terça-feira, 15 de setembro de 2020

A FORÇA DAS LENDAS

 

Grupo da Folia do Divino - Capela da Marafunda 2005 (Arquivo Luzia)


                No ano de 1267, numa cidade italiana, um frade mendicante faz um sermão através de uma história divertida e edificante, pertencente ao gênero literário conhecido por exemplum, retirada de um texto recém-concluído chamado Legendae sanctorum, vulgo histoira lombardica dicta. Seu autor também era um mendicante, Jacopo, nascido em 1226 na cidade de Varazze, próxima a Gênova.

                Autor de muitos sermões e de uma importante Crônica de Gênova escrita em 1293, sua grande obra, foi a coletânea hagiográfica que ficaria conhecida por Legenda áurea. Isto é, um conjunto de textos (legenda: aquilo que deve ser lido), também tinha o sentido de “leitura da vida de santos”) de grande valor (daí áurea, “de ouro”) moral e pedagógico. O objetivo imediato de Jacopo de Varazze era fornecer aos seus colegas de hábito, os dominicanos ou frades pregadores, material para a elaboração de seus sermões. Material teologicamente correto, isento de qualquer contágio herético, mas também compreensível e agradável aos leigos que ouviriam a pregação. E, detalhe, a atemporalidade dos fatos relatados, faz com que o conteúdo da sua obra principal – Legenda áurea – fosse recorrida ao longo dos séculos vindouros pela religião católica. Assim chegou até nós o evento da Exaltação da Santa Cruz, padroeira do município de Ubatuba, festejada no dia 14 de setembro.

               Da Legenda áurea  retirei um texto mínimo para que sintamos a força da legenda até os nossos dias. De legenda se origina a palavra lenda, uma história muito antiga que vai passando pelas gerações. As legendas (lendas) eram contadas para explicar aquilo que não se conhecia a causa. Portanto, não sabemos o que de fato é real numa lenda.

                A Exaltação da Santa Cruz é assim chamada porque neste dia a fé e a Santa Cruz foram especialmente exaltadas. Note-se que antes da paixão de Cristo a cruz era vulgar, por ser feita de madeira comum, infrutífera, plantada no Monte Calvário onde nada frutificava; era ignóbil, por ser destinada ao suplício de ladrões; era tenebrosa, por ser feia e sem qualquer ornato; era mortífera, pois os homens eram colocados nela para morrer; era fétida, por ser plantada no meio de cadáveres. Depois da Paixão, foi exaltada de diversas formas, passando de vulgar a preciosa [...] A Exaltação da Santa Cruz é celebrada solenemente pela Igreja porque graças a ela a fé foi exaltada.

                Em Ubatuba, pelo que eu sei, algumas capelas capelas homenageiam a cruz: Cambury, Puruba, Marafunda, Sapê, Toninhas... Todas elas irradiadas da Igreja Exaltação da Santa Cruz, no centro da cidade. Com toda certeza, colocar a inauguração da Matriz (no ano de 1886) no “Dia da Paz de Yperoig”, tinha somente o motivo de comemorar a vitória da fé (e da guerra!) dos “nossos pais portugueses” sobre os “gentios da terra”, os tupinambás (primeiros moradores deste chão). Na praia do Cruzeiro (Yperoig) a fé católica triunfou, os índios foram derrotados, a vila nasceu. Se a lenda dizia que a cruz sempre venceu, agora não poderia ser diferente.  Até recentemente, todas as praias em Ubatuba tinham o seu Porto do Cruzeiro, a sua cruz olhando para o mar, invocando a proteção aos moradores daqueles lugares habitados pelo povo caiçara.

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