segunda-feira, 29 de novembro de 2021

AMADORES


Cobiça de mar afora (Arquivo JRS)


O mar não para é amadores, já escreveu o Mano Mingo.


É muito comum a gente ouvir

histórias de pescadores

que partem para o mar

pra nunca mais voltar.

Eles partem,

aparentemente em bom estado de corpo,

mas e a mente que está ligada

ao coração por um complexa rede

de circulação sanguínea


e sentimentos inexplicáveis?

São pescadores amadores

que não aprenderam o suficiente

pra saber até que profundidade avançar

e que é fácil se deixar levar pelo mar.

sexta-feira, 26 de novembro de 2021

SOMOS FEITOS DE HISTÓRIAS

Uma canoa-floreira - Arquivo JRS

      "Os cientistas dizem que somos feitos de átomos. Um passarinho me contou que somos feitos de histórias". Quem escreveu isto foi o escritor uruguaio Eduardo Galeano.  Ah, faz tempo!

    Me detive ali, ao lado daquela canoa que virou floreira. Tentei fotografar de vários ângulos, mas não sei dizer se me saí bem.  Naquele momento se aproximou do local o Carlos, do Laureano. "Tá gostando, Zé? Tais vendo essa canoa velha? Pois saiba que eu pesquei muitas vezes nela. Era do meu compadre Mergulhão, o 'Velho Napo'. Essa madeira é bicuíba, tirada lá do morro do Jetuba. Quem escavou e deixou bonita ainda deve ter sido gente vossa: o Oliveira Quintino, da praia da Ponta Aguda. Agora faz tempo que é falecido, mas era um dos melhores fazedores de canoas que havia por estas bandas. O primeiro nome, dessa que agora repousa acolhendo plantas, era Biruanha, uma variedade de mosca que adora rodear peixe escalado no varal. Se quereis ouvir mais coisas a respeito dela, escutar histórias de gente que pescou com ela, procurais o 'Velho Napo'. Agora cedo é quase certo que ele está tocando violão e cantando para as amadas (esposa e filha). Vai lá".

    É, tava certo o passarinho: somos feitos de histórias!  



quarta-feira, 24 de novembro de 2021

FIDELIDADE




Companhia - Arquivo JRS

    Parei na imagem da tarde calorenta: debaixo da árvore dois amigos descansavam. Rente a um deles, um cachorrinho também dormia. Que cena! Penso na acolhida, na amizade, na fidelidade e em mais coisas que o quadro pode muito bem ilustrar. Quem não tem um bicho de estimação que apresenta esses aspectos que emocionam? Afianço que perdi a conta de quantas vezes presenciei os sinais de amizade entre andarilhos e cachorros, chegando ao ponto de partilhar igualmente um pão ou um salgado. E dormindo junto então?!? 

    De repente, num retão da rodovia, homens e animais seguem se deslocando como parceiros inseparáveis, se entendendo e se completando na solidariedade. Faz-me pensar em homem-bicho e bicho-homem. Agora, recordei de um cortador de pedra que há tempo nos deixou. Todos o chamavam de Bichinho. Eu, criança andeja, me detinha junto ao barraco dele para apreciar o preparo das ferramentas que perfurariam pedras, granitos verdes que até começo da  década de 1980, eram cortados em blocos e enviados, sobretudo ao exterior. 

     Conheci muitos caminhoneiros (Roldão, Almir, Rodrigo, Ismael, Isidoro...) que viviam nessa lida, correndo estradas com cargas de até dois blocos em suas carrocerias. O Porto de São Sebastião recebeu muitos navios que vinham atrás dessas cargas. Por pelo menos duas décadas,  o granito verde de Ubatuba foi um competidor da produção pesqueira. Hoje, nem e nem outro se destacam; a extração de granito verde logo completa quarenta anos de proibição.  Mestre Bichinho e tantos outros dessa arte nos deixaram faz tempo.  Mas aonde quero chegar? Explico agora:  Rex era o cachorro do Bichinho. Quando seu dono se encostava em algum lugar, depois de ter ultrapassado nas doses, a gente não podia nem passar por perto. Acho que era proteção e ciúmes os sentimentos do fiel Rex. Aquele homem... aquele cachorrinho... os dois dorminhocos puxaram à lembrança esse carioca que veio viver entre nós  caiçaras e ensinou a tanta gente o ofício de talhar pedras.  








 

segunda-feira, 22 de novembro de 2021

A GENTE OUVE SIM!

 

Alex Garrido - Arquivo JRS

      "Vocês escutam as cantorias de rádio sempre?".  Assim começou a pesquisa de Bauro Miguel, ainda estudante de nem sei dizer mais que curso que era, pois faz muito tempo que isso ocorreu. Tio Maneco que, tal como o Mané Bento, tinha uma ligeireza nas palavras, foi logo respondendo que as pilhas eram caras para ficar muito tempo com rádio ligado. "Assim, as cantorias nossas são  as que preenchem o nosso tempo. Elas a gente ouve sim, a gente canta com prazer", completou o titio.

      Agora, mais uns versos daquele tempo ou de outros mais atrás:


1- Menina, minha menina/ Cinturinha de retrós/ Ponha chaleira no fogo/ Venha fazer café pra nós. 


2- Vou-me embora, vou-me embora/ Como já disse que vou/ Se aqui não sou querida/ Lá na minha terra sou.


3- Lá vai a garça voando/ Com a pena que Deus deu/ Se pena padece a garça/ Mais pena padeço eu.


4- Esse teu cabelo crespo/ Agora que reparei/ Se eu reparasse antes/ Não amava quem eu amei.


5- Vós de lá,  eu de cá/ Ribeirão passa no meio/ Vós de lá dais um suspiro/ Eu de cá suspiro e meio


domingo, 21 de novembro de 2021

CANA VERDE E MAIS VERSOS

 

Vitral é arte no vidro - Arquivo JRS

   Continuando a remexer velhos papéis, outras pérolas encontrei. "Ainda bem que eu tenho essa mania de guardar tudo!". Desta vez, apresento a quem se interessa, uns versos da Cana-verde, uma dança trazida da península ibérica, de Portugal, que se compôs em nossos traços culturais, além de outros versos avulsos adaptáveis a outros tipos de danças e cantorias. Estas manifestações culturais são algumas das nossas armas para enfrentar o discurso de ódio que se apoderou de tantas almas e as colocou contra os mais fracos. Faça bom proveito, minha gente! Outros já ficam prometidos para amanhã. Grande abraço.


1- Assubi na cana verde/ Assubi de nó em nó/ Assubi na cana verde/ Do lado que nasce o sol.


2- A cana verde cantada/ Tocada é mais bonita/ Pra dançar a cana-verde/ A filha da Dona Rita.


3- No alto daquele morro/ Corre água sem chover/ Pau verde não pega fogo/ Quem quer bem logo se vê.


4- No fundo do mar tem limo/ Acima do limo tem peixe/ Quero deixar de amores/ Antes que amores me deixem.


5- As moças, mais que os moços/ Têm os pés delicadinhos/ Calcanhar de arrancar cepo/ Unhas de carpir caminho.


6- Cobra pra cantá comigo/ Lava a boca com sabão/ Se não ficar bem lavada/ Comigo não canta não.


7- Menina, minha menina/ Outra vez menina minha/ Na sua cama tem pulga/ Vem aqui dormir na minha.


8- O mar se forma lá fora/ Vem na praia arrebentar/ Chega a onda em seus peitos/ Só eu não posso chegar.



sábado, 20 de novembro de 2021

ATRÁS DE MELHORES DIAS

 

O Divino segue em frente...    (Arquivo JRS)


     Encontrei um texto mais antigo com uns versos mais antigos ainda, desses que os foliões e fandangueiros continuam repassando às novas gerações. Daí pensei em escrevê-los aqui, principalmente porque se apresenta, nas proximidades das datas, mais uma Festa do Fandango Caiçara permitindo melhores dias.

    A cultura caiçara se fez mantendo muito  -  mas muito mesmo!  -  da alma artística do povo Tupinambá, da diversidade de expressões dos negros escravizados e da vontade de sobreviver em terras de Além-Mar por parte dos pobres lusitanos deportados, na finalidade de assegurar a posse da terra que, finalmente, foi sacramentada como Brasil. Hoje, nos muitos aspectos dessa cultura  -  da nossa cultura!  - vemos uma continuidade, ainda que contando com um reduzido grupo de pessoas, desses traços fundantes. A musicalidade é o principal destes. Ela transmite a religiosidade popular, alimenta os bailados e  as animações das prosas, dos encontros que alimentam nossas criatividades. Prova disso são os versos seguintes. Espero que mais gente se anime e faça bom proveito dessas devoções, desses festejos da terra ubatubana. Que venha com intensidade a próxima Festa do Fandango Caiçara de Ubatuba!


1- Periquito tá falando/ De onde ele fala eu escuto/ Ele quer ir com o Divino/ Mas tem medo do Macuco.

2- Tanto peixinho nadando em volta/ Tanta mocinha bonita por perto do lago/ Tanto rapaz bom sem coragem/ Só ficando parado, olhando de lado.

3- Você disse que canta, canta.../ Que cantem quem amores tem/ Eu, como não tenho amores/ Não canto pra mais ninguém.

4- As mocinhas da Enseada/ São bonitas, não são feias/ Tem nariz de meia-légua/ E boca de légua e meia.

5- Essa casa tá bem feita/ Com uma cruz na cumeeira/ Salvando a dona da casa/ Com sua família inteira.

6- Essa casa tá bem feita/ Por dentro, por fora não/ Por dentro cravos e rosas/ Por fora, manjericão.

7- O Divino, assim que viu/ Ele logo cobiçou/ Aquele lindo passarinho/ Que do caminho avoou.



sexta-feira, 19 de novembro de 2021

NO CORAÇÃO DAS ESTRELAS



Momento nosso, de caiçaras - Arquivo JRS

   Eu penso que, quando as estrelas se desintegram de velhas, seus elementos se juntam às partes de outras estrelas que tiveram o mesmo fim e dão origem a novas estrelas que iluminarão outras vidas. Assim são as histórias que vivemos e escutamos dos mais próximos ou dos que são de outras gerações, mais ou menos aquilo que o mano Mingo poetizou como...


No coração das estrelas


Eu aqui vou ouvindo histórias, palavras, músicas

que guardo na memória,

para, quiçá, formar outras histórias.

Se novas histórias não se formarem, não tem problema,

sei navegar à bolina nos piores ventos,

e sempre dá para construir um novo poema...

No coração das estrelas

é que se formam os novos elementos.


(Fonte: barbatuba.blogspot.com)

quinta-feira, 18 de novembro de 2021

FLORADAS NA COCANHA

Floradas na ilha - Arquivo JRS

    O dia estava pelo meio da tarde. No galho da pitangueira avisto uma meia furada. Penso  em alguém sem a devida educação para cuidar da natureza esplendorosa que nos circunda. Firmei o olhar lá longe, na ilha da Cocanha; reconheci as árvores branqueadas de flores: trata-se jacatirões. Nossa! Tem bastante deles lá!  Sei que no alto daquela porção de terra rodeada pelo mar tem uma casa abandonada. Um velho pescador, certa tarde há uns anos passados,  me explicou que ela foi edificada por um empresario, na metade do século XX. Ele comercializava uma marca de caminhões,  daqueles que serviram como transporte coletivo assim que a estrada Ubatuba-Caraguá foi concluída, por volta de 1957. Pelo que entendi, era similar aos usados na modalidade chamada "pau-de-arara", comum no transporte de migrantes nordestinos até recentemente.    

           Aquelas floradas reavivam cheiros que agora não chegam até mim devido a distância. Porém, me remetem às abelhas. Penso que, naquela ilha tão bem preservada deve existir colmeias agora fartamente abastecida de pólen, transbordando de mel pelas dádivas dos jacatirões e outras especies nativas. Ah!  Na metade da distância, reparo nos trabalhadores do mar dando o duro na área das marisqueiras. Penso na frase de alguém muito antigo, um certo grego por nome de Epicuro. É assim: "A natureza criou-nos para a comunidade ".


 

segunda-feira, 15 de novembro de 2021

VAMOS BRINCAR DE QUÊ?

 

Regina entre caiçaras da Ilhabela (Arquivo Rê)

     No meu tempo de criança, a praia era o nosso principal local de encontros para tudo, sobretudo de brincadeiras. A gente tomava o rumo de casa quase sempre já no escuro. Depois de  um banho e de um jantar, ainda havia energia para ouvir histórias. Logo todos dormiam depois de mais um dia bem agitado, "na corrimaça", conforme diziam.


      - Ooooba! Vamos brincar de quê?


     Assim começava muitos momentos nossos, crianças caiçaras de um tempo onde a criatividade se somava aos brinquedos e brincadeiras, tendo todo o território à nossa disposição. Algumas vezes, um adulto parava para nos ensinar alguma diversão do tempo dele. Tio Dário, já idoso, era um desses. Me lembro agora de uma ocasião em que ele, vendo a molecada fazer flexões na areia da praia, quis também se exercitar do mesmo modo. "Não aguento mais essa brincadeira de corre cipó, mas isso de abaixar e se levantar eu ainda consigo".  Achamos legal aquilo, do seu esforço em nos imitar. No final, nos juntamos para auxiliá-lo a se erguer do chão. Em seguida nós lhe fizemos companhia até onde era a sua casa, pois a noite chegara e ele não enxergava bem o caminho.


    Noutra ocasião, o Joaquim, pai do Arvinho e Zairinho, entrou na roda da criançada, brincou de passa anel e puxou depois o momento das adivinhações. Eis algumas daquele tempo que certamente continuam fazendo parte de muitos momentos de convivência do nosso povo:


1- O que é uma casa caiada, menina amarela, tem porta fechada e ninguém entra nela?


2- "Me visto em traje de morto pra ir prender os vivos; o meu direito é ser torto, não prendo sem ser prendido". Quem é ?


3- "Somos diversos irmão, moramos todos num só ruado, se um de nós erra a casa, todos os outros ficam errados". Quem são esses ?


4- O que é: altas torres com ricos penachos; cachos nas torres e água nos cachos?


5- O que tem pé redondo, mas deixa rastro comprido?


6- Que filho nasce antes da mãe?


7- O que sai de casa para fazer barulho no mato?


8- O que é arco redondo de bom parecer que carpinteiro nenhum não sabe fazer?


9- O que é que corre, corre, corre...chega no limpo e morre?


10- Quem é que a mãe é uma santinha, mas os filhos são uns sacizinhos?

domingo, 14 de novembro de 2021

IMAGENS E FATOS QUE APELAM

Imagens falam conosco - Arquivo Ubatuba

    Eu sempre soube da existência de um grande morro ali, no bairro Acaraú. Até recentemente era visível a base dele até do outro lado da pista. O casal Neli/Garoçá, cuja moradia se localizava em outro extremo do mesmo morro, eu conheci muito bem. Por ali também moravam Janguinho/Santana, Élvio e seus pais etc.  Mas ideia da altura do Morro do Acaraú eu tive mesmo diante de uma fotografia antiga da capela do Itaguá, tendo-o ao fundo. Não imaginava ser tão alto. Busquei saber mais, tentei explicar acerca do possível tanto de terra que saiu daquele lugar para aterrar áreas de mangue e de grandes brejos que se estendiam desde o Itaguá até a Barra da Lagoa. Quem não consegue ter noção do mundo de aterro que soterrou espécies únicas de peixes e outros animais? Quantas toneladas de barro e pedras deixaram caxetais (ou simarubais) inteiros soterrados, se decompondo sem servir às práticas artesanais e à subsistência das famílias caiçaras?

   Um dia, a imagem acima chegou até mim. Ali estava o Morro do Acaraú bem evidente, entre as praias Grande e Itaguá: "É o que está um dedinho abaixo das letras Uba, de Ubatuba. Preste atenção, veja que tudo está plano ao redor dele". Nesta semana, passando de ônibus rapidamente, fiz um esforço para registrar os estertores do Morro do Acaraú. Depois de muitos anos resistindo ao lado de edifícios já construídos sobre as pedras-bases do morro, o último pedaço dele vai sumindo. Certamente outra edificação enorme surgirá ali, bem na rotatória Acaraú-Praia Grande, às margens da BR-101. Quem vai imaginar, depois da urbanização total, que ali existiu um lindo morro? Foi-se, assim como desapareceu a maior beleza do Morro da Mina (no bairro da Estufa), do Morro dos Índios (no Parque Vivamar), da lagoa no Morro da Ocaraçu (na Prainha do Padre), do Morro do Cemitério dos Escravos (no Caminho das Ruínas da Lagoinha), do Morro da Timbuíba (no canto da Lagoinha) etc.
Na rotatória Acaraú-Praia Grande - Arquivo JRS


   Desconfio que muitas áreas maravilhosas do nosso ambiente ubatubense ainda serão sacrificadas, mesmo tendo tanta gente se compondo na resistência. Quantos anos ainda restarão aos brejos, às ínfimas ilhas de fauna e flora remanescentes por toda a extensão do município? Será que custa entender que são pérolas ambientais tudo isso, que merecem ser tombadas?  Quanto de turismo e de educação ambiental pode atrair uma várzea preservada? Querer conhecer e mostrar às gerações vindouras as características que originaram a cultura caiçara em Ubatuba é um desafio nosso. Se importar com tantos outros seres dessas áreas únicas é saber que somos interdependentes nessa caiçara natural composta pela serra e o mar. Enfim, os espaços de vidas não deveriam virar espaços de mortes. O que você acha disto tudo? 
 

sexta-feira, 12 de novembro de 2021

FESTA NOSSA?

   

Orelha de pau,onde vive saci - Arquivo JRS


     A colega Fia, sem muito entusiasmo, chegou com a novidade: "Na sexta-feira,  haverá na escola uma festa de Halloween.  Até já vejo a bagunça que a moçada vai fazer". Então me espantei: "Agora, quase uma quinzena depois da data?". 

   Halloween, para quem não sabe, trata-se de uma festa recente no Brasil. Para resistir a esse aspecto na americanização "abraçada" por tanta gente, foi estabelecido, desde 2003, que o dia 31 de outubro é o Dia do Saci. Será que os professores sabem disso, já refletem a respeito e se empenham nas comemorações do folclore nacional?

   Voltemos ao Halloween. A etimologia diz que a palavra deriva de duas outras: hallow + evening = véspera do dia de todos os santos. Na verdade, trata-se de cristianização de uma comemoração de povos antigos, dos celtas, da Samhaim celebrada no fim do verão. Era o dia do retorno dos mortos, dos antepassados,  à vida para atormentar. Para afugentá-los, as casas eram decoradas com adereços macabros. Tem sentido, então,  os descendentes dos irlandeses e ingleses comemorarem o Halloween. Mas, os brasileiros, não soa uma alienação medonha, ainda mais longe da data real? Naquele momento perguntei à Fia: "Festa junina e outros eventos alegres relacionados à nossa cultura também acontecem nessa empolgação?  "Lógico que não,  Zé! ". "Eu já sabia. Fiz a pergunta só para mais gente pensar".


quinta-feira, 11 de novembro de 2021

AREIA E MAR

Desobstrução da barra - Arquivo JRS

     Areia e mar, areia e mar, areia e mar... E lá vem a máquina furiosa para romper a lagoa que vai enchendo tudo e se esparramando pelas ruas próximas,  pelos quintais e estacionamentos. Pergunto ao velho pescador se foi sempre assim. "Não senhor! Antigamente não havia a ponte e essa barreira de pedra que teima em querer que a boca-da- barra corra reto, desemboque imediatamente no mar. Mas a coisa não é assim, rapaz.  O rio é vivo, caminha no mangue, se arrasta no jundu e rebola quando sente as lambidas do mar. Antes ele corria à vontade, vivia desbeiçando para o lado que queria. A lagoa que se formava era uma beleza, vivia cheia de peixes. Robalo era demais o ano todo. Tainha tinha de monte no tempo dela. De uns anos para cá, tudo aquilo virou isso que você está vendo. Peixe é pouco; tem tilápia, parati e mais nada. Veja que nem o biguá se esforça para comparecer. Só a areia trazida pelas ondas não se intimida e quer continuar nas suas artes. O artista é o mar; a areia é o material que se molda assim para que tenhamos sempre esse espetáculo em nosso chão ".

segunda-feira, 8 de novembro de 2021

VIVÊNCIAS MARCANTES

   

Barraca no jundu - Arquivo JRS

      Eu estava lendo até agorinha mesmo uma entrevista com Isabel Palumbo, do Projeto Treboada, da cidade de São Sebastião. Coisa linda! Gostei da resposta diante da pergunta acerca da importância de trazer as culturas locais para a educação escolar. "Eu vejo como essencial trazer esse material às escolas. A maioria das crianças que está na rede municipal local não tem conhecimento dessa cultura. Esse é um patrimônio que vem do século passado, 1950, 60… Um universo que está muito longe delas. É importantíssimo que essas crianças e jovens conheçam o histórico cultural da cidade em que vivem. Mesmo porque há muitos estudantes que vieram de outros lugares. É essencial que conheçam a cultura local até para criarem um vínculo afetivo com esse território onde estão vivendo".

    Em outra ocasião, passando pela orla da praia, avistei uma barraca grande, parecendo ser de gente que veio de outra cidade. Pensei, após ver os equipamentos instalados: "Tá com jeito que que irá ficar ali por vários dias aquela barraca". Perto dela um homem escovava os dentes; pouca coisa mais distante, na beira do rio, duas crianças se divertiam com um prancha de isopor. Quero acreditar que essa família, temporariamente instalada no jundu, está desenvolvendo atitudes coerentes em relação ao meio ambiente e à sua preservação, irá se aproximar mais da cultura caiçara. Acampar em família, sob tais condições, é muito diferente de poder se instalar em uma confortável casa fixada na orla da praia, cercada de muros e até contando com segurança particular. E mais: trata-se de usurpação de um espaço público, vital à cultura caiçara e ao lazer das classes populares. Lembrei-me agora de um amigo que, desde pequeno, se deslocava do Vale do Paraíba e passava temporadas  com a família na beira do mar, junto aos ranchos das canoas  na praia da Barra Seca. Hoje, aquele menino de outros tempos, graças às vivências possibilitadas pelos pais e comunidade caiçara, é um importante aliado das nossas causas. Vive devotado às lutas populares, encabeça movimentos pela VIDA.

      Chamo de vivências marcantes tais experiências, tipo assim possibilitado pelos pais daquela barraca. Em outro tempo, vinte e cinco ou trinta anos passados, havia um programa da Secretaria Estadual da Educação do Estado de São Paulo que promovia intercâmbio entre interior e litoral. Muitas crianças/adolescentes conheceram outras realidades graças a essa iniciativa. Quantas vezes nossas escolas acolheram alunos do interior? Inúmeras! Muitos alunos caiçaras tiveram, naquele tempo, a única oportunidade de viajar e conhecer cidades do interior do Estado! Por que parou?

domingo, 7 de novembro de 2021

A VOLTA DA COBRA

Arte em casa - Arquivo JRS

   

      Clemente, gente do Donato, no espaço da "feira de sábado", me parou para comentar a respeito da cobra engarrafada. Transcrevo o assunto dele:

    "Eu li a crônica, Zé. Naquela ocasião, da cobra engarrafada das Toninhas, eu também estava lá, era servente de pedreiro, trabalhava com o Chico. Você acredita que, no fim do dia, ao removermos a pedra atirada sobre a garrafa, só havia cacos de vidros e nada da cobra? Tenho quase certeza que ele continua viva e fazendo maldades".

    Após ouvir o meu amigo, tendo terminado o serviço que fui fazer, retornei para casa imaginando uma atualização da referida crônica. Se a cobra não foi encontrada morta, é bem possível que ela esteja viva apesar de tanto tempo. Espaço é que não falta! Até imaginei uma continuação da história, nos moldes de tradição de encantamento. Seria esta: uma pessoa maldosa foi amaldiçoada, transformada em cobra e aprisionada em uma garrafa. Depois foi abandonada, condenada a ficar para a eternidade no fundo lamacento de um brejo. Após muito tempo, tendo sido encontrada pelos trabalhadores, uma pedra a libertou, quebrou o encanto que a aprisionava e ela voltou ao nosso tempo. Estranhou as mudanças, não reconheceu ninguém, mas notou que outras pessoas cultivavam gênio igual ao seu, ou seja: disposto às maldades. Se sentindo à vontade e se compondo com tantos pares facilmente encontráveis na atualidade, essa ex-encantada está se realizando com um potencial aumentado muitas vezes (graças ao tempo em que foi cobra sustentada pelo próprio veneno dentro da garrafa). Pior: ela repassa aos que cultivam igual índole seu tesouro acumulado. Vez ou outra você não percebe ajuntamentos para potencializar maldades ao seu redor? Pois é! Estou quase concordando com o Clemente! A cobra da garrafa pode estar viva e arregimentando outras cobras para alcançar seu objetivo maior que é de disseminar o discurso de ódio, de infernizar a vida de todos. Essas demais cobrinhas alimentam a cobra maior. Trata-se de um ciclo do mal sendo atualizado, se valendo, inclusive, de toda a tecnologia disponível nas suas estratégias. Valeu, Clemente!

sábado, 6 de novembro de 2021

A VERDADE COMPROMETE


Arte em Inhotim - Arquivo JRS

     Era tempo de campanha eleitoral no município. Ano: 1982. José Maurício, meu conhecido, era candidato a vereador. Naquele tempo, nenhum dos meus irmãos ainda se engajara na política com firmeza. Entre coisas sérias e brincadeiras eu disse ao Zé que o apoiaria, juntamente com a dona Ester Bueno para prefeita. Ele me agradeceu muito e logo foi pensando em reuniões para participar, em lugares para visitar, como se isso fosse fazer grande diferença nos resultados da eleição próxima. E saiu me puxando em direção à praça Maracanã, na Estufa, pois  ouvira dizer de um ensaio de congada na casa do Fortunato, um mestre originário do sertão do Puruba. De fato, lá estava o Nísio, o Decão, o Tobias e mais outros já segurando seus cacetes para manejar. Naquele tempo tudo aquilo era praça mesmo, onde a população local aproveitava bem. (Hoje é um campo de futebol fechado, sede da associação de moradores). Até o Totonho do Rio Abaixo se encontrava entre os presentes. Pensei naquela hora: "O que esse safado, esse aproveitador e mentiroso está fazendo aqui, entre essa gente boa?". Era o único caipira entre caiçaras.

  Houve um tempo para as apresentações. Tobias de Jesus, pai do Ostinho, um dos presentes, era liderança do bairro e compunha o grupo original dos dançadores. Zé Maurício explicou rapidamente seu partido e seus projetos que tinha em mente. Em seguida, quando a viola e o pandeiro se fizeram ouvir, o ensaio começou. Até Totonho estava empolgado para aprender os manejos da   dança da congada. O candidato apresentado por mim também entrou e fez bonito, direitinho em todas s evoluções. Já o Totonho, cansei de ver as bordoadas que recebera nos dedos. No fim de tudo, o anfitrião Fortunato, "dono do apito", tomou a palavra: "Estou satisfeito pelo ensaio, por terem se esforçado no manejo. Notei que apenas um de nós não se concentrou. Quando isso acontece, posso afirmar que é porque o pensamento está em outra coisa. Será em torno daquilo que o seo Zé Maurício nos falou? Será porque estava pensando nas verdades que podem derrubar mentiras?".  Dei um sorriso, pois eu sabia que o mestre da dança repudiava o ser mentiroso do Totonho. (Certamente que ele sabia que a verdade compromete o nosso ser mais do que a mentira, e, que muitos dali tinham consciência do quanto ele era mentiroso). Naquela eleição, diante dos exíguos votos dados à dona Ester, Zé Maurício, Plínio e outros, percebi o quanto temos de caiçaras conservadores, que preferem apoiar os que enganam em vez de se comprometerem com a verdade que nos conduz às lutas pela nossa cultura e pelo nosso território. Quem se regozija com isso são os que querem continuar explorando impunemente. Resumindo: entender política é enxergar muito além de um palmo do próprio nariz; é se comprometer com a verdade e tê-la como um  farol na navegação segura. 

sexta-feira, 5 de novembro de 2021

O QUE O MAR NOS DEU HOJE

 

Praia do Itaguá - Ubatuba  (Arquivo JRS)


     Daqui, minha família, contemplei muitas vezes homens pescando, crianças brincando, jovens se divertindo, pessoas proseando e muita gente namorando. Seo Florindo Teixeira Leite, nosso vizinho na Estufa, saía de casa ainda no escuro a cada dia para a sua devoção à pesca. Era o primeiro a chegar no rancho das canoas, pouco antes do Aládio, dois pescadores da geração que viu nascer o século XX. Os mais jovens chegavam depois, quando as canoas já estavam no lagamar, prontas para seguirem nas remadas mar afora. 

   Daqui, minha família, contemplei lindos lanços de redes em suas farturas de peixes. Certa vez, bem defronte ao Porto da Capela, uma trancada de gonguitos, uma espécie de bagre muito apreciado para comer cozido e fazer pirão, me impressionou bastante. Para quem não sabe, qualquer espécie de bagre costuma dar trabalho quando cai em redes porque tem ferrões que o travam entre si e nas malhas. Não tem como retirar bagre depressa de rede. É exigida muita paciência do pescador, pois senão rasga as malhas, causa mais confusão, atrasa a pescaria.  Naquela manhã, era muito grande o cardume de gonguito cercado pelos pescadores da praia do Itaguá. Florindo, Aládio e os demais companheiros da rede se desesperaram quando viram tantos gonguitos. Coisa linda! E agora? Encheram os balaios, chamaram as pessoas que iam passando para pegarem o quanto quisessem, mas ainda era muita quantidade que enchia a rede. Tente imaginar quantos eram ajuntados na areia monazítica dali, onde costumávamos nos deparar com gente enterrada em boa parte dos corpos por acreditarem nas propriedades medicinais daquela areia preta, repleta de mirim que dava trabalho para serem removidos até na hora do banho. Voltando ao lanço de rede marcante (porque era muito bagre e porque demorou muito), foi chegando gente de lugares mais distantes, em bicicletas ou a pé, enchendo sacolas num vai-e-vem sem fim. Aos poucos aquele tanto de peixe foi se indo, sendo aproveitado por pessoas pobres como nós. Florindo e os outros desacorçoaram, sentaram-se debaixo da amendoeira vendo a movimentação e gritando de vez em quando: "Cuidado com os ferrões e tirem os peixes sem estragarem as malhas. Façam bom proveito disso tudo que o mar nos deu hoje". Foi um amanhã toda em apenas um lanço de rede. Nunca vi igual.

terça-feira, 2 de novembro de 2021

QUEM NÃO TEM SEDE?

Se divertindo na praça (Arquivo JRS)

 

    Tem coisa que parece fácil de ser resolvido.Por exemplo: dar um copo de água para quem está com sede. Funcionários públicos, que esporadicamente estão em serviço por nossas ruas, costumam chamar ao portão e perguntar se não tem uma água geladinha para lhes servir. É um prazer realizar esse mínimo ato. Mas agora eu estou me referindo a quem anda pelas ruas de nossa cidade, se abriga pelos beirais de casa, em varandas de pontos comerciais, pelas praias, debaixo de árvores ou debaixo de pontes. A esses, as pessoas não desejam nem enxergar nos portões, têm medo, não suportam o fedor etc. 
    
    Antigamente, as cidades tinham seus chafarizes justamente para oferecerem água fresca e boa para matar a sede. Algumas localidades pelo Brasil afora ainda as preservam como monumentos. Porém, estive em uma cidade em que, administradores mais populares, atentos às necessidades de esportistas, de transeuntes ou de moradores de ruas, instalaram bebedouros pelas praças. Trata-se de São José dos Campos, no Vale do Paraíba. Foi assim que descobri: depois de almoçarmos, bem no centro da cidade, eu e a esposa fomos nos sentar num banco da pequena praça próxima, bem arborizada e pavimentada, com banca de jornais e revistas e mais gente tendo a mesma necessidade que nós, desejando descansar. Nisso chega uma jovem pedindo algo para comer. Lhe entrego duas maças. Ela agradece e se dirige à esquina, onde havia uma coluna fincada. É quando eu noto ser um bebedouro. Ali ela lava as frutas, refresca o rosto, bebe  água e segue seu caminho mastigando satisfeita aquilo que lhe demos. Reparei em seguida que mais gente, inclusive uns jovens que conversavam alegremente no assento vizinho, procuraram a fonte para beber e abastecer suas garrafinhas com o precioso líquido. Não nos demoramos por ali; fomos dar outra volta, conhecer outros pontos da cidade. Tínhamos tempo, pois nossa filha estaria na faculdade, fazendo provas até quase o anoitecer. Rodamos alguns minutos e chegamos em outra praça, num bairro aparentemente de gente mais rica. Escolhemos uma sombra e tentamos cochilar um pouco. Eu não consegui porque me interessei pela movimentação no lugar: crianças pedalavam, famílias traziam seus cães, idosos conversavam pelos bancos, pais jogavam bolas com seus filhos... Enfim, deduzi que todos estavam ali para poder aproveitar o restante da tarde em convivência com familiares, parentes e amigos. Agora vem o que interessa neste texto: a poucos metros de onde estávamos, um bebedouro bem mais frequentado do que o avistado no logradouro anterior (porque as atividades físicas dão mais sede). Para ali acorriam crianças e adultos. Ah! A fonte também foi pensada em servir aos animais! Na base dela havia uma espécie de bacia e uma torneira que a abastecia. Regularmente alguém chegava trazendo seu animal de estimação para matar a sede e se molhar um pouco. Então pergunto: o que falta a um prefeito, a uma gestão municipal, oferecer serviço tão essencial? Não seria mais humano colocar mais bancos por nossas praças e instalar bebedouros, dar água a quem tem sede? Novamente volta à nossa decisão: abraçar o discurso de ódio ou cultivar o amor? Fazer algo pelos vivos ou ser hipócrita e apenas cultuar os mortos?

segunda-feira, 1 de novembro de 2021

MEIO AMBIENTE

 

Arte no muro - Arquivo JRS

   Novamente começa,  na Escócia,  outro encontro mundial sobre o meio ambiente. Pessoas interessadas e/ou preocupadas se farão presentes, estudarão, darão contribuições neste assunto. Com certeza, haverá uma linha científica atenta aos saberes tradicionais, querendo uma gestão participativa entre as comunidades tradicionais e os governos, onde seja investido mais na valorização de tais saberes e não na sua perseguição, na extinção de povos inteiros e de saberes milenares. Creio ser muito importante a comunidade internacional se voltar aos detalhes regionais, às diversidades. Outros saberes precisam ganhar status fora do academicismo, do eurocentrismo etc. Assim, se dá de fato, o reconhecimento político de povos que sequer sabíamos de suas existências. Surge o desafio de olhar outros territórios com respeito, de garantir suas posses a quem de fato pertence, pois neles se desenvolveram culturas únicas, conforme o meio ambiente, a ocupação histórica primordial e as contribuições vindouras. De repente, "modernizar", "desenvolver", "integrar" e outros termos recorrentes na justificativas de intervenções merecem ser questionados, revistos até. Mediante as ondas desenvolvimentistas no território caiçara, sobretudo dos séculos XX e XXI, cabe ao menos uma reflexão: houve, nessas ondas, preocupação com a realidades local, humana ou ambiental?

    Quando ouço estudos se referindo aos saberes caiçaras, penso nos direitos de propriedade intelectual. Me pergunto se tais pesquisadores estão dispostos a lutarem do lado das comunidades que lhes forneceram tais conhecimentos, tais fundamentos de suas arguições científicas. Será que o meu povo caiçara está recebendo dividendos por compartilhar suas riquezas, inclusive ao turismo que se edifica pelas belezas e purezas das paisagens preservadas, das nossas manifestações culturais? E o que dizer daquelas práticas que, mediante o uso da razão e do pragmatismo, agora são julgadas como danosas: elas receberão compensação e apoio técnico para poderem ser redirecionadas?
    
   Certamente a cultura caiçara não estará representada na Escócia. E, se dependesse do governo atual do Brasil, nem estaria na Escócia os representantes brasileiros realmente preocupados com o meio ambiente e com a vida às futuras gerações do planeta Terra. (A  máxima dele é escancarar as porteiras e garantir capim ao gado). Porém, acredito que haverá muita gente defendendo os valores essenciais tão caros às comunidades que não puderam comparecer ao fórum. Aguardo sempre desdobramentos favoráveis a nós e a todos herdeiros de saberes ecológicos, de visões de mundo que podem permitir encontrar modelos ecologicamente benéficos à humanidade. É o que necessitamos urgentemente!

   Tenha certeza, meu povo, de que essas articulações e esses eventos (museu caiçara, fandango, mostra e fórum de saberes tradicionais etc.) são práticas de cidadania muito maior do que imaginamos. Delas nos valemos para não esmorecer frente aos desafios ao nosso território. A elas recorremos para oferecer ao mundo algumas pistas para que todos tenham vida.