando, ficará boa, bem docinha. Tem que esperá madurecê primeiro. Agora vão lá na bica lavá bem as mão senão fica manchada depois de pegá sol, empreteja a pele". 

       Além da laranja-cravo (que hoje chamamos mais de mexerica carioca), pelas terras daquele tempo eu conheci a laranja-saúde (lima), a laranja-da-terra,  a laranja-da-China, a laranja seleta etc. Hoje não é comum enxergar nenhuma laranjeira em quintal algum, menos ainda pelos caminhos.  Só se encontram nos mercados, onde temos de pagar caro, sempre sabendo que elas trazem uma carga de agrotóxicos. Onde vamos parar?

     Eu, talvez devido o histórico da minha infância, estou sempre selecionando sementes de mexericas para produzir mudas. Sei que ainda comerei muitas dessas laranjas e presentearei as pessoas queridas com inigualável iguaria. Ah! Também não abro mão de cultivar mandioca mansa (mandioca doce) própria para ser comida as raízes (cozidas ou assadas). A outra, a mandioca brava, usada para fazer farinha, eu deixo para quem tenha os apetrechos adequados a tal técnica. Mandioca branca é uma variedade de mandioca brava. O saudoso Antônio Clemente me explicou um dia, lá no Sertão do Pasto Grande, no terreiro do Mané Grande: "Mandioca branca não presta pra comê. Só faz farinha. A nossa gente chama ela de mata-fome"

       

domingo, 10 de dezembro de 2023

VIVA A VIDA!

   


       Viva a vida!

   Viva a vida da querida Gláucia,  minha esposa!

     Hoje é aniversário da minha amada companheira. Parece que foi ontem que nos conhecemos, mas lá se vão 30 anos desde aqueles momentos nas assembleias do professorado paulista lutando por melhores condições de trabalho. Assim, nesse contexto, brotou  a nossa amizade, o nosso amor. Depois veio o casamento, nasceram Maria,  Estevan e tudo de maravilhoso que realizamos juntos. 

     Hoje é aniversário da minha Gal. Que muitos dias felizes marquem nossa caminhada e a família que formamos a partir do compromisso de vida na utopia de um mundo melhor.

    Parabéns para a minha querida! 

sábado, 9 de dezembro de 2023

O RIACHO DA LITERATURA

 


     "Quero cada vez mais aprender a ver como belo aquilo que é necessário nas coisas: assim me tornarei um daqueles que fazem belas coisas". (Nietzsche)


     Hoje, já passando dos sessenta anos, eu me definiria pelo  mesmo objetivo do filósofo citado acima. Persigo essa meta de vida se valendo da minha herança cultural e das habilidades que sigo cultivando.

     Dentre essas habilidades se encontram gostar de histórias e escrever.  É o meu riacho. Alguns cadernos da minha adolescência resistiram ao tempo, sobretudo no mofo que predomina em Ubatuba. Neles eu anotava momentos,  acontecimentos,  causos, poemas etc. Assim surgiram as crônicas com muito de histórias reais e um pouco de fantasias. Com este gênero literário eu contribui nos periódicos virtuais, inclusive usando pseudônimos. Por anos enviei meus textos semanais ao jornal  A  CIDADE. Até que chegou um dia em que fui chamado à FUNDART onde recebi uma feliz notícia:  seria criado um concurso de crônicas cujo homenageado seria eu. Fiquei meio sem jeito, disse que havia outros nomes mais significativos, mas não teve saída quando argumentaram dizendo assim: "O seu nome obteve a unanimidade". Pedi um tempo para pensar, conversei com a esposa. Dela saiu a fala decisiva: "Eu acho que você deveria aceitar. É um reconhecimento do seu talento e da contribuição das suas crônicas para a cidade". Assim nasceu o Concurso de Crônicas Professor José Ronaldo dos Santos. Neste ano está na nona edição.  No próximo dia 15, às 18 horas, acontecerá as premiações na Biblioteca Pública (Ateneu Ubatubense). 

       Muito me honra todas as pessoas participantes de todas as edições.  Muito me honra estar ao lado do Seo Filhinho, da Dona Idalina Graça e da Tia Helô. Longa vida aos concursos! Parabéns ao pessoal que valoriza a cultura. É ela que faz a interação humana no mundo. É ela que potencializa nossas vidas. 

    Encerro esta com um fragmento musical de Caetano Veloso


Eu vi o menino correndo,

Eu vi o tempo brincando ao redor do caminho daquele menino.

Eu pus os meus pés no riacho e acho que nunca os tirei,   o sol ainda brilha na estrada e eu nunca passei.


       

quarta-feira, 6 de dezembro de 2023

ENFRENTANDO MORRO

 

Sapo no morro - Arquivo JRS 

    No baixio há sulcos endurecidos. No morro me canso logo. Penso no Velho "Ou mais, viva!", cujo nome era Nicolau Montanaro, conhecido também pela charanga que amolava a paciência. "Num morro desse ele não viveria". "Não mesmo!  Mas faria brotar água, nascer vida! ". Eu mesmo me rebato.

      Pernas endurecidas, pontas dos dedos que não se dobravam, um teimoso andar bamboleante. Na charanga o Velho "O mais, viva!" morava juntamente com seus apetrechos de perfurar poços. Ah! Tinha um cachorro também!  Repetia costumeiramente que estivera na guerra, parecendo um soldado estropiado. Olhava distante enquanto sorvia um aperitivo. Se equilibrava  pelos caminhos,  só se agachava para pegar uma flor e entregar a qualquer criança que encontrasse adiante.

     Hoje, bem cansado, subindo um morro desse,  penso: "Há tempo deve ter morrido Nicolau Montanaro, o Velho "Ou mais, viva!" da minha adolescência. 

segunda-feira, 4 de dezembro de 2023

RAÍZES

Olhando o tempo - Arquivo JRS 

     Santiago Bernardes vasculha suas lembranças e nos conta um pouco mais de suas raízes.  Valeu, Santi!

Meu bisavô foi poeta. 


Num tempo muito antigo. Que vou aos poucos recuperando vestígios. Hoje, perto do mar, chega às minhas mãos um livro que ele escreveu.  Na juventude. Ele que nasceu em 1854, morreu em 1931, há quase cem anos e tem uma filha ainda viva, com 106 anos! Minha tia avó. Uma travessia de três séculos! 

Poemas que o tempo preservou em folhas amarelecidas, mas que em alguma mesa em noites de velas, a mão em silêncio escreveu. Há mais de cem anos. Há mais de cem anos a poesia corre nas veias, que tem sangue de muitos povos e histórias de muitos lugares. Chão de mar caiçara, chão de terra caipira.

Escrever, a que será que se destina?!   

Ficam os livros, as palavras ficam, nós passamos e depois de muitos anos quem fica pensando ao ler, imaginando quem foi que escreveu tudo aquilo?

O velho bisavô pertenceu a um mundo distante. De fazendas de café, lutas entre monarquia, república e abolicionistas. Fez coisas de seu tempo e fez outras que pertenciam a um tempo futuro.

Escreveu. Livros, poemas, artigos, peças, jornais, viajou, construiu rede de abastecimento de água e saneamento em cidades enquanto brigavam contra vacinas, (sim, já naquele tempo). Quase conseguiu trazer o trem de ferro para Ubatuba. Fez política, filhos, filhas.  Lutou pelas coisas que achava justas. Venceu, perdeu! Como é da vida ser. 

Quando eu era menino um dia achei um retrato num recorte de jornal, os mesmos olhos, meus e de minha mãe. Quis encontrá-lo um dia, mas somos de tempos muito distantes. Ficou o mistério e as histórias que minha mãe contava enquanto costurava na velha máquina em frente à janela. 

O sol passou tanto em frente à moldura dessa janela que um dia crescemos. Minha mãe costurou seu tempo no mundo e juntou-se ao bisavô.

Hoje, em frente ao mar da terra de minha bisavó caiçara, refletindo lonjuras do tempo e do mundo. Tão pequenos que somos como areia nas páginas de um livro no vento.  Escrevo, que escrever é herança, legado que deixarei também um dia.

Eu penso no velho bisavô que não conheci no tempo, mas que vou descobrindo aos poucos, um mundo. A nossa vida é feita da vida de muitos que nos antecederam, assim como as lutas.

MÃE E FILHOS

  


      A mãe estava exaurida, cuidando das três crias. O pai? Ninguém sabe quem é.  Uma varanda servia de abrigo aos sofredores. Sempre haverá gente a falar mal, querer reprimir, expulsá-los para os caminhos. Certa está a minha companheira ao desmascarar as hipocrisias: "Se eu não puder ajudar esses coitados, eu não vou atirar pedras. A vida já os massacra demais. Ninguém escolhe essas condições porque acha bom".  Viver ao relento, depender da misericórdia dos outros, dos restos encontrados jogados pelos caminhos. Sofrer ainda mais com as condições climáticas nem sempre suportáveis sem ao menos um papelão para se esquentar. Sempre estou escutando comentários favoráveis à morte dessas criaturas marginalizadas. Me enche o coração quando alguém oferece comida, remédio etc.

          Olhando aquela mãe,  vi o seu cansaço, mas cuidando da melhor forma dos seus pequenos: com paciência,  raramente se separando deles. Apenas a fome a obriga a umas escapadas. Me pergunto sobre o destino de tais criaturas. Como sobreviverão neste mundo? Quais comportamentos desenvolverão para conseguirem sobreviver? 

        Cada um de nós é o resultado de lutas por sobrevivência ao longo do tempo. Imagino os primórdios, quando a fome ditava comportamentos de forma acentuada, resultando em mortes. É tão diferente de hoje? Também acredito que nesse tempo surgiu a solidariedade, a compaixão para com os mais fracos, com deficiências físicas etc. Surge a moral, se desenvolve a ética a respeito das diferenças, das diversidades,  das fragilidade  em todos os aspectos. Paro de escrever. Escuto a chuva. Sei que lá fora,  em alguma varanda, uma mãe se abriga com suas crias. Conforme escreveu alguém,  "Está aberto o caminho para novas versões e refinamentos da hipótese da alma".

sexta-feira, 1 de dezembro de 2023

O GALO NÃO CANTARÁ

Observatório - Brazópolis 2023 - Arquivo JRS


      "Tá chegando o tempo de Reisado, né Zé? Só que eu tenho uma péssima notícia para você:  no Dia dos Santos Reis não vai ter galo cantando".  Quem me deu esta informação foi o amigo João.  "Por quê?". Fiquei atento à resposta. Eu soube imediatamente que ele se referia ao conhecido imitador de galo (cantando no momento certo diante do presépio da igreja).  Faz parte da tradição caiçara, no dia 6 de janeiro de cada ano, prestigiar os grupos que se apresentam e ouvir o galo cantar. "O galo não vai cantar porque o moço não é mais católico.  Agora segue uma religião que não aprova isso". Me surpreendi. Não teve como não dizer: "Ó dó, né? Mas foi escolha dele. Deve estar feliz". "Sim" - continuou o João - "Agora ele vive enfurnado em casa, estudando a Bíblia e os ensinos da igreja em grupos virtuais. Não participa de nada, parece até que tá adoecendo. Eu lamento muito, mas digo que é um atraso de vida deixar de participar das atividades folclóricas, das manifestações populares; deixar de lado tantas amizades de alegres eventos. Isso é doença, Zé".  "Pode ser mesmo. Assim vai entrando nessa moral de rebanho, aceitando coisas absurdas, alimentando sistemas cruéis. É o que chamamos de alienação. Muitos grupos, sobretudo religiosos, vão deixando as pessoas nessa situação.  Na verdade, se aproveitam delas. São os seguidores fiéis que sustentam essas organizações (que se tornam potências dominadoras de mentes e corpos). É uma pena, amigo. Pior é não ter galo cantando na noite dos  Santos Reis. Fazer o quê, né?",  Que tal refletir sobre as relações de dominação que as falas, os discursos. escondem?"

quinta-feira, 30 de novembro de 2023

FANDANGO CAIÇARA

 


        

Gente que faz - Arquivo JRS

        17 de novembro de 2019. O dia amanheceu lindo, com uma claridade esfuziante. É dia de pitirão. A caiçarada e os novos caiçaras, adeptos da nossa cultura, foram convidados para o embarreamento do Rancho Caiçara, na praia do Perequê-açu. Bem-vindo, pessoal! 


        Cheguei cedo, mas o Rochinha e o Tião já começavam a transportar o barro, a ocupar o espaço de masseira. Logo foi chegando todo o nosso pessoal, homens, mulheres e crianças. Molhar barro, sovar bem com os pés, molhar, sovar de novo e perceber o ponto ideal para embarrear. É quando todo mundo mete a mão no barro para preencher os vãos do pau a pique. Que festa! As histórias e os causos não podem faltar em ocasião assim. No mesmo ritmo da odisseia do barro, algumas pessoas vão preparando o de comê. Até batata-doce foi assada junto com as carnes. A consertada era farta. Da minha parte, na garrafa de azeite, deixei a pinga com cambuci, em homenagem a um grande líder. A Roberto e Ostinho, recomendei ao partir: “Cuidem da ‘criança’, viu!”.


           Pitirão é o nome original de mutirão. A origem é tupinambá: pitirum; quando as pessoas se juntam para um adjutório, para um trabalho em comunhão. O pitirão que mais marcou a minha vida foi na nossa casa, no morro da Fortaleza. Lá, onde debaixo da aroeira do terreiro, nós avistávamos todo o mar da baía e de mais longe, onde os navios passavam soltando grossos rolos de fumaça. Naquele dia distante, veio gente até da praia Grande do Bonete, mostra da grande irmandade caiçara. Tal como se repetiu no Rancho Caiçara, logo a grande tarefa estava pronta. Antes mesmo do fim já tinha peixe assado, café, farinha e cachaça. E muitas histórias, lógico! 

      Hoje, quatro anos depois daquele dia do embarreamento, ao ler o anúncio da 6ª Festa do Fandango Caiçara, fico muito feliz que seja no Rancho Caiçara, cujo nome homenageia a saudosa Dona Antônia dos Santos Mariano. Ah! Tem muitas mãos envolvidas naquele espaço, naquela edificação! Parabéns a todas e todos que sustentam a cultura caiçara!

segunda-feira, 27 de novembro de 2023

RIO ABAIXO

Chão de barro - Arquivo JRS


Um homem inútil dobra a esquina,

Tenta se vender como honesto.

Parece ter se esquecido das tantas maldades:

Destruiu árvores da nossa calçada,

Depositou lixo mais além, 

Saqueou áreas públicas,

Grilou terras, 

Sujou rios,

Se aproveitou da fé alheia, 

Deu calote em serviçais.


O inútil segue adiante.

Não assume as tantas maldades.


Agora anda lentamente, 

Mas é o mesmo de antigamente. 

domingo, 26 de novembro de 2023

PESCARIA EM ESPERA

Arte em casa - Arquivo JRS


"O cardume grande tá no ilhote".

"Passando o vento ele encosta".

"Só precisa paciência pra esperar ".

"A rede tá embarcada ".

"A canoa descansa no rolo ".

Eu madornava , mas escutava tudo.  Me arrastei até ali perto das duas da manhã. Dei de ombros quando ouvi o assobio de quem tava de espia.  Pulei ao toque do buzo (que era um velho chifre de boi). Só um dos camaradas não acordou.  O mestre da rede não se importou.  Disse correndo ao lagamar:

"Deixa esse porquera aí. Depressa, depressa".



sexta-feira, 24 de novembro de 2023

ARAUCÁRIAS E DINASTIAS

Araucárias na Barreira 


Na beira da estrada,

Na densa mata ao longe,

Lá estão as araucárias 

Pelos milhares de anos

Que esta Terra passa.

Perfiladas, dispersas,

Em grupos,  solitárias...

Erguem os braços ao céu, 

Acolhem e dão adeus.

Enquanto escrevo,

Penso nos meus.

quarta-feira, 22 de novembro de 2023

CORROMPIDOS

 


Um trabalho surgindo na telha - Arquivo JRS



       Segundo Aristóteles, um filósofo que fez muitas reflexões em Atenas há quase 2500 anos, “corrupção é uma mudança que vai de algo ao não-ser desse algo”. Pode ser: “absoluta quando vai da substância ao não-ser da substância, específica quando vai para a especificação oposta”.


      Escolhi o pensador acima para debater com um colega que reagiu ofendido porque eu afirmei que os pobres que continuam apoiando o reles ladrão de joias – para dizer o mínimo! – foram corrompidos. Genericamente falando, pratica a corrupção quem se aproveita de uma posição dominante para levar vantagem. Mas, conforme a definição primeira, é uma mudança que vai de algo ao não-ser desse algo.  Assim, pobres que abraçam ideais de ricos são corrompidos. Pobres que dependem do Sistema Único de Saúde, dos medicamentos da Farmácia Popular, dos direitos trabalhistas e das tantas conquistas sociais, mas que votam em candidatos que declaradamente são contra esses princípios são corrompidos. Trata-se do supliciado adulando, fomentando o seu algoz. Não importa sob que meios isso tudo aconteceu, mas a corrupção é notória. “Ah! Mas eles (pobres) foram persuadidos!”, exclamou o colega. Ser persuadido implica em acreditar que vai levar vantagem, lucrar alguma coisa, ser aceito num grupo etc., mesmo que não queiramos admitir. Vamos pelo emocional. Isto é o que geralmente ocorre, parecendo normal.

      Pois é. Atualmente, parece que há uma renúncia ao exercício pensante, à autonomia de pensamento. E volto ao pensador antigo escrevendo sobre a retórica, uma espécie de “metodologia do persuadir”. É assim que chega-se aos argumentos de que homens procuram convencer outros homens. Ela (retórica) não tem a função de ensinar em torno da verdade. Esta função é própria da filosofia, das ciências e artes. Mas por que ela faz tanto sucesso, “vira a cabeça de tanta gente”, acaba sendo prejudicial sobretudo aos pobres? É porque ela identifica e parte das estruturas fundamentais, cultiva os elementos que se apresentam aceitáveis para a maioria das pessoas.

     Entinema, um tipo de raciocínio retórico explícito na História da Filosofia, por Reale e Antiseri, “é um silogismo que parte de premissas prováveis (de convicções comuns e não de princípios primeiros), sendo conciso e não desenvolvido nas várias passagens”. Portanto, as convicções comuns podem ter nada de verdadeiro, mas apenas conterem ilusões. É pela emoção, pelos sentimentos que se torna fácil corromper as pessoas. Portanto, se nos vigiarmos, fica mais difícil de sermos corrompidos, pois a justa medida passa a ser a nossa referência ética. Os que vivem às custas do pobres temem isto: de que a justiça seja a mais importante das virtudes.  Bem nos lembra os autores citados de um provérbio antigo: “Na justiça está abarcada toda virtude”. Por isso que pensar é perigoso.


terça-feira, 21 de novembro de 2023

A CASA DA BENZEDEIRA

 

Casa da benzedeira - (Arquivo Joban)


Fabiano e Petiá: um adorável casal  - (Arquivo Joban)



      SOLAR DOS OLIVEIRAS OU PATRIMONIO HISTÓRICO DA PETIÁ

         Minha tia Petronília era muito amada, conhecida e admirada por todos os caiçaras que a procuravam para curar seus males onde a medicina da redondeza não conseguia ou não tinha. Era conhecida como D. Petiá, ela residia nessa casa linda que o tempo envelheceu, que será reformada. Esse patrimônio histórico é a segunda casa mais antiga do bairro, só perde para o antigo armazém do Maciel. Nesta casa muitos vinham com lágrimas nos olhos e com os corações esperançosos e saiam com sorrisos nos lábios. Dona Petiá, essa sensível caiçara que espalhou na vida filhos legítimos nascidos do seu ventre e filhos adotados nascidos do seu lindo coração, deixando em cada um de nós a saudades daquela que não mediu esforços para alegrar a todos nós, merece nossa eterna memória.


         O amigo João Batista Antunes (Joban) fez muito bem em registrar um pouco de seus familiares, de sua gente da Pedra Branca, na praia da Enseada. Nos alegra com a notícia da reforma por acontecer na casa da benzedeira.

      Dona Petiá era benzedeira muito estimada. Eu morava no bairro próximo, mas circulava muito além da vizinhança, enxergava a movimentação na Pedra Branca, onde até hoje mora o casal Joban/Andrea e tantos outros conhecidos da minha infância.

    Benzedeiras e benzedeiros se distribuíam por vários bairros/praias. No Sapê, a  tia Livina vivia atendendo a todos. Na Fortaleza, benzer era o trabalho da tia Aninha. No Corcovado, tio Francolino era o benzedor. No Itaguá, dona Josefa atendia desde a os parentes da Ponta Grossa até o centro da cidade. Na Estufa, Seo Manoel Mariano, nascido no Canto da Paciência, atendia em sua pobre casa os moradores do entorno. Na Sesmaria da Estufa, João Alexandre, natural do Sertão do Ubatumirim, era a referência.  (Até ganhou nome de escola municipal). Toda essa gente, essa caiçarada de outras gerações, sensível às dores dos pobres, além de benzer e rezar, também recomendava as ervas que conheciam. Corpos e almas eram aliviadas pela fé e pelos conhecimentos dos nossos antigos.

     Viva o sincretismo religioso da nossa gente!




segunda-feira, 20 de novembro de 2023

DOAR SANGUE

 

Imagem atualizada (Arquivo JRS)


       O amigo Ernesto me convidou para um encontro em torno do tema Doação de Sangue. Não pude comparecer, mas me senti na obrigação de dar a minha contribuição através de um texto, contando a minha história.  Espero que seja importante para motivar discussões, sobretudo agora em que tramita em Brasília um projeto que é favorável aos mercenários do sangue. 


      Meu nome é José Ronaldo dos Santos. Tenho sessenta e um anos.  Nasci em Ubatuba, na praia do Sapê.    Sou professor. Agora estou aposentado. No começo deste ano (2023) fui doar normalmente sangue no hemocentro de Taubaté. Durante o preenchimento da ficha que antecede a doação, a senhora que me atendeu perguntou há quantos anos eu era doador. “Sou doador desde 1982, quando um colega estava desesperado para conseguir sangue para a mãe internada. De  lá para cá eu nunca parei. Teve ano que eu doei até quatro vezes, mas a média é de duas vezes ao ano. Portanto, completou quarenta e um anos que sou doador”. Mediante o meu histórico, fui convidado para uma entrevista. Gravei um depoimento a ser divulgado em nível nacional para servir num trabalho de conscientização da importância de doar sangue, de ser doador.

     No início dessa carreira de doador de sangue, eu tinha a facilidade de me dirigir à Santa Casa de Ubatuba e ali mesmo me sentir realizado por tal ato. Quem me atendia era a enfermeira Cecília. Depois, por volta do ano 2000, o banco de sangue da  nossa cidade foi suprimida. Deve ter muitos motivos, mas nunca me explicaram. Tudo me faz crer que sangue se tornou quase um monopólio. De vez em quando havia uma campanha, mas era difícil ajustar o meu corre-corre com as datas. Até em Caraguatatuba eu me desloquei: doei nos bombeiros, no quartel da polícia etc., mas o mais comum foi doar em outras cidades mais distantes, quando precisava viajar para resolver outros negócios. Assim, doei em Santo André, no Hospital das Clínicas (na capital paulista), nos hemocentros de Juiz de Fora, de Taubaté, do hospital de São José dos Campos etc. Lamento muito porque, caso houvesse ainda um centro de doação em nossa cidade, os doadores e doadoras seriam muitos. Quando eu comecei era comum ter muita gente a cada oportunidade. Muitas amizades que tenho ainda são daquela época, quando estávamos na espera para deixar nossa contribuição. (Nota: quase todas as vezes eu doo espontaneamente, sem ter alguém específico para receber. Acredito que alguém vai se beneficiar do meu ato, do meu sangue. Fico sempre contente por essa mínima ação).

     Quando eu assisto na televisão campanhas para ser doador, denuncio que é uma mentira. Caso quisessem mesmo ter mais doadores, as cidades teriam seus bancos de sangue, não precisaríamos viajar para isso. Escrevi a responsáveis sobre isso, mas até hoje não me deram respostas. Logo estarei completando sessenta e dois anos, mas espero continuar doando até os sessenta e nove. Sei que é muito importante doar sangue, salvar vidas. Também é importante doar órgãos. Imagino que muitas vidas estão aí devido aos meus 450 ml que deixa o meu corpo em dez minutos duas ou três vezes ao ano. Eu me realizo doando sangue!

       

         Parabéns ao Ernesto pela cobertura jornalística. Parabéns a ao pessoal que participou do 2º Encontro Anual de Doadores de Sangue. São iniciativas assim que sensibilizam mais gente, nos fortalecem, nos unem na luta para não deixar que o sangue e seus derivados se tornem fontes de lucros para alguns, excluindo de essenciais tratamentos os pobres, desmotivando o importante ato de doar sangue. 


domingo, 19 de novembro de 2023

ARTELÃ

 

Erva baleeira no quintal de casa - Arquivo JRS


     O povo caiçara sempre cultivou no cisqueiro uma pequena horta, geralmente cercada por varas de bambu e pano de rede velha. Na horta dos caiçaras tinha de tudo um pouco: coentro, cebolinha, couve, tomate, ervas medicinais etc. Conforme os sintomas, logo chegava uma mãozada de ervas. “Vai lá, minino. Pega um tanto de artelã de bicha, do miúdo. Esse otro tá assim de lombriga. Se não cuidá, morre a quaquer hora. Você viu o que aconteceu com o Mané do Bagre: nunca queria tomá chá até que quase se foi de um ataque de bicha. Comeu uma jaca em jejum, deu um gorpe nas bicha, se enrolou tudo dentro dele. Morreu aquilo tudo ali mesmo. Tiveram de corrê pra Santa Casa; cortaram a barriga dele, tava tudo entupido. Ia morrê se não fosse o dotô De Luca”. Assim eu fui escutando histórias, vivendo experiências e aprendendo das ervas, das suas propriedades. Sei nomear um monte delas. Outro hortelã que era parte do nosso dia a dia era o hortelã gordo, que parece boldo. Suas folhas ásperas, graúdas, era muito apreciadas no tempero de carne cozida, sobretudo aves (galinha, pato, jacu...). Quem nunca comeu uma galinha ensopada condimentada com hortelã gordo? Vovô Armiro não comia se não tivesse um caldo desse fervendo para escaldar a farinha de mandioca. Dizia diante do prato fumegante: “Não sei como essa gente vive sem o prazer de um escardado deste a cada dia!”.


    Dias atrás, estando no espaço da propriedade da Sandra e Godói, umas plantinhas espontâneas do terreiro me chamaram a atenção. Fui explicando: “Esta é a erva de Santa Maria. Está carregada de sementes. Minha avó pegava banana madura, abria ao meio, enchia dessas sementes e assava no fogão à lenha. Depois a gente comia, servia para combater vermes. Era uma delícia! Essa outra, logo ali, é erva de bicho, dá muito em áreas úmidas. Usava-se nos banhos de assento, curava hemorroidas, ajudava na circulação sanguínea. Aquela que está na cerca é guaco. Quem nunca tomou um xarope daquele cipó? Ainda hoje, de vez em quando, a minha Gal faz uma panelada com guaco, gengibre, alho e açúcar. Num instante a tosse vai embora, o catarro sai do nosso corpo. Estão vendo aquela árvore? É carobinha, da roxa. Suas folhas eram usadas para curar feridas. Esse matinho que o Godói acabou de carpir é sete sangrias, um depurativo sanguíneo”.  Após uns instantes, a Sandra me perguntou: “Com quem você aprendeu tudo isso?”. “Com os mais velhos, com minhas avós, com meus pais. A gente não sobreviveria se não aprendesse as lições dos mais antigos, sobretudo aquela que veio dos indígenas. Por isso fico indignado quando vejo tantas perseguições às diversas etnias que ainda existem no território brasileiro. É isso um dos aspectos do fascismo. A miséria cultural grassa em nosso meio, entre meus parentes, inclusive caiçaras, descendentes do povo tupinambá. Continuam admirando um reles ladrão de joias - para dizer o mínimo". Para concluir: a Sandra  disse que fará uma estufa só com plantas medicinais. Eu me prontifiquei a ajudar no que puder. Os saberes dos antigos não podem morrer.

sexta-feira, 17 de novembro de 2023

RIBEIRÃO DO TEMPO

 

Casal de tangarás - Arte da prima Giovana


      Santiago, da janela, olhando o tempo, dedilha a viola, escreve e desfruta a natureza enquanto a panela está cozinhando uma das nossas iguarias. Nesse ambiente nasce Ribeirão do tempo. Escolhi os tangarás porque eles abundam pelas matas, simbolizam a nossa terra. Gratidão à Gi e ao Santi, nossos artistas. Abraços.

 

Cheiro de terra molhada

chuva que cai no quintal

quando vai findando a tarde

e o sol longe se vai

Bate no peito uma saudade

da velha vila rural

Canteiros de flores

que a mãe cuidava

e as roupas brancas no varal

parece que acenavam

um longo adeus aos barcos

No vento azul

que de mansinho

trazia a noite para o terreiro

onde a viola e o violeiro

cantavam o mundo

as histórias e os mistérios do sertão.

Café no fogão de lenha

paçoca no pilão.

A lembrança que incendeia

a fogueira e acende o lampião

Os dias passavam lentos

mas não tinha pressa não

Quando menos se apercebe

já passou um ribeirão

pelo arco da ponte

de tantos anos vividos

marcados no tic tac

do velho relógio

da estação

Mas nas águas da memória ficaram

A mãe e o pai.

Não volta mais

aquele sonho e aquele mundo

ficou pra trás.

Parece que um dia na infância

eu mergulhei no ribeirão do tempo

e ao sair

já não era mais menino e cresci

e ao redor cresceu o mundo também

e muitas vezes eu me perdi

na imensidão da vida e da ilusão

E as coisas que eu aprendi

não sei se é muito

não sei se é pouco

mas é o que tenho até aqui

Nesse caminho

eu traduzi toda distância, toda ausência, toda saudade

na melodia de uma cadência

na solidão da  viola

na beira do mar