terça-feira, 31 de janeiro de 2012

Tempo de estudar


A minha turma em 1972 - Arquivo Valda

                       No ano de 1972, na beira da estrada, no Perequê-mirim, as professoras Valda e Olga tinham uma tarefa muito séria: transformar um grupo de caiçarinhas em ótimos estudantes, capazes de entender e transformar o mundo. 
                       Nós vinhamos de várias distâncias a pé: as filhas da Maria de Góis moravam na divisa da Enseada com a Toninhas; Jandira, Horácio e os filhos do Geraldo eram do Sertão (do Perequê-mirim). Muitos eram da Enseada. Quase ninguém faltava às aulas porque o sentimento de responsabilidade era muito forte. Também ninguém queria ficar para trás, ser ultrapassado pelos outros. Era uma vergonha.
                       Hoje, me preparando para iniciar o ano letivo de 2012, retorno na imagem de quarenta anos. Verinha é professora, Carlinhos trabalha na náutica, Helena é enfermeira, Fernando faz parte do policiamento, João é comerciante e assim por diante. Todos estão por aí na luta.
                       Foi a escola que forneceu as principais ferramentas para que todos pudessem enfrentar a vida como enfrentam.
                       Novo ano, novos desafios na escola: continuar alimentando a cidadania capaz de gerar outro modelo de sociedade, onde a dignidade humana e a natureza sejam respeitadas.
                       Bom trabalho e muita saúde a todos os docentes! Feliz ano letivo!

Dito Olho Azul

Fartura de peixe


                Em 1980, passando pela praia Vermelha do Baguari (Vermelhinha), conheci o mestre Dito Correa. Também gostava de causos. Seu costume, já na parte da tarde, após a soneca depois do almoço, era remendar redes no terreiro, debaixo do arvoredo. De vez em quando passava a vista pelo horizonte do mar. É mais um costume caiçara: ficar a espera de novidades que só a imensidão do mar é capaz de proporcionar.

                Num serão, como se adivinhasse a minha espectativa, o bondoso homem começou um causo:

                “Não é de hoje que a minha gente mora aqui. Desde a Ponta Grossa até o Acarau e o Itaguá é tudo parente. Mas teve um tempo que pelo mar vieram uns estranhos e por aqui ficaram sem demorar muito. Isto eu não alcancei. Quem contou isso, no tempo da minha meninice, foi o meu avô. É coisa de tempo que nem o avô dele alcançou. Não sei há quantas gerações.

                Essa gente de fora veio numa embarcação do estrangeiro. Gente bonita! A cabeleira tinha aparência de fiapada de paina; os olhos tinham um azul de olho-de-cabra. Foi naquele canto ali que puxaram um barco sem igual. Logo fizeram uma casa grande. Pescavam, secavam peixes; aprenderam a comer das nossas coisas, mas nunca se misturaram com a nossa gente. De acordo com o vovô, somente um do lugar por nome de Zé Placidino, o carpinteiro, se orgulhava de ter aprendido o que sabia fazer com essa gente branquela avermelhada.

                A fama do tal Placidino era de falador [fofoqueiro]  que sabia mesmo de muitas coisas. Ainda tem gente por aí que conta mais detalhes desse tempo, inclusive o envolvimento das moças da terra com aqueles homens. Depois disso nasceram as crianças com olhos no tom de olho-de-cabra [azulados]”.

                No mesmo instante pensei reparando nos olhos azuis do mestre da dança da fita. Seria o acolhedor pescador um dos descendentes desses homens do mar que passaram por aqui?

domingo, 29 de janeiro de 2012

A Dança da Fita


Uma noite de festa na capela- 1992

                Nas festas do mês de junho e no dia especial de Nossa Senhora das Dores, na Comunidade do Itaguá, o grupo de dança da fita não deixa nunca de abrilhantar os momentos. É uma das principais atrações no terreiro da capela que olha para o mar. É parte da comunidade caiçara dali.

                De acordo com os moradores mais velhos, a dança da fita é uma festa do ciclo natalino que migrou da praia da Enseada há mais de cinquenta anos, mas veio do Sul, de Santa Catarina. Herança dos açorianos, foi trazida pelos festeiros pescadores, sob a liderança do mestre João Vitório (da Enseada) ao nosso município.
                Era comum em outras épocas as pessoas se deslocarem de pontos distantes para participarem das festas comunitárias comuns em todos os bairros e praias. Dentre as mais famosas estavam: Festa da Cruz (Camburi), São João (Fortaleza), São Sebastião e Santana (Grande do Bonete), Santa Rita (Santa Rita), Santana (Perequê-mirim), N.S. das Graças (Sertão da Quina), Coração de Jesus (Caçandoquinha), Senhor Bom Jesus (Ilha Anchieta) e as já citadas do Itaguá. Elas fortaleciam o sentimento de unidade cultural.
                Na evolução da dança da fita, os pares se distribuem ao redor de um mastro carregado de fitas coloridas. Acompanhados por uma música popular, os casais, segurando as fitas, vão apresentando movimentos harmônicos de acordo com o sinal do mestre (ou capitão). Os trançados vão se formando na madeira do mastro, se diversificando, se destrançando e novamente se organizando. As cores das fitas e das roupas, além das manobras perfeitas, encantam muita gente. O que poucos sabem é que as evoluções da dança da fita pertencem a um passado bem passado, do tempo pagão (quando nem se sonhava com o cristianismo). É um ritual agrário dos povos primitivos. Por isso eu recomendo: na próxima oportunidade de apresentação da dança da fita, tente ver os diversos momentos da lida no campo: preparo da terra, semeadura, crescimento, colheita e agradecimento pelos frutos da terra.

                Eu conheci o grande mestre Benedito Correa Leite, caiçara da praia Vermelha do Baguari (Vermelhinha). Na sua moradia (no jundu) tomei café, apreciei o seu trabalho com redes e escutei boas experiências de vida. Depois veio o Élvio e todos da nova geração.

                A dança da fita e outras tradições cumprem a função de cimento na cultura caiçara.

                Viva todos aqueles que mantêm a potência desse cimento!

                Viva a comunidade do Itaguá!

Resistência caiçara hoje (I)

Tio Dico na margem do rio Puruba- 2005

         (Artigo publicado em dezembro de 2011, na Revista do Brasil)
                O antropólogo Mauro W. B. Almeida, diretor do Centro de Estudos Rurais da Unicamp, ajudou Chico Mendes a formar o Conselho Nacional de Seringueiros e as reservas extrativistas na região amazônica. Recentemente fez parte de um grupo de pesquisadores convidados a conhecer a vida dos caiçaras que habitam a área da Jureia, entre Iguape e Peruíbe, litoral sul de São Paulo. “Gente cheia de vida, de entusiasmo, com amor pelo que faz”, descreveu, lamentando a ameaça de expulsão dessas comunidades, em ação do Ministério Público Estadual. “Tem caráter de tragédia, porque significa o destino de uma população inteira. É uma situação desesperadora. Aquilo que deveria ser declarado um patrimônio da nação está sendo escorraçado”, afirma.

                Como podemos ver, não é só em Ubatuba que o espaço natural, preservado por tantas gerações de caiçaras, é tão cobiçado. É a lógica cruel: mata-se a cultura para dominar o povo e auferir mais lucros. E, infelizmente, além dos poderosos capitalistas, tem aqueles nativos que fizeram da posse da terra uma moeda de troca, algo que acena para a ascensão (?) social. Isso sem contar as ocupações irregulares (mansões nos morros, sobre costeiras e cachoeiras, barracos beirando os rios e plantados em mangues etc.). Resta-nos o convencimento da importância desta cultura tradicional para ter uma vida mais autêntica, que nos orgulhe de uma herança para as futuras gerações. Esta deveria ser a nossa luta para uma cidade melhor e a evolução dos ocupantes deste espaço.

sábado, 28 de janeiro de 2012

A minha vó Maria



                Às margens do rio Ipiranguinha, quase chegando na cascata que é o ponto turístico do bairro, mora dona Maria, uma caiçara do Rio da Prata. Onde é este bairro? É verdade que muita gente nem faz ideia, mas tem uma justificativa: está meio que escondido, depois do Araribá, acompanhando a rodovia em direção a Caraguatatuba, antes de chegar à Tabatinga. “Era terra dos Barrasseca há muito tempo”.

                A dona Maria teve uma vida muito diferente das mulheres caiçaras da sua época. Seu primeiro marido,  “gente de fora” (migrante nordestino), após o casamento a levou em suas andanças atrás de trabalho por diversas cidades e estados. Assim conheceu cidades grandes e viveu em lugares ermos. A sua narrativa do tempo em que trabalharam para fazendeiros em meio a florestas em Mato Grosso é impressionante! “As onças rondavam a casa de noite”. Depois disso retornaram para Ubatuba, foram contratados por um proprietário na praia do Flamengo.

                Um belo dia, ao retornar com a embarcação de uma viagem ao Saco da Ribeira, o seu primeiro esposo teve um ataque cardíaco na arrebentação das ondas. Morreu antes de encalhar a canoa no lagamar. “Foi um compadre nosso que acudiu o coitado”. Ficou viúva com os primeiros filhos. Veio para a cidade trabalhar como empregada doméstica e acabar de criar as crianças.

                Logo um imigrante (húngaro) relojoeiro, estabelecido no centro, se engraçou e tomou a dona Maria como companheira pelo resto da vida. Nesse tempo vieram morar na bonita área da beira da cachoeira. Outras crianças se somaram às primeiras. “Nós fomos felizes nesse lugar!”,

                Novamente viúva, agora com os filhos praticamente criados, só restou como companhia o varão Zarur. Era com os dois que eu sempre, aos sábados, ia tomar um café e prosear. Dona Maria, a "minha vó Maria”, contou muitos detalhes que estão na lembrança, sobretudo da fartura de tudo quando criança. O filho artesão, um dia goleiro do time do Saco da Ribeira (Recurso Futebol Clube),companheiro do humilde chalé, também se foi levado pelo câncer. Os outros filhos e a netalhada estão por aí. O que continua a embalar a vida da vó caiçara é o barulho da cachoeira. “Essa companhia eu sei que não me deixará!”

                Benção vó Maria!

quinta-feira, 26 de janeiro de 2012

A alma de um povo

Ricardo, a rabeca e as crianças (Arquivo Kilza Setti -1978)

Ruas enfeitadas para o carnaval (S.Luiz de Paraitinga- 1993)

                Aproveitando o rumo deixado por João Cabral a respeito da alma pelo corpo inteiro, que tal refletir sobre a alma do povo, o sentido cultural da nossa vida?
                Na primeira imagem, na comunidade do Ubatumirim, é a partir da música e os sons tirados de um instrumento fabricado pelo próprio músico que a realidade e os sonhos tornam-se parte da alma caiçara.
                Na fotografia da cidade vizinha, a partir dos enfeites feitos com as técnicas e os materiais que fazem parte do cotidiano dos moradores, sente-se a alma caipira.
                Portanto, cada localidade inteirada com o meio natural onde se desenvolveu, permitindo o   mínimo  de influências midiáticas em seus aspectos negativos, consegue cultivar a sua alma e se orgulhar disso.
               São as crianças, escutando  e vendo aqueles que manejam a cultura (através da música, das técnicas, das devoções, das  festas etc.), que perpetuam a alma de um povo. Agora, como parece haver uma imposição de uma cultura de massas, é urgente que a escola resgate os valores locais. A lição vem da natureza: se a terra não for cultivada com todo carinho, as plantinhas vão se definhando. Pode chegar o dia em  que nem mesmo a memória daquele lugar ainda resista. É quando a alma se torna artificial, imposta pelos interesses econômicos e/ou políticos de uma minoria.
               É isto: a alma de um povo está em cada mínimo traço da sua cultura. Assim como o corpo, a cultura pensa.

O corpo pensa

Caramujo africano saboreando um galho de urtiga. É mole?

                O velho João Cabral, um caiçara que viveu  mais tempo em Santos do que em Ubatuba, sempre arranjava um tempo para bebericar “uma mardita” e filosofar. Não sei dizer se estudou algum dia ou se era um talento nato daquele nativo do Perequê-mirim.

                Em certa ocasião o João sumiu por uns dias. Depois disse que a culpa estava num “desarranjo intestinal”. Foi quando, com a barriga encostada no balcão de cimento queimado da Barraca do Tião, depois de algumas talagadas de ubatubana, explicou para três ou quatro ouvintes desocupados como o corpo pensa. O discurso foi mais ou menos assim:

                “O corpo pensa, pessoal! Por que digo que o corpo pensa? Prestem atenção: se o corpo tem alma, ela (alma) está pelo corpo inteiro.  Não posso aceitar que alguma parte deste miserável corpo é desprezado, sem alma. E a alma não é superior, pura inteligência? É inteligência por todo o corpo! Então o corpo pensa! Agora, por exemplo, por causa do que já bebi, estou pensando que já não estou bem para  passar a pinguela de um pau só na Vala do Cunha. Posso cair e me machucar todo, não é mesmo? Eu não quero isso; dor não é coisa boa. Me digam: isso não é inteligência do corpo?  Não é ele pensando?

                Nesse instante interviu o Tadeu, um “pingalhada de fora” que sempre acompanhava o João:

                - Sabe o que fez isso, Zé? É o resultado de uma semana de caganeira do nosso amigo! Também pudera: quase virou ao avesso!

quarta-feira, 25 de janeiro de 2012

Puxando o carro


A São Glória e o Corrêa contavam que em algumas noites se ouvia o rangido parecido com o de carro de boi vindo da rua, mas era de um tipo de carro de madeira menor, que costumava ser puxado por bodes. Isso acontecia às altas horas da noite, muitas vezes. Eles e outras pessoas chegaram a ver o que era, mas ninguém teve a ousadia de chegar perto.
Certa noite, ao ouvir o conhecido rangido do carro, o Corrêa se levantou apressado e se colocou junto à fresta da janela para observar cautelosamente. Dali viu passar o carro de madeira carregado com duas bandas de porco sendo puxado vagarosamente por um vulto. Desviou um pouco o olhar e quando voltou a ver, não enxergou mais o vulto, mas tão somente o carro rodando sozinho.
A São Glória explicou que perto dali viveu um fazendeiro muito ruim, que mandou matar dois homens que haviam lhe roubado um porco e trouxe de volta o porco roubado. Quando morreu, o tal fazendeiro passou a assombrar a região, sempre puxando o carro com o porco dividido em dois.

terça-feira, 24 de janeiro de 2012

Estatística.

Garça tranquila na Barra dos Pescadores - 2011
                 É bom saber que, além dos estimados seguidores/leitores próximos, em outros lugares bem distantes de onde eu escrevo, existem pessoas lendo os causos de Ubatuba, que é uma das cidades onde a cultura caiçara se desenvolveu. É o que mostra a estatística do coisasdecaicara.blogspot.com.
                Além dos comentários dos mais próximos, também adoraria saber as motivações desses leitores distantes e de conhecê-los a partir das culturas nas quais estão inseridos.
                Eis os números e acessos em outras terras. Publico-os para que todos saibam e possam até mesmo fazer algumas considerações a respeito. Exemplo:  eu sei que um leitor da Colômbia é o paulistano Jorge Galdino. Ele está quinze anos fora do Brasil, mas conhece um pouco de Ubatuba e dos caiçaras porque sempre buscou se inteirar com os moradores nativos em suas andanças por aqui.
                Estados Unidos       312
                Alemanha                 189
                Rússia                        124
                Portugal                    36
                Reino Unido             23
                Índia                          13
                Cingapura                 10
                Colômbia                  8
                Espanha                    8

domingo, 22 de janeiro de 2012

Imagens em forma de poesia

"Numa noite por ano elas se abrem neste espetáculo" (Mary-2008)
               
                Eu queria escrever sobre um lugar muito especial na minha infância: uma bica que ficava bem atrás da casa do vovô Armiro.  Ela nos abastecia correndo em bica de bambu desde a imensa pedra onde era a nascente até uma grande jaqueira, atrás da casa de farinha. Depois, ao me recordar de uma poesia do Domingos, decidi que ela diz quase tudo. E você merece conhecê-la!

                Cachoeira do céu

                Na casa de meu avô
                quem sempre nos deu
                a água de beber
                é uma cachoeirinha
                que brota de uma grota
                entre pedras, raízes e caetês,
                que alimenta um córrego
                de guarus, cobras d'água e pitus.
                Uma queda d'água tão bonitinha,
                com um rumorejar tão baixinho,
                parecendo que foi feita por Deus,
                quando ainda era menino.

Um pasquim

Praia do Itaguá - 1980. Aládio, Florindo e companheiros na costumeira redada.
                Até a minha infância ainda aparecia de vez em quando  algum pasquim, que era um recurso de comunicação mais do que um simples bilhete no papel. Parecia uma poesia; alguns até chegavam a ter rimas.
                Geralmente o pasquim era anônimo; muitas vezes  trazia mensagem enigmática. Quando era nesta modalidade, demorava um pouco mais para se alastrar, mas era mais empolgante. Nessas horas era de muito valor os “intérpretes”, que mediavam o texto com fatos e pessoas. Tudo era misturado: conjecturas, deduções, intrigas, fofocas etc. Tornava-se, então, uma mensagem coletiva.  Ao final, pensava eu: será que era isso mesmo que o autor quis passar?
                O pasquim que fazia sucesso  era aquele provocante, que repercutia por semanas. O saudoso João de Souza sempre produzia os seus para as ocasiões especiais. Se voltarmos no tempo, creio que função parecida tinha o jogral na Idade Média. O que importava era a transmissão da mensagem.
                Numa ocasião, encontrei um pasquim no rancho de canoa do Licínio “Teteco”. Guardei-o por muito tempo. Até hoje não posso afirmar  se entendi a mensagem. Eis o texto:
                Tenho duas frutas; são abacates que passam do tempo.
                Você não quer colher?
                Elas podem empretejar no galho,
                Se esborrachar no chão.
                São saborosas. Isso eu garanto.
                São bem  saborosas.
                Se aceitar, pegue o bordão
                (Está na cepa da grumixameira),
                Suba no juréu
                E cutuque  carinhosamente,
                Com suaves movimentos
                E macias mãos.
                Deposite na altura e no lugar certo.
                Depois não se apresse,
                Não engula só com gula
                (Mesmo sendo compreensível)
                Ou voando noutros espaços.
                É preciso estar preparado
                Ou se preparar para comer.

                Aguardo o sim ou não
                Ansiosamente!
                Você sabe o ponto
                E a combinação que carece.

                Assinado: quem não assina
                E que mora depois do barranco.      
                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                         
                  Em certa ocasião, surpreendi o tio João e o primo Fernando elaborando um pasquim (O chifre no lagamar). Isto até hoje ninguém sabia.

sábado, 21 de janeiro de 2012

A pedra do Tapuá

O ponto assinalado em círculo entre as muitas embarcações é a Pedra do Tapuá.
Este é o Porto de Ubatuba, de acordo com o mapa do Almirantado Inglês, de 1870.
                Itapuã, de acordo com a tradição que vem dos antigos, da parte dos índios, quer dizer pedra que aparece, ponta de pedra. No caso nosso, itapuã virou tapuá.
                Tapuá é uma pedra, uma lage que aflora no mar, na Baía de Ubatuba. Se avista a Pedra do Tapuá a partir do Caminho do Cais, depois da Barra do Acarau. Chegando na metade do trajeto, olhe um pouco mais para longe da costeira,   por sobre a Pedra do Morcego, em direção à Prainha do Padre. É essa pedra, tão singela para quem olha de longe que, desde os primeiros habitantes, há quinhentos anos, traz este nome: Tapuá.
                Impressionante! Os portugueses, os caiçaras e até os ingleses respeitaram o nome escolhido pelos índios. E chegou até nós!
                Está duvidando? Procure a Carta do Almirantado Inglês, de 1870, localize o detalhe descrito à parte. Entre as profundidades meticulosamente assinaladas, há a referência destacada: Tapuá. É! Esses ingleses sabiam de muitas coisas! Não é à toa que por tanto tempo eles dominaram os mares!
                Alguns desses caiçaras que ainda estão por aí, na casa dos sessenta, setenta anos, que estudaram com professores bravos (Lauristano, Joaquim Lauro e outros), dizem que, depois de aplicarem os castigos comuns, ameaçavam os alunos indisciplinados com a seguinte frase:
                “Na próxima vez vai ficar na Pedra do Tapuá”.
                Eu, hein!? Credo em cruz!

sexta-feira, 20 de janeiro de 2012

Era Bernadino, do Pulso. Agora é memória.

Puxada de rede na praia do Pulso, em 1983. Bernadino levanta tabuleiro (laranja) com peixes.
            Depois de muito sofrimento, no último dia 9 nos deixou o pescador Bernadino, gente dos Prado, da praia do Pulso.
            Do Bernadino, na beira do seu rancho de canoa, escutei e aprendi muitas coisas. Ele, companheiro de infância do meu pai, nunca deixou aquele lugar maravilhoso porque sempre viveu da pesca. Junto com a Maria, sua companheira lutadora, e os filhos Vicentina e Mário, o humilde pescador era uma referência para as minhas prosas esporádicas na praia do Pulso.
            Certa vez, contando causos de outros tempos e de nossos antigos, o Bernadino se recordou de uma pescaria em tempo de caçoa. De acordo com ele, o Possidônio Barrasseca, na referida época, há mais de cinquenta anos, foi salvo por um boto. Percebendo o meu interesse, entrou nos detalhes: “No tempo antigo eram poucos os que sabiam nadar. Sabe o porquê? Porque os peixes bravos chegavam até na beira mar, desciam na arrebentação das ondas. Quase ninguém tinha coragem de se aventurar, ficar dando braçadas sossegadamente, querendo aprender a nadar. Por isso que, apesar de ótimos canoeiros, corriam um risco constante quando embarcados. Afinal, qualquer canoa poderia alagar, exigindo muito esforço e sorte de quem tivesse embarcado quando isso acontecesse. Isso aconteceu com o nosso parente Barrasseca, numa pesca de caçoa: a canoa alagou, depois de uma escapada de uma bitela, entre a Costeira do Tolino e a Ponta Lisa, onde era a casa do Caetano. Por perto não tinha ninguém que pudesse acudir. A embarcação mais próxima era a que estava o Horácio (do Herondino) e o Antonio do Prado. Assim que eles perceberam o desespero do amigo, levantaram a poita e começaram a remar desesperadamente. Porém, quando faltava mais de trinta metros para prestar ajuda, o inesperado aconteceu: um boto, surgido não sei de onde, serviu de apoio ao Possidônio, dando-lhe um empurrão por sobre a borda, tirando-o da água. Foi a sua salvação. Quando os dois chegaram, o homem ainda arfava. E o boto, depois de dar ainda algumas voltas em torno das duas canoas, desapareceu no rumo da Lage de Fora. Apesar de já conhecerem causos de amizade entre homens e botos, nunca nenhum deles tinha visto coisa assim”.
            E assim, recontando alguns causos do Bernadino, a gente mantém ele entre nós. Só desse jeito, preservando a memória, a imortalidade existe.

quinta-feira, 19 de janeiro de 2012

Jota Passos

Barcos no atracadouro do Saco da Ribeira, construído na direção da linha do jundu, em 1978, onde se localizava o Estaleiro Makyama (Foto de 2011)

                Um barco familiar está sendo reformado nas areias encharcadas do Acarau. Em cima, no convés, enxergo o Marquinhos e o Tico. Cumprimento-os com a saudade de alguns meses. Pergunto se aquela embarcação não é o Jota Passos. “É ele mesmo! Você conhece, Zé?”. Marquinhos ficou admirado. Afinal, da linha d’água para cima está totalmente novo, na madeira nova. Expliquei-lhe que o pequeno barco pesqueiro é inconfundível, principalmente porque, há aproximadamente quarenta anos, quando ele foi construído, eu frequentava o  Estaleiro Makyama, no Saco da Ribeira. Ele tem linhas inconfundíveis. Eu, como a maioria dos caiçarinhas, era apaixonado por barcos.
                Defronte aos Alexandrinos, de tradição naval reconhecida, é final da tarde. Pescadores chegam; a conversa se estica. Marquinhos insiste no assunto do Jota Passos. Informa que agora o pequeno pesqueiro ganhará um novo nome e terá por mestre um jovem ilhéu da Vitória. Pergunto-lhe porque está praticamente inteiro após tanto tempo. Imediatamente ele responde: “Isto é fácil de responder! É uma embarcação muito bem feita; por isso é que dura tanto tempo em atividade, sem praticamente nenhum reparo. O cavername está perfeito: só usaram ipê. No costado/calado a madeira é amendoim. É perfeita a embarcação porque os japoneses construíam na planta, atentos a todos os detalhes. Também, né!? Tinha uns jovens japoneses que eram feras na marcenaria! Agora, estão todos no Japão há muito tempo!”.
                Antes de escurecer ainda tivemos tempo para recordar outros bons marceneiros navais, cujas embarcações ainda estão rompendo os mares. Muito nos orgulham os trabalhos de Zezinho Alexandrino, do Jacob Meira, do Chicão, do Dito Félix... Todos muito bons! O Zezinho, por exemplo, devido ao seu talento, aos vinte e poucos anos já estava ensinando a arte naval na Escola Técnica de Santos. “Ele batia o olho; se tivesse uma linha fora, ordenava desmanchar imediatamente para refazer”. Depois desta frase, acrescentou o Marquinhos: “É por isso que as suas obras continuam até hoje, que vale a pena reformá-las!”

quarta-feira, 18 de janeiro de 2012

No Caminho do Cais (II)

                Depois de 1977, quando foi instalado pela SUDELPA (Superintendência para o desenvolvimento do litoral paulista) o atracadouro na praia do Saco da Ribeira, o fluxo dos barcos pesqueiros se transferiu para lá, deixando o cais novamente num marasmo, servindo apenas para a molecada mergulhar e para os pescadores amadores se divertirem com os “causos do Acari”. Depois passou a atrair também os turistas. Diante disso, o arquiteto Sidney Giraud, um caiçara da Enseada que tem parte com os imigrantes franceses de outrora, há pouco mais de dez anos, a pedido do prefeito Paulo Ramos, realizou um eficiente projeto de urbanização de toda a orla da Baía de Yperoig, inclusive a Estrada do Cais.
                A Estrada do Cais ganhou uma calçada pavimentada para os caminhantes e plataformas em diversos pontos da costeira servindo como mirante e para pesca. Hoje, dez anos depois, tudo se esvai, a ruína se estabelece por falta de cuidados e de manutenção, formando pontos que oferecem perigos aos visitantes. Isto é como se vivêssemos uma nova crise. Só que agora não tem nada a ver com revanche aos monarquistas. O mais correto é tratar como incompetência administrativa ou visão reduzida, própria de quem enxerga apenas os próprios pés.
                Faliu o empreendimento ferroviário; o barco é Amor Náufrago; a cidade está para ratos e mosquitos da dengue. Nada está concluído!

terça-feira, 17 de janeiro de 2012

No Caminho do Cais

                No final do século XIX, pouco antes de D. Pedro II perder o trono brasileiro, alguns homens de negócio se “interessaram” por Ubatuba, resolveram investir numa ferrovia, cujo traçado, depois de alcançar Taubaté, se estenderia até São Bento do Sapucaí.
                O projeto foi aprovado, o financiamento foi garantido, as obras tiveram início. A estrada que conduz ao cais, onde há uma base de pesquisa de pescados, conhecida pelos ubatubanos por Caminho do Cais é a marca mais evidente que restou dessa iniciativa. De acordo com o Sebastião de Souza: “Deu um trabalhão aquela pedraria. Foi toda cortada para receber os dormentes e os trilhos. Depois, passando a ponte sobre o Acarau, foi a vez do mato do jundu e do caxetal do Itaguá, indo em direção à cidade, ao centro. Era uma picada reta. Foi quando veio a crise e tudo passou”.
                A crise a que se refere o caiçara do morro do Tenório, é a Revolta da Armada, ocorrida nos primórdios republicanos. Tratou-se de um “fôlego monarquista garantido pela Marinha”; uma tentativa de retorno aos princípios monarquistas. Não vingou. Em Ubatuba, onde os monarquistas prevaleciam, houve o golpe: a cidade teve os benefícios (que garantiam a ferrovia ) cancelados.
                Os túneis e as estações começados foram abandonados, assim como trilhos, dormentes, parafusos e tantos outros apetrechos que sustentariam a obra “ficaram ao léu”. Bem mais tarde, no cais, onde seria o terminal ferroviário de carga, surgiu o Entreposto de Pesca. A área foi revitalizada. O desembarque dos barcos sardinheiros movimentaram, na década  de 1970, até quatro salgas. A plataforma tornou-se um ponto de pesca, sobretudo aos veranistas.

segunda-feira, 16 de janeiro de 2012

Cavalo Grande

                Para entender melhor o que eu vou escrever, você precisaria conhecer o Saco dos Morcegos, o local da fazenda de Sinfrônio Antunes de Sá, “a raiz dos Madalenas”. Na fotografia, eu faço questão de mostrar a pedra de moinho que resiste junto a algumas colunas. É do “Porto da Fazenda”, olhando para a costeira do lado esquerdo, que se enxerga uma pedra enorme, com uma declividade impressionante. Garanto aos puladores de pedra que, ao chegar nela, só existem duas alternativas: cair no mar e sair nadando ou subir a mata para caminhar aproximadamente os cinquenta metros daquela pedra. Esse lugar é conhecido como Costão do Cavalo Grande.
                Os antigos moradores daquele local (Dito Madalena, Neco, Constantina, Palmira, Gregório, Teólfilo, Dominguinhos...), ainda parentes meus, me explicaram a história do lugar, o porquê do nome do costão. Disseram que foi por causa de um acidente no início do século XX, quando um grande mestre de canoa de voga perdeu a vida no mar.
                José Vieira Serpa, navegante ubatubano de tradição, era considerado o melhor mestre nas viagens entre Santos, Ubatuba e Angra dos Reis. Além dos conhecimentos técnicos, também conhecia muito do tempo, das condições para a navegação. Além disso,  “pressentia coisas de longe”. Dele partia a comando sobre os oito tripulantes da grande Cavalo Grande, a canoa de voga que entrou para a história com uma tragédia.
                As canoas imensas eram importantíssimas num tempo onde o mar era a nossa principal via de acesso às cidades litorâneas vizinhas. É preciso lembrar que a rodovia existente entre Ubatuba e Caraguatatuba é de 1950?
                Existiam embarcações maiores, feitas em estaleiros, mas tinham pouca praticidade aos pequenos empreendedores porque seguiam um calendário determinado, paravam em vários portos, etc. A solução era canoa de voga, “feita de um pau só”. Dizia o vovô Armiro, remador admirável, que muitas dessas canoas eram conduzidas por oito tripulantes e um mestre, mas tinha aquelas de seis tripulantes, um pouco menores. Eram nos bancos que, completamente esticados, os homens descansavam enquanto tocavam os ventos favoráveis no traquete e na mesena. Imagine a largura dessas tais canoas! Até uma caixa de areia, onde era montado um fogão de tacuruba, fazia parte do lastro da embarcação. “Era para fazer um café, preparar uma comida rápida. Desse jeito ninguém desembarcava e a viagem rendia mais”.   
                Numa de suas viagens, o reconhecido mestre aportou na Ilhabela e mandou reforçar nas poitas porque tudo indicava uma tormenta forte se preparando para chegar. Ao saberem que teriam de pernoitar naquele local, distante de suas casas, correndo o risco de perder uma festança na cidade natal, os tripulantes começaram a atazanar o Zé Vieira. Foi tão grande a encheção de saco, que o homem perdeu a paciência, levantou as poitas e rumou ao destino. Os ilhéus contam que, ao embarcar contrariado, assim expressou o competente mestre canoeiro: “Eu morro, mas vocês também não ficam para contar história”. Depois disso, somente os destroços encontrados a partir do Saco dos Morcegos até Angra dos Reis tentaram revelar o ocorrido. Todos morreram.
                Então é isto: o costão tem esse nome porque por ali encalhou um pedaço da canoa de voga Cavalo Grande, que navegava sob as ordens de grande mestre José Vieira Serpa.

domingo, 15 de janeiro de 2012

“No princípio era um carreiro. Ele ficava na encosta”



               Ao ter conhecimento dos caminhos de servidão, o amigo Jorge, se reportando ao tempo que morava na capital paulista, citou as estradas de servidão ainda existentes e assim conhecidas pelos paulistanos. Depois disso eu fiquei refletindo que, talvez, estrada (de servidão) fosse uma denominação mais adequada para interligações mais distantes, tal como as intermunicipais na atualidade. Seguindo este raciocínio, as ligações do nosso município com as “localidades de Serra Acima” seriam estradas de servidão. Assim, teríamos as tais estradas desde a que ainda hoje é usada no Sertão da Quina (que dá acesso à Vargem Grande)  até a denominada Trilha do Corisco, que parte do Sertão da Fazenda da Caixa e termina em Paraty. Entre estas, teríamos a do Corcovado e a da Cachoeira dos Macacos, ambas, assim como a primeira citada, terminam na Vargem Grande. A outra bem desconhecida é a da Escorregosa (que faz a ligação com Cunha). A questão é: por que a convergência à Vargem Grande? A resposta é simples: era o ponto de chegada do Carreiro das Antas, um dos acessos dos índios (tupinambás) ao planalto. Foi sobre esse trajeto que os portugueses determinaram a primeira interligação de Ubatuba com a Serra Acima, conhecida hoje como a Trilha dos Macacos. De acordo com tradição oral reproduzida por Dito Chiéus, o ponto de chegada desse acesso era a fazenda, dentro da área da Estação Experimental do Horto Florestal. Só mais tarde, já no Segundo Império, o caminho sofreu novas mudanças que corresponde ao traçado aproximado da atual estrada (trecho de serra da rodovia Oswaldo Cruz). Vale apena conferir!
            Entre alguns cronistas há a suposição de que, por esse carreiro, uma porção dos índios confederados alcançou a Vila de Piratininga. A outra parte galgou a Serra do Mar a partir do caminho do rio Juqueriquerê, em Caraguatatuba. O estratagema seria: atacar os perós, depois fugir atraindo-os à desembocadura do Quiraré, onde o grosso da Confederação dos Tamoios aguardava. Deu certo. Basta recorrer às palavras de Anchieta acerca do combate, onde os portugueses e seus aliados “apanharam feio”:
            “A custo percebeu finalmente (Fernão de Sá) que os seus  desertaram, enquanto  ele   mergulhava na turba, inebriado de sangue, olhos na derradeira vitória.   Ao ver-se  abandonado, entre os inimigos, com poucos companheiros, entendendo ser inútil lutar contra tantos, retira-se dos arraiais e pouco a pouco recua na direção do rio, para    entrar com seus bravos nas barcas que aí estariam presas. Mas, aí, covardes,   menosprezaram as ordens e a vida do chefe e largaram para longe da margem a  armada, cedendo a um temor vergonhoso”.
            Na verdade, agora quem conclui é Aylton Quintiliano, na obra A guerra dos Tamoios:
            “Fernando de Sá, abandonado pelos seus, é liquidado com os que ainda ficaram ao seu lado, pagando com a vida tanto sangue tamoio derramado”.
            De tudo isso, podemos deduzir que é possível a mudança de nome de carreiro para estrada de servidão. E, os acessos curtos, no território da freguesia, tornaram-se caminhos de servidão.
            O que podemos fazer é sair em defesa dos caminhos e estradas de servidão. Afinal, são componentes do nosso patrimônio histórico e cultural.

sábado, 14 de janeiro de 2012

A viola de Dito Fernandes


                “Para o caiçara ubatubano, sertão sempre significou a região da mata cerrada que se interpõe entre a orla marítima e as encostas da Serra do Mar, e que constitui a parte da mata atlântica que a recobre [...].  Geralmente o mesmo nome dado a uma praia serve para denominar a área do sertão correspondente a esta. Assim, há a praia de Itamambuca e o sertão de Itamambuca; a praia do Puruba e o sertão do Puruba; a praia do Perequê-mirim e o sertão do Perequê-mirim”. Deste modo escreveu Kilza Setti, em seu livro Ubatuba nos cantos das praias,  para classificar e estudar os fenômenos de conservação e renovação no repertório musical dos caiçaras.
                Eu imagino o encantamento e o contentamento da pesquisadora, na década de 1970, ao caminhar pelos caminhos de servidão, entre as praias e sertões, escutando e recolhendo as cantorias profanas e sagradas do meu povo, comendo um peixinho ali, tomando um café acolá. Deve ser o mesmo sentimento e a mesma alegria que eu sinto em oportunidades semelhantes. Ontem, treze de janeiro, tivemos (eu, Júlio, Isaías e Jorge) este prazer: escutar o violeiro Dito Fernandes em sua casa no sertão do Puruba.
                Conheci o Dito Fernandes em 1981: estava em farinhada com a dona Mocinha e alguns filhos maiores. Ele já era mestre de congada. Todos os congadeiros eram dali mesmo; todos parentes! Dele eu aprendi que aquela Companhia de Congo teve influência direta de Cunha, o município limítrofe com as terras do sertão em questão. Convém notar que toda a porção Norte do município de Ubatuba viveu em isolamento até 1976, quando a BR 101 (a rodovia) fez, finalmente, a ligação com o centro urbano. Foram os trabalhadores cunhenses, utilizando o caminho de servidão, uma ligação antiga entre os dois municípios a partir da cachoeira da Escorregosa, no sertão do Cambucá, que, na primeira metade do século XX, ao virem trabalhar no corte da caxeta na vargem do Puruba, fizeram esse intercâmbio cultural. Foram eles que deixaram, com a animação do Ditinho Alves, a tradição da congada. Ele foi o primeiro mestre. Porém, destacou o Dito Fernandes naquela conversa: “O Arcidão tem um grupo no Taquaral e o Modesto tem outro na cidade”. Acrescentei que na Estufa estava ativo um grupo semelhante sob a batuta do Fortunato. De imediato ele falou empolgado: “Ele é o meu tio, marido da Benedita! É gente daqui que se mudou pra lá!”.
                Ontem, acolhidos na sala humilde, onde a Bandeira da Companhia repousava perto do São Gonçalo e de outras imagens populares, nós tomamos um vinho, escutamos o Dito Fernandes na sua empolgada cantoria, num repertório que passou pela Cana Verde, Congada, Chiba, Canoa... chegando até nas marchas carnavalescas de outros tempos. Encerramos a noitada com a estrofe da Congada que diz:
                Oi, dá licença, minha guia, dá licença;
                Dá licença pra enfeitar a Companhia.
                Apanha nove rosas, apanha nove cravos:
                É pra ficar bonito;          
                É pra enfeitar São Benedito.

                Valeu Dito Fernandes! Valeu dona Mocinha! Estamos agradecidos pela herança cultural que, juntamente com os seus filhos, parentes e amigos, nos engrandecem e nos alegram!