Nuvens demais (Arquivo JRS) |
De vez em quando, na minha infância, assim como nos dias de hoje, o tempo virava
de repente, ficava feio; uma escuridão parecia querer acabar com o dia. Em ocasião
assim, vovô Armiro dizia: “Quem tá no mar,
nessa hora vem desesperado para a
praia. Já escureceu tudo. É lá do lado
da Bocaina [serra ao Norte] que a coisa vem. Hoje bem cedo já se armava lá na Bocaina”. Nós, toda a
netalhada, crianças ainda, silenciávamos. Alguém dos adultos acendia uma vela
no oratório. Não tinha como não ficar com medo, apreensivo com algo ruim que se
aproximava. Outro alerta que era feito por ele ocasionalmente era do vento de
Sul: “O tempo virou, vem aí vento forte. Se cair forte mesmo, como é de costume, deita todo
o nosso bananal que fica na divisa com o Dito Selidônio. Pouca coisa escapa de
vento de Sul”.
Assim era a vida de
quem dependia da roça e pesca: tinha de estar atento à natureza. Era costume
sair de casa a cada amanhecer olhando para o céu, sentido o ar e botando reparo
no comportamento dos passarinhos. Gerações e gerações precisaram desenvolver
e cultivar esse sentido (de percepção
dos fenômenos da natureza). Por isso sabiam tanto das marés, dos ventos, das
chuvas etc. Sabiam como escolher a época
melhor para derrubar árvores destinadas à construção de casas e canoas. Além
disso tudo, os antigos caiçaras sentiam a necessidade de comentar seus sonhos,
como se os outros pudessem ajudar a interpretá-los. Coisa comum era, na hora do
café, bem cedo, cada um ter um sonho daquela noite para compartilhar em torno
da mesa. Me lembro de um desses momentos, estando na cozinha com vovó Eugênia e
vovô Armiro, escutei dela o seguinte: “Hoje
ninguém deveria ir pescar. Sabe por quê? É que eu sonhei com o Sol se escurecendo
ao mesmo tempo que um vento forte chegou derrubando árvores no jundu. É uma
tormenta medonha que vem chegando. É dia que não presta para sair no mar”. Prontamente o vovô deixou a mesa: “Vou agora mesmo dizer isso ao compadre Maneco Mesquita porque ele e a comadre Bertolina estão se preparando para ir na roça do Mar Virado, mas antes pensam curricar no Lage da
Ponta”. E foi saindo todo afobado pelo caminho, entre os bananais. Não demorou
muito para voltar e dizer que deu tempo e eles lhes deram ouvidos. E
completou: “O seu sonho tá certo,
Eugênia. Vem coisa feia por aí. Saia agora no terreiro e olhe lá para o lado da Bocaina e veja o cu
preto que já se forma. Hoje ninguém vai
à roça e muito menos ao mar. Não tem precisão nenhuma disso”. E foi assim
mesmo naquele dia! O mundo parecia querer se acabar naquele tempo distante.
Duas grandes amendoeiras não aguentaram a força do vento, tombaram na praia. Tivemos muita madeira
para gamelas e lenha para a próxima festa de São João, padroeiro da Fortaleza, a praia onde mamãe nasceu. É por isso que, ainda hoje, ao perceber o tempo se escurecendo, parece
que vejo o vovô nos alertando acerca de tempo ruim do lado da Bocaina, chamando a atenção para o tal de
“cu preto”.
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