terça-feira, 19 de dezembro de 2023

TIÃO GIRÓ

 

Tião Giró explicando a técnica - Arquivo internet


Velho Giró e filho na praia da Enseada - Arquivo Família Prochaska

Imagem atualizada - Arquivo Elder



     Quando criança, morando na praia do Perequê-mirim, vez ou outra eu escutava o meu pai falando do Tião Giró. Pescavam juntos de vez em quando, conviviam por ali, na vizinha praia da Enseada. Devem ter compartilhado muitos causos, mas a grande admiração de papai era pelo domínio da técnica da pescaria de cerco que o amigo detinha. Mais tarde conheci a filha e o filho do Tião Giró; pude encontrá-lo vez ou outra em minhas andanças. Ainda adolescente tive o prazer de conviver com uns parentes deles (Sidney e Sônia Giraud); fiquei sabendo que gente com esse sobrenome era descendente de franceses que migraram para Ubatuba no século XIX. Com Elder, o filho, meu companheiro de trabalho, fui conhecer o seu lugar de moradia, bem defronte da capela Santa Rita. “Ah! Querida Enseada! Ah! Querida capela onde eu e meu pai fizemos o forro há décadas!”.  Respirei aquele entorno, me recordei de outros momentos vividos por ali, sobretudo das canoas abarrotadas de pescados e dos rostos de tantas pessoas que conviveram conosco. Outro dia, proseando com a Cristina Graça, ela deu notícias da tia (Zenaide) e do pai (Eduardinho): “Papai está com 92 anos. A tia Zenaide com 90. Certamente são os mais idosos do nosso  lugar”. Novamente pensei no Tião Giró, no nosso pessoal da Enseada.

      Tião Giró, nascido Sebastião Giraud Filho, em 1943, era filho de pescadores. O pai dele já trabalhava com a técnica dos cercos flutuantes trazida pelos japoneses por volta de 1920. Foi observando, trabalhando com o pai, que ele se tornou um especialista em cercos flutuantes. Aos 25 anos ele já era um mestre. Eu recomendo o texto OS ÚLTIMOS MESTRES REDEIROS DA ARTE DE PESCA DE CERCOS FLUTUANTES, dos pesquisadores Roberto William Von Seckendorff, Venâncio Guedes de Azevedo e Josef Karyj Martins.

    Fazer um cerco flutuante eficiente, garantir uma pescaria perfeita, não é fácil. Foram décadas de vivência que se encerraram agora, em dezembro último. “O pai do Hélder está muito mal, Zé”. Quem deu a notícia foi o meu primo Zé Roberto. No dia seguinte havia falecido esse último mestre da técnica de pesca de cerco porque ninguém se importou em aprender com ele. Assim, aquele modelo assimilado dos migrantes nipônicos, onde era possível escolher os peixes maiores e soltar os menores para que crescessem tende a desaparecer, assim como desaparecerão os enfrentamentos no mar dos caiçaras de outros tempos. Também vai depender de nós a memória de Tião Giró, Acácio, Zeca Paru, João Quintino, Dito da Mata, Elídio, Dito Funhanhado, João Vitório e muito mais gente que fundeavam cercos e tresmalhos  pelas nossas costeiras, sobretudo no entorno da Ilha Anchieta.

   Ao receber a triste notícia, citei para o Zé Roberto aquela frase do pensador africano Hampaté Bah, do Mali: “Quando morre um africano idoso, é como que se queimasse uma biblioteca”. Isto vale para todos os povos, para todas as culturas, inclusive à cultura caiçara. Agora, mais um esteio dessa nossa cultura nos deixou. Aquela gente fotografada bem criança, na década de 1940, está se despedindo de nós. Quem registrou, quem deixará para a história um pouco dessas “bibliotecas” que seguem nos deixando?

   Que cada um de nós, cada ser caiçara do presente, possa se apropriar dessas memórias que nos trouxeram até aqui. Muita força aos filhos, parentes e amigos que conviveram com ele. Gratidão ao Tião Giró pelo exemplo de vida!


Em tempo: O menino da foto é o Otacílio, irmão do Tião Giró. Gratidão ao Peter pela observação.


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