segunda-feira, 7 de setembro de 2020

SOPA D’ÁGUA

Pesca de cerco (Arquivo Chieus)


                A farinha de mandioca, o peixe e a banana constituíam a nossa garantia alimentar número 1, que nunca podia faltar nas casas dos caiçaras. Meus avós nunca deixavam de almoçar e jantar uma boa porção de escaldado (pirão) que geralmente era de peixe, mas podia ser de alguma criação do quintal ou até mesmo de carne de caça. Arroz, para esses mais antigos, era pouco usado, quando muito enfeitando borda do prato.

                Farinha era fartura mesmo! No começo da segunda metade do ano, as plantações eram feitas. Imediatamente as ramas brotavam e cresciam sempre vigiadas devido aos ataques das saúvas. Uma safra sucedia a outra; toda semana tinha alguém fazendo farinha nos arredores para consumo e venda nas mercearias do centro da cidade. Peixe era guardado: quando seco em balaios, quando sapresado em gamelas. Naquele tempo não tínhamos energia elétrica e nem geladeira. Desse modo, era esse o procedimento para se garantir entre as pescarias, além de poder variar os modos de preparo do peixe nosso de cada dia.

                Peixe sapreso é peixe deixado na salmoura, em gamela de madeira, para ser comido em ocasião futura, em receita especial. No caso, a sopa d’água. Papai e mamãe faziam de vez em quando e comiam com um misto de prazer e saudade. Meus avós se alimentavam mais regularmente de sopa d’água. Se não me falha a memória, era simples assim: cozinhava aquele peixe salgado após lavar em água fria. A farinha de mandioca simplesmente era despejada em um prato com água fria. Quem gostava de pimenta, amassava-as no prato. Depois era só comer aquela sopa acompanhada do peixe que estava pronto no caldeirão. Mas de onde veio este hábito que hoje nem quase se fala mais? Achei a possível resposta para a origem da sopa d’água no tempo do tráfico negreiro. Os africanos trazidos pelos portugueses eram melhor tratados na travessia. Eles visavam os lucros com escravos sadios. Laurentino Gomes registrou assim:

                “Cuidam e alimentam melhor, o que lhes permite obter lucro duas vezes maior na hora da venda dos cativos. Eles lavam o deque do navio todos os dias com vinagre ruim. Preparam alimentos quentes duas vezes ao dia para os cativos: o primeiro com feijões africanos, a segunda com milho bem cozido acrescido com uma grande concha de óleo de palma [dendê], tudo misturado com um pouco de sal e, às vezes, um bom pedaço de peixe salgado em cada prato. Durante o dia sempre há um pouco de farinha com água [...], além de oferecer duas ou três peças de tecido velho para que se protejam [do frio noturno]”.

                      Então, relembrando dos meus pais e avós, deduzo agora: a nossa raiz proveniente da África, necessitava relembrar daqueles momentos de sofrimento do tempo da escravidão. A sopa d'água entrava como componente de um ritual.

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