domingo, 19 de novembro de 2023

ARTELÃ

 

Erva baleeira no quintal de casa - Arquivo JRS


     O povo caiçara sempre cultivou no cisqueiro uma pequena horta, geralmente cercada por varas de bambu e pano de rede velha. Na horta dos caiçaras tinha de tudo um pouco: coentro, cebolinha, couve, tomate, ervas medicinais etc. Conforme os sintomas, logo chegava uma mãozada de ervas. “Vai lá, minino. Pega um tanto de artelã de bicha, do miúdo. Esse otro tá assim de lombriga. Se não cuidá, morre a quaquer hora. Você viu o que aconteceu com o Mané do Bagre: nunca queria tomá chá até que quase se foi de um ataque de bicha. Comeu uma jaca em jejum, deu um gorpe nas bicha, se enrolou tudo dentro dele. Morreu aquilo tudo ali mesmo. Tiveram de corrê pra Santa Casa; cortaram a barriga dele, tava tudo entupido. Ia morrê se não fosse o dotô De Luca”. Assim eu fui escutando histórias, vivendo experiências e aprendendo das ervas, das suas propriedades. Sei nomear um monte delas. Outro hortelã que era parte do nosso dia a dia era o hortelã gordo, que parece boldo. Suas folhas ásperas, graúdas, era muito apreciadas no tempero de carne cozida, sobretudo aves (galinha, pato, jacu...). Quem nunca comeu uma galinha ensopada condimentada com hortelã gordo? Vovô Armiro não comia se não tivesse um caldo desse fervendo para escaldar a farinha de mandioca. Dizia diante do prato fumegante: “Não sei como essa gente vive sem o prazer de um escardado deste a cada dia!”.


    Dias atrás, estando no espaço da propriedade da Sandra e Godói, umas plantinhas espontâneas do terreiro me chamaram a atenção. Fui explicando: “Esta é a erva de Santa Maria. Está carregada de sementes. Minha avó pegava banana madura, abria ao meio, enchia dessas sementes e assava no fogão à lenha. Depois a gente comia, servia para combater vermes. Era uma delícia! Essa outra, logo ali, é erva de bicho, dá muito em áreas úmidas. Usava-se nos banhos de assento, curava hemorroidas, ajudava na circulação sanguínea. Aquela que está na cerca é guaco. Quem nunca tomou um xarope daquele cipó? Ainda hoje, de vez em quando, a minha Gal faz uma panelada com guaco, gengibre, alho e açúcar. Num instante a tosse vai embora, o catarro sai do nosso corpo. Estão vendo aquela árvore? É carobinha, da roxa. Suas folhas eram usadas para curar feridas. Esse matinho que o Godói acabou de carpir é sete sangrias, um depurativo sanguíneo”.  Após uns instantes, a Sandra me perguntou: “Com quem você aprendeu tudo isso?”. “Com os mais velhos, com minhas avós, com meus pais. A gente não sobreviveria se não aprendesse as lições dos mais antigos, sobretudo aquela que veio dos indígenas. Por isso fico indignado quando vejo tantas perseguições às diversas etnias que ainda existem no território brasileiro. É isso um dos aspectos do fascismo. A miséria cultural grassa em nosso meio, entre meus parentes, inclusive caiçaras, descendentes do povo tupinambá. Continuam admirando um reles ladrão de joias - para dizer o mínimo". Para concluir: a Sandra  disse que fará uma estufa só com plantas medicinais. Eu me prontifiquei a ajudar no que puder. Os saberes dos antigos não podem morrer.

3 comentários:

  1. Zé, em Iaçu, também se prefere o hortelã gordo para temperar a comida. Lá se chama hortelã grosso em oposição ao hortalã miúdo.
    Infelizmente, entre os meus parentes também há numerosos adeptos do fascista inominável.

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    1. Pois é, Jorge. Eu noto que muita gente até se esqueceu desses temperos. Agora é cômodo usar os prontos, do mercado. Os fascistas da família me revolta demais.

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