segunda-feira, 31 de agosto de 2020

ESGOTO COMO OFERTA?



            Para quem não sabe, a capela da Santa Rita se localiza na praia da Enseada, mas foi trazida há mais de setenta anos da praia da Santa Rita, em Ubatuba. Por interesses imobiliários, algumas poucas pessoas sem escrúpulos se aproveitaram da ingenuidade dos poucos moradores, negociaram com o pároco e transferiram a Santa Rita para uma nova capela, deixando o campo livre para toda a praia ser imediatamente vendida. “A nossa santa foi desterrada. Os poucos moradores dali seguiram para as praias vizinhas. Tudo aquilo virou deserto, o mato tomou conta das roças, as casas se acabaram no abandono. Foi um acordo do padre com o Maciel, o Bráulio Santos e mais alguém que eu não sei do nome”, assim me contou a Dona Santa, uma pescadora que se casou com o Argemiro, gente que findou seus dias no Perequê-mirim. “A capela era movimentada, tinha reza sempre. Muita gente comparecia na festa da Santa. Agora, ali é de gente rica, de ricaços da capital”. Recentemente, lendo uma denúncia do Peter (canoadepau.blogspot.com), tudo vai confirmando o que alertamos faz tempo: o mar vai virando esgoto. Vou postar a notícia (do dia 06 de agosto de 2020):

Oferta à santa (Arquivo Peter)

VARRENDO ESGOTO PRA DEBAIXO DO BUEIRO
Agosto de 2020, Praia da Enseada, Rua Santa Rita, Ubatuba - SP
INACREDITÁVEL!!
Nos últimos dias vários caminhões do tipo limpa fossa estão descarregando esgoto diretamente no bueiro da esquina da Rua Luzia Maciel Leite com a Rua Santa Rita (foto). Tudo isso está indo diretamente para o mar que está a 50 metros de distância. Existe um emissário irregular nesta rua que já não dá mais conta do volume normal, imagine de vários caminhões.

            Já escrevi em outra ocasião que, no começo da década de 1980, a pedido do Jorge e Dona Maria, zeladores da capela linda da fotografia, eu e papai fizemos o forro todo. É o que existe até hoje, sob cuidados de Nelson de Góis, segundo o amigo Elder Giraud. Foi a nossa oferta naquela ocasião, bem diferente do que agora está sendo ofertada à Santa e ao lugar de tanta gente nossa. Vale a pena conferir a beleza do lugar, o aconchego do recanto reservado à Santa Rita desterrada. O que não vale é o descaso de tanta gente com a linda praia da Enseada e à natureza em geral. Parabéns Peter por estar atento!


domingo, 30 de agosto de 2020

VEM DO LADO DA BOCAINA


 
Vovô Armiro (Arquivo JRS)

Nuvens demais (Arquivo JRS)

                De vez em quando, na minha infância, assim como nos dias de hoje, o tempo virava de repente, ficava feio; uma escuridão parecia querer acabar com o dia. Em ocasião assim, vovô Armiro dizia: “Quem tá no mar, nessa hora vem desesperado para a praia.  Já escureceu tudo. É lá do lado da Bocaina [serra ao Norte] que a coisa vem. Hoje bem cedo já se armava  lá na Bocaina”. Nós, toda a netalhada, crianças ainda, silenciávamos. Alguém dos adultos acendia uma vela no oratório. Não tinha como não ficar com medo, apreensivo com algo ruim que se aproximava. Outro alerta que era feito por ele ocasionalmente era do vento de Sul: “O tempo virou, vem aí vento forte. Se cair forte mesmo, como é de costume, deita todo o nosso bananal que fica na divisa com o Dito Selidônio. Pouca coisa escapa de vento de Sul”.  

            Assim era a vida de quem dependia da roça e pesca: tinha de estar atento à natureza. Era costume sair de casa a cada amanhecer olhando para o céu, sentido o ar e botando reparo no comportamento dos passarinhos. Gerações e gerações precisaram desenvolver e  cultivar esse sentido (de percepção dos fenômenos da natureza). Por isso sabiam tanto das marés, dos ventos, das chuvas etc. Sabiam como  escolher a época melhor para derrubar árvores destinadas à construção de casas e canoas. Além disso tudo, os antigos caiçaras sentiam a necessidade de comentar seus sonhos, como se os outros pudessem ajudar a interpretá-los. Coisa comum era, na hora do café, bem cedo, cada um ter um sonho daquela noite para compartilhar em torno da mesa. Me lembro de um desses momentos, estando na cozinha com vovó Eugênia e vovô Armiro, escutei dela o seguinte: “Hoje ninguém deveria  ir pescar. Sabe por quê? É que eu sonhei com o Sol se escurecendo ao mesmo tempo que um vento forte chegou derrubando árvores no jundu. É uma tormenta medonha que vem chegando. É dia que não presta para sair no mar”. Prontamente o vovô deixou a mesa: “Vou agora mesmo dizer isso ao compadre Maneco Mesquita porque ele e a comadre Bertolina estão se preparando para ir na roça do Mar Virado, mas antes pensam curricar no Lage da Ponta”. E foi saindo todo afobado pelo caminho, entre os bananais. Não demorou muito para voltar e dizer que deu tempo e eles lhes deram ouvidos. E completou: “O seu sonho tá certo, Eugênia. Vem coisa feia por aí. Saia agora no terreiro e olhe lá para o lado da Bocaina e veja o cu preto que já  se forma. Hoje ninguém vai à roça e muito menos ao mar. Não tem precisão nenhuma disso”. E foi assim mesmo naquele dia! O mundo parecia querer se acabar naquele tempo distante. Duas grandes amendoeiras não aguentaram a força do vento, tombaram na praia. Tivemos muita madeira para gamelas e lenha para a próxima festa de São João, padroeiro da Fortaleza, a praia onde mamãe nasceu. É por isso que, ainda hoje, ao perceber o tempo se escurecendo, parece que vejo o vovô nos alertando acerca de tempo ruim do lado da Bocaina, chamando a atenção para o tal de “cu preto”.

sábado, 29 de agosto de 2020

É COISA ANTIGA, ESTAIS VENDO?

Prainha do Doca, entre as praias Dura e Vermelha (Arquivo JRS)



Herança dos antigos (Arquivo JRS)


                É costume meu, sobretudo quando estou nas minhas caminhadas, prestar mais atenção nas coisas. No meio do mato, então, reparo ainda mais em tudo! Tem detalhes interessantes nesses caminhos, nas trilhas deste chão caiçara, pelos lugares que ainda estão preservados dos invasores, das ocupações humanas. Tem ruínas de antigas fazendas, tem divisas de terras... É possível avistar árvores que imagino serem ainda do tempo dos tupinambás, grutas de pedras que podem ter vestígios da pré-história... Tenho certeza que essa nossa exuberante mata, com seus frutos, aves e animais, além de nos equilibrar, guardam remédios essenciais a serem descobertos.

                Quando eu me aventuro em caminhadas, sobretudo pelos caminhos de servidão, busco sinais de antigas ocupações, de cavas de casas e de árvores frutíferas. São os sinais mais evidentes de que outras gerações passaram por ali. E quase sempre me atenho ao chão, buscando restos de alguma coisa capaz de revelar algo mais.  Influências? Sim, quando crianças, ao ir com o meu pai cortar bambus na Prainha do Doca para a construção da nossa casa no morro da Fortaleza, me entusiasmei com o único morador dali. Ele nos levou mais para dentro da mata, de onde vinha um rio capaz de me encantar como todos os rios daquele tempo. Depois de um poço (onde o correr das águas, com o tempo formou um lugar fundo), ele nos conduziu a um espaço plano (uma cava no morro), com tijolos ainda inteiros e cacos de telhas. “É coisa antiga, estais vendo?”, esclareceu ele. “Algumas telhas lá de casa foram daqui. De vez em quando, quando preciso de tijolos, venho aqui buscar. Dentro do poço, ali embaixo, existe cacos interessantes, mostras do que possuía e fazia uso alguém que viveu aqui”. Meu pai também achou interessante tudo aquilo. Passamos aquele dia ali, cortando bambus, pois na semana seguinte o Getúlio, um caminhoneiro que buscava mensalmente as cargas de bananas nas praias (Brava e Fortaleza), distante uma légua dali, faria o favor de levar os bambus para o nosso trabalho, a nossa obra. No final, o pessoal terminaria a nossa nova moradia num animado pitirão.

                Daquela nossa casa não restou nada porque era pobre e outra lhe tomou o lugar. Somente uma mangueira plantada por papai deve estar ainda como sinal da nossa vivência naquele lugar, no morro da Fortaleza, onde começava a Badeja do Tio Custódio. Só posso dizer que, aquela fala do Doca, a sua empolgação para com os sinais na mata da sua prainha, me marcaram para sempre. Espaço de algumas das minhas heranças dos antigos. O que será agora de tudo aquilo?

sexta-feira, 28 de agosto de 2020

A DONA CAÇUROBA

Caçuroba na Cocanha (Arquivo JRS)


                Conversa de caçador é fácil de entender. Caçar é um instinto presente em nós, seres humanos. A minha Gal explica: “Está gravado em nós, faz parte do nosso inconsciente o nosso ser caçador. Por muito tempo tivemos necessidade de caçar para chegar ao que somos hoje. Por isso desenvolvemos e registramos em nosso ser esse aspecto, essas características. Exemplo: um grande grupo na cidade, uma multidão está passando na minha frente, cada qual dali com seu jeito único. Porém, no meio de tanta gente eu noto quem está mancando ou tem uma deficiência. Por quê? Porque eu tenho este registro de caçador, vejo onde está a presa mais fragilizada, possível de ser capturada por não poder correr como as demais. De onde vez esse sentido agudo? Do tempo distante, quando andávamos correndo atrás de alimentos. Não é assim que os animais caçam até hoje, buscando os filhotes, os animais mais velhos do bando, os distraídos?”.

                O povo caiçara também dependia da caça para completar a sua alimentação. Lembro-me bem dos caçadores mais próximos de mim: tio Tonico, Chico Lopes, João do Quito, Oscar e Alcides Nunes, Juventino, Dito Neves e outros que, após um dia de serviço, ainda tinham disposição para espiar bichos no mato até madrugada, esperando trazer um deles abatido, para variar a mistura. O finado Dito Graça, mais caçador do que roceiro e pescador, se justificava: “Eu caço porque fico desesperado, com vontade de comer carne vermelha; me dá mais sustância”.  Nos dias de hoje ainda tem gente elaborando estratégias para caçar pelas nossas matas, apesar das leis ambientais e das punições. Eu quero crer que os agentes pagos por nós estejam sempre atentos!

                Comecei este texto depois de escutar uma prosa, em frente a um portão, bem no centro da cidade. Um senhor, caiçara conhecido,  dizia para o outro: “A praia tá cheia de caçurobas [pomba rola]. Nesta hora (por volta das 17 horas), se você quiser, pode ir lá comprovar. Estão comendo alguma coisa pela areia, ciscando no chão. Sabe aonde vão dormir? Naquelas árvores, no Morro da Prainha! Pode ir lá de tardezinha para ver elas chegando, se empoleirando para passarem a noite ali. Se eu fosse mais moço, iria lá para caçar algumas e variar o de comer”. Foi então que eu ri sozinho por ter escutado a palavra caçuroba. É que na minha infância, uma senhora da vizinhança tinha esse apelido: era a Dona Maria Caçuroba. E não é que a mulher se parecia mesmo, tinha os trejeitos que lembrava a tal ave? A estatura, o jeito de andar dela lembrava caçuroba, esta espécie de pomba do mato tão singela. A Dona Maria xingava muito quando alguém a chamava assim. Ainda bem que, graças ao meu pai e à minha mãe, nós fomos educados para respeitar as pessoas. Dias desses, ao entardecer, irei à praia do Cruzeiro (Yperoig) para comprovar a informação. Será que as caçurobas estão virando pombas da cidade também?

quinta-feira, 27 de agosto de 2020

CAIÇARAS PASSANDO

Eu e Nízio: frio de cobrir os braços (Arquivo JRS)


               “Não é esta a rua. É a outra que não tem uma coisa grande amarela como aquela ali. Nesta rua, tá vendo ali?, tem a casa da passarinhada ao lado de onde é o médico de vistas. O dono da casa põe  água com açúcar, banana, mamão e quirera; todo tipo de passarinho passa o dia inteiro num vai e vem. Vamos atravessar depressa para ver de perto”. “Nossa! As mariquitas parecem despencar no bebedouro e subir feito ondas! Olha no prato do lado, cheio de rolinhas, canários e outros que nem sei os nomes!”. “E ali,então! Sanhaços, tiés, bonitos e outros estão na festança!”. Eu tenho de concordar: é um banquete na beira da rua. As duas mulheres estão perfeitas na empolgação. Eu estou lendo perto delas, no portão ao lado, num banquinho improvisado. Seus olhos brilhavam, suas cabeças se moviam pra lá e pra cá, pra cima e pra baixo. Passaram tempo ali encantadas pelos passarinhos coloridos, na farra pela bebida e comida que gente bondosa oferece. Na verdade, parei no número 16 esperando Nísio, o purubano. Ele é o pedreiro da obra. "Serão salas para alugar", segundo ele. “O meu genro é o proprietário, está fazendo aos poucos, conforme o dinheiro deixa”.

                Nízio é do sertão do Puruba, mas vive na Estufa II há mais de quatro décadas. Conheço suas filhas desde que nasceram. É dançador de congada da mesma turma dos saudosos Dito Fernandes, Pedro Brandão, Anastácio, Decão e outros tantos empolgados da Congada de São Benedito do Sertão do Puruba, que desceu a serra por influência de Cunha, o município vizinho.

                De repente uma das mulheres diz: “Ai, vamos embora, Juraci. Temos que ir  para outro lugar. Logo escurece, mas lá só tem claridade”. Dei uma piscada e não vi mais as duas, mas reconheci  pelas costas o Élcio Salomão. Logo desapareceu também. Será que sonhei embalado pelos pios dos passarinhos? Me dei conta que as duas de antes eram Cida e Juraci, primas que nos deixaram. Agora, acabou passando o Élcio, outro caiçara do tempo do papai, de um falar contagiante, especulador de fatos e contador de histórias, sobretudo do nosso lugar, pois nasceu na prainha, logo depois da boca-da-barra da Maranduba, bem dizer aos pés do Morro do Cemitério. Na minha infância, ele era mascate, andava negociando por todos os lugares daqui. Andava muito e conhecia muita gente. Sempre foi muito bem acolhido lá em casa. Não sabia o que fazer a mais para nos acolher bem na sua moradia, ali, na rua detrás do “Tubão”. Terminou o seu tempo como corretor de imóveis. Devo muito ao Èlcio pelas boas prosas. A certeza é que todos vamos passando. Somente as memórias poderão permanecer.

quarta-feira, 26 de agosto de 2020

TAMANDUÁ, GALHETAS E FIGUEIRA

Anotações de prosa (Arquivo JRS)


Praias e mais praias (Arquivo JRS)


                Entre meus papeis, um papel especial: as anotações da prosa com o saudoso Aristeu Quintino, da praia da Ponta Aguda, em Ubatuba.O ano? 1982.  Era final de tarde quando eu comecei a escutá-lo sobre as pessoas que moravam na região sul do município na primeira metade do século XX. “Naquele tempo não havia ninguém que era de fora. Todos eram nativos daqui, viviam da pesca e da roça. Na praia das Galhetas moravam: Raimundo Francisco Muniz, João Manoel de Oliveira, Lodônio Barasseca e João Barrasseca (cuja casa era mais para a direção da ponta da Figueira). Cada um na sua casa, mais ou menos perto uma das outras. No morro ficavam as roças de mandioca; nas grotas, onde o lugar era mais molhado, cultivavam os bananais. Eu nasci na Ilha do Tamanduá; nas três praias de lá tinha gente morando: na praia do Sul estava Antônio Correia de Mesquita. Na praia da Taquara-poca ficava a casa do Manoel Correia de Mesquita. Na praia do Fogaça, na parte de dentro, morava o Herondino Mesquita e sua esposa Hermína Quintino dos Santos”.

              Aristeu adorava pescar, contar histórias e cantar. Constantemente narrava as histórias em rimas. De vez em quando pegava seu cavaquinho para tocar músicas da gente (xiba, cana-verde, folia...). Pena que a única gravação que eu tinha dele, emprestei para um colega (Dênis) da Ilhabela que desapareceu. Era um registro inestimável!  
 
             Quando lhe perguntei a respeito dos caminhos, ele explicou: “Onde é hoje a estrada  das Galhetas, era o traçado do caminho antigo, que saía da praia e rumava para o Rio da Prata, Maranduba e Araribá. No meio desse caminho, saindo do Rio da Prata, um outro atravessava a Selinha e descia no Sertão da Caçandoca, no lado de lá do morro.  A gente andava bastante; por esses caminhos todos moravam parentes e amigos, todos caiçaras. Nossa gente. De onde tem aquelas colunas no mato [ruínas das Galhetas], o caminho vinha em direção da costeira e chegava na prainha [Galhetas], na casa do pessoal de lá. Depois subia o morro para descer na Figueira, onde moravam Manoel Raimundo Muniz, Roque Batista e Raimundo Muniz. Eram três casas na praia da Figueira”.

                  Faz diferença gente de memória boa! Valeu, Aristeu!
             

terça-feira, 25 de agosto de 2020

TEMPO DE CULTIVAR COM ALEGRIA









Mestres caiçaras na Barra Seca (ArquivoJRS)


Roda de alegria (Arquivo JRS)



Mestre Neco (Arquivo JRS)


           Certa vez, apreciando o Mestre Neco, numa conversa no Museu Caiçara, pensei sobre o tempo, o espaço e o nosso lugar. “Eu também trabalhei em bananais aqui. No Morro da Pipoca, no pé-da-serra, por um bom período, a japonês Kikuti teve essa ideia de cultivar bananas. Era eu e mais cinco ou seis camaradas naquele fundão de mato. Parece até que foi ontem”. Pensei sobre o tempo e rapidez de tudo olhando as peças dali, de outros tempos. A construção de pau-a-pique, de outros tempos. O piso de tijolo feito por mim em outro tempo também está lá, assim como fogão e o forno de fazer farinha. Tudo aprendido da geração anterior.

O Neco e sua sabedoria de uma geração anterior à minha, que precisou também deixar o nosso lugar e ir trabalhar embarcado, na pescaria profissional. Neco que aprendeu a arte de fazer canoas, remos... de dar conta de roçado. Neco que tanto valoriza o ser festivo, cantador e tocador que o tempo de hoje parece querer sufocar. Neco que desnuda as engrenagens que mastigam o nosso lugar e o nosso ser pouco a pouco. Ele e tantas outras pessoas, essa caiçarada da mesma raiz que eu, a dizer que “os tempos são outros”. Neco que revela nas suas atividades, nas presenças em nossos eventos, que é preciso resistir às forças contrárias ao nosso ser caiçara. Neco, Jorge, Tia Baía, Dona Mocinha, Tio Dico, Altino e tanta gente mais são nossos faróis na cerração que deseja reduzir toda a nossa riqueza ao tempo mecânico, onde apenas o lucro de pouquíssimos importa. Ideologia cruel,  que destrói gente e natureza sem se importar com nada.  Acorda, caiçarada!

Olhando as ferramentas do nosso significativo museu, me recordo do ritmo do trabalho de outros tempos, marcado pelas forças da natureza, pelo calendário das festas, pelos pitirões, pelas chegadas dos cardumes... A nossa vida era ajustada conforme os ponteiros do Sol, da Lua, dos passarinhos se aninhando, dos animais em seus ciclos, das revoadas das içás, das correrias de gambás gordas e de tantas outras referências.  Bem citou o estudioso Peter, da praia da Enseada: “Os tempos sociais e da natureza interagem na construção do espaço geográfico, deixando para nós a difícil tarefa de interpretá-los”. Isso mesmo!

É preciso refletir prestando atenção a cada cantoria do nosso povo. Reparando bem. Nas letras estão partes importantes da nossa vida social (desde as relações com a natureza até os valores que reforçam a cultura caiçara). A grande lição deste conjunto (músicos, compositores, dançadores, fazedores de instrumentos etc.) é: um caminho prazeroso é um bom caminho a ser seguido, capaz de sustentar a nossa identidade surgida ao longo dos séculos. Ela (cantoria) é dinâmica e dá vida! Ela é ferramenta capaz de relegar outras a serem apenas peças de museu! A alegria é uma força incrível, que merece ser cultivada cada vez mais!
               

segunda-feira, 24 de agosto de 2020

OS DELICADOS FIOS DA VIDA

Gaivotas e urubus (Arquivo JRS)

As coisas são assim. O mundo é assim. A natureza é a prova mais evidente que tudo está numa interdependência, como um tecido: se puxar um fio, toda a trama está afetada. Entendemos melhor ao ler a poesia do mano Mingo.


É juntando os fios,
Cada qual com sua função,
Cada fio com sua cor,
Juntos por associação,
Que se constrói uma tapeçaria.
Se houver algum fio rompido,
a obra fica incompleta
e o tecido fica enfraquecido.
Assim é com a vida,
Cujos tecidos são os ecossistemas,
Cujos fios são os seres vivos,
Que convivem em equilíbrio,
Eu vivo, você vive e viva nós,
como acontece nos manguezais
Que só existe na foz
Onde o rio se encontra com o mar,
Onde muitos peixes e outros bichos
Vêm se reproduzir e se alimentar.
Ali a vida tem um equilíbrio tão delicado
Que se um louco cometer o pecado
De poluir, aterrar ou fazer o corte
Das águas, das margens, das plantas,
É uma sentença de morte
Para santos e pecadores,
Para peixes e pescadores.
Mas, por causa do ouro,
Os gananciosos não veem o tesouro
Que é a vida em abundância,
E destroem e matam
Por causa da ganância,
Como aconteceu de sul
Até ao centro de Ubatuba.
Por enquanto só escaparam da morte
os manguezais do norte.
Para eles destruir a Terra passou a ser um jogo,
Mas é um jogo terrível,
Do qual saímos todos perdedores,
Peixes e quelônios,
Caiçaras e loteadores,
Algas e corais...
Quem remendará a tapeçaria?
Quem salvará as plantas e os animais?
Quem deterá a extinção?
Eu, você... quem mais?

domingo, 23 de agosto de 2020

CURIANGO DE SAUDADE

Lua minguante (Arquivo JRS)


                Na madrugada passada, além de escutar alguns galos cantando pelos arredores, no concerto habitual, também identifiquei um curiango, passarinho da noite. Julguei estar próximo, talvez no pé de carambola ou de uvaia. Fazia tempo que eu não escutava a fala dessa ave. Tempos atrás tinha uma coruja que era habitual visitante, mas sumiu, deixou de cantar por aqui.

                Houve tempo (morando em outras casas, em outros lugares, quando não havia iluminação pública), em que ouvir os sons da noite era uma ocupação regular para mim, pois sempre madruguei. Talvez uma herança da primeira infância, quando eu me levantava assim que percebia a movimentação na cozinha, com meu pai preparando o café e a marmita para enfrentar o dia no trabalho. Agora, com ruas iluminadas, cheias de barulhos (carros, motos, discussões...), faltando árvores etc., os sons dos pássaros noturnos são raros, os sapos e grilos também se manifestam apenas esporadicamente.

                No tempo em que morávamos no morro da Fortaleza, na Badeja do tio Custódio, os sons da noite nos seguravam em casa. Tal como os nossos antigos tupinambás, eram raros os barulhos da escuridão que não nos causavam sobressaltos. “Que foi isso, mamãe?”. "É curiabô falando na grota. Fiquem quietos". A gente se encolhia todo de medo. Havia uma coruja que parecia imitar uma criança nova chorando. Escutar o urutau era sinal de mau agouro. Mamãe também era medrosa. A cada canto do urutau, ela repetia: “Urutau, teu pai morreu. Que me importa! Urutau, tua mãe morreu. Que me importa!”.

                Ao me levantar para escrever algo, me fixei em algumas lombadas dos nossos livros ajeitados pelas prateleiras. Notei que cada um dos livros traz uma boa lembrança (de pessoas, de momentos...). De repente, não achei nenhum deles que passasse sem ser notado. Pode ser por isso que é tão difícil se desapegar deles. Desconfio que tenho muitos amigos que também passam por isto: é verdade que há mais lembranças do que livros em nossas estantes, pelas prateleiras de nossas casas. Que bom que você leu até aqui! Engraçado, né? Nem sei como eu parti dos sons da noite e cheguei nas vozes dos nossos livros.

sábado, 22 de agosto de 2020

NÃO É CUSPARADA!

Galhada de rena (Arquivo JRS)


                Eu sempre tive facilidade para guardar nomes, sobretudo de pessoas marcantes. O primeiro Parada encontrei na praia das Sete Fontes, em Ubatuba. Era sobrinho do Velho Jaime; casou-se com a estimada Zilda Peralta, a prima. Até o final da vida todos se referiam a ele como simplesmente Parada do Peralta. Como todos daquele lugar naquele tempo (décadas de 1970/1980), Parada era pescador que parecia suportar todas as adversidades, sempre estava disposto no enfrentamento do mar, ao costurar suas redes e a contar passagens da sua vida. Em dias assim, quando a natureza parece se converter em água e um frio causa preguiça de sair de casa, me recordo daqueles pescadores encharcados, mas nunca deixando de visitar suas redes e mostrando seus pescados frescos como recompensa de cada dia. Mesmo molhados, com frio, eles mostravam corpos curtidos pelo sol. Seus olhares, assim que surgia a aurora, passeavam primeiramente pelo mar, pelas condições que pareciam difíceis ou mais fáceis. Boas lembranças do Parada e de toda a parentalha da Sete Fontes!

                O segundo Parada era um turista que fiz amizade na praia da Lagoinha. Ele passava uma temporada numa casa em estilo modernista, localizada na boca-da-barra, onde até hoje as marés certamente lambem o gramado. Era Guss Parada, um artista nascido na Dinamarca, cujo pai foi um migrante lusitano. Me aproximei dele atraído por uma escultura que estava sendo trabalhada na varanda do imóvel. Como sou intrometido, logo estava junto dele. Parecia ser gente boa. Conversamos algumas vezes porque ele também era bom de prosa. Enquanto permaneceu em terra caiçara, o seu entretenimento era  criar obras de artes a partir de coisas encalhadas, trazidas pelo mar. Ou seja, a sua inspiração estava ali e pelas redondezas. Logo o seu entorno tinha troncos, raízes, conchas... Não demorou nada para alguns caiçaras também contribuírem com o Guss. “Trouxe para o senhor porque achei diferente, bonito. Sei que o senhor vai olhar e ver outra coisa, transformar para ficar mais bonito ainda”. Certamente que, pelo mundo afora, esculturas nascidas ali, no canto da Lagoinha, estão por salões de artes, em casas chiques. Eu tenho como lembrança dele uma pequena peça. Ele mesmo deu o nome: “Galhada de rena”. E não é que parece mesmo!?!
               
                 Quando eu disse ao amigo João Tãozinho que tinha conhecido o Guss Parada, ele reagiu: "Cusparada? Você acha que tem neste mundo gente com nome de cusparada?" Corrigi na hora riscando bem forte no chão G-U-S-S  Parada. "Ah! Então não é cusparada!""

                A esta altura da vida, eu que já tenho a barba toda branca, sei que os dois já se foram. Nem o mar e nem os tocos encalhados na praia lhes interessam agora. Parada Peralta e Guss Parada poderiam ser parentes, pois suas raízes eram lusitanas. Para mim ficaram as memórias de suas labutas, de seus talentos. Creio que suas obras seguem resistindo ao tempo. A pequena galhada está na parede a me recordar. Salve, Parada! Salve, Guss Parada!


quarta-feira, 19 de agosto de 2020

PRÊMIO PELA LUCRATIVIDADE

Paraty artesanato (Arquivo JRS)



                “Abram seus comércios, não se importem com os mortos. O que vale é não deixar a economia parar”. Era frase dos ricos, dos comerciantes, no começo da pandemia. Agora até pobre está repetindo isto. O miserável que fundeia saco de ostras na costeira para o dia seguinte também anda a dizer coisas do gênero.

                É tempo de pandemia, mas pouco importa a vida dos trabalhadores. “Temos um enorme exército de reserva de trabalhadores!”. Os mais endinheirados já sabem que estão fora de perigo, têm vagas intocáveis em bons hospitais, podem se resguardar da massa. E desejam continuar assim, longe do povo! As notícias desses estabelecimentos é que há leitos à vontade. Por isso dizem que “até as escolas podem voltar à normalidade”.

                Há gestores, desconfio eu, que defendem os interesses mesquinhos da elite e de governantes que assinam sem nenhum pudor essa política de morte, porque almejam migalhas a mais em seus proventos. Será que serão recompensados por isso (de apoiarem a necropolítica, de pressionarem colegas que estão no mesmo mar, em embarcações soltando tábuas ainda em água rasa, enquanto os navios da classe dominante nem sentem as grandes ondas, os vagalhões oceânicos)? A verdade é uma: estamos longe de garantias para enfrentar o vírus do momento. Foram as omissões do governante-mor que resultaram nesse número absurdo de mortes. Alguém duvida? Ciência negada em prol do lucro de alguns grupos, de uma minoria privilegiada. Pouco importa as vidas dessa gente, desses pobres. “Danem-se essas famílias esfrangalhadas”, afirmam. “Nós precisamos ganhar dinheiro e curtir a vida!”.

                Tudo o que estamos passando agora, faz-me lembrar de séculos atrás, quando o tráfico de escravos garantia os lucros de uma elite, lançava as bases das nações modernas e do nosso país:

                “A Companhia das Índias, que tinha o monopólio do tráfico na França no começo do século XVIII, oferecia um bônus aos capitães de navios que conseguissem reduzir as taxas de mortalidade. O prêmio era oferecido em escala: seis libras por escravo caso o índice de mortos fosse inferior a 5% sobre o total de embarcados; três se ficasse abaixo de 10%; duas se chegasse até 15%; e uma libra para perdas de no máximo 20%. Isso significa que, mesmo nas viagens em que morresse um quinto da carga, ainda assim o negócio seria lucrativo a ponto de o capitão receber um prêmio pelo sucesso da travessia”. É o que nos conta o historiador Laurentino Gomes.

                Termino com frase atribuído a Che Guevara: “Triste não é amar sem ser amado. Triste é defender o capitalismo sendo do proletariado”.

terça-feira, 18 de agosto de 2020

MODA DAQUI, CANTORIA DALI


    
Olha o bonito no muro! Salve o artista! (Arquivo JRS)
            Acordo cedo; desde a madrugada ouço os galos na vizinhança. Me levanto prestando atenção no quintal da minha casa, “um pedaço da Mata Atlântica”, conforme diz a mana Ana, pois aparecem muitos passarinhos. Nem todos se atrevem a cantar. Regular mesmo só a cantoria de sabiá-galinha (laranjeira). De vez em quando parece um trinca-ferro solitário no alto do ipê, um bonito (gaturamo verdadeiro) na jabuticabeira, um arcaide a brigar com a própria imagem no vidro e outros raros esporádicos visitantes. Rolinhas, sanhaços, beijas-flores, mariquitas e pardais fazem festa o tempo todo! Só que, ultimamente, tenho notado mais cantorias e mais espécies diferentes. Então passei a me perguntar o que pode estar acontecendo. Pensei na rotina de uns cinco meses para cá. Apenas duas coisas podem estar resultando nisso: tenho dado mais atenção ao comedouro deles, e, na varanda da cozinha, um aparelho de som está ligado bem discretamente a cada manhã com as músicas que eu gosto. Desconfio que é o que está estimulando a cantoria deles, a permanência por ali. Até o cachorro tem permanecido por perto, sem latido algum, como se estivesse gostando das melodias. Agora, por exemplo, cantam daqui, uma linda moda de viola (Vida no campo), os saudosos irmãos Pena Branca e Xavantinho:

O galo cantou, é de manhã
A barra do dia dourada vem surgindo
Clareou, a passarada acorda fazendo festa
E a natureza sorrindo

A vida no campo é fruta madura
Amizade é coisa pura, é mel no coração
Gado no curral, cuscuz com leite
Café com queijo, eu gosto de um requeijão
Vou lhe falar
Não troco essa vida por nada desse mundo
Não saio desse lugar

            E por aí vai a moda deles. Vale a pena ouvi-la inteira, apreciando a natureza que nos rodeia. Quando   termina a música, permaneço em silêncio. Estou encantado. A cinco metros, empoleirado num galho da laranjeira, um canário continua na cantoria dele.

domingo, 16 de agosto de 2020

MÊS DE CACHORRO LOUCO


Dona Aládia e uma neta (Arquivo JRS)

                Dona Laurentina, caiçara da praia da Fortaleza, nos criou conforme foi criada. Ao chegar o mês de agosto, ele constantemente nos alertava para evitar os cachorros, sobretudo quando estivessem em ajuntamento, no cio. “Eles ficam com raiva, mordem e podem estar loucos. Passem longe da cachorrada”. A gente, de tanto escutar, ficava atento, sempre cismado com os cães do lugar, mas nunca soubemos de alguém, nas proximidades, que houvesse passado pela situação alarmada nessa época. Naquele tempo não tinha vacinação aos bichos. As poucas disponíveis ao longo do ano eram para as crianças.

                Mamãe dizia que eram os morcegos que deixavam os cachorros loucos, que transmitiam a doença. Onde morávamos, era comum os ataques de morcegos. Eles chupavam o sangue da criação (galinha, pato, porco...), mas também chupavam sangue humano. As casas não eram forradas; eles sempre descobriam brechas para adentrar na madrugada e atacar. Geralmente era no dedão do pé o ponto de sugamento do nosso precioso sangue. Ninguém sentia, pois eles têm uma espécie de anestésico local. Somente no dia seguinte, vendo o sangue seco, a pessoa sabia que tinha sido vítima de morcego. Papai, uma das vítima deles, nos contou como foi. Na nossa casa nunca apareceu desses morcegos. Acho que eles se contentavam com os bichos que criávamos. Dava dó ver o galo com crista ensanguentada. De vez em quando alguém tinha um bicho de estimação morto de tanto ser sugado. Apenas os morcegos que gostavam de frutas se esbaldavam na nossa moradia. O motivo? Era porque havia um canto reservado para os cachos de banana que iam amadurecendo para o nosso uso diário. Eles não eram nossa preocupação porque só iam nas frutas. Dormíamos sem que seus voos, chiados e silvos nos atrapalhassem.

                Muito tempo depois da minha infância, em mês assim, de agosto, me acomodei num banquinho na calçada, com a dona Aládia, do seo Nhô, na Estufa. A mãe dela, gente dos Amorim, era prima da vovó Martinha. Na prosa veio o mesmo cuidado da mamãe: “Você que é muito andejo, vai por aí tudo, não se descuide porque estamos no mês de cachorro louco”. Quando eu falei que não me preocupava mais com isso pelo motivo de nunca ver um caso sequer de alguém atacado pela loucura dos cachorros, ela deu esta informação: “Ah é?!? Peça para a vossa avó contar do tio Jango, do Ingá. Ele morreu no mato, depois de matar o próprio cachorro. Sentiu que a loucura também atacava ele, mas não queria arriscar a vida da família, causar sofrimento. Preferiu ir longe. Foi achado numa grota, com a boca cheia de espuma, já fedendo. Coitado dele”.


               Até hoje, tio Jango foi o único caso (que fiquei sabendo) de loucura transmitida por cachorro. Então, na tradição da saudosa mamãe, da dona Aládia e de tantas outras, recomendo: cuidado com o mês de cachorro louco!

sábado, 15 de agosto de 2020

A ESPERANÇA ESTÁ NA AURORA

Aurora em cerração (Arquivo JRS)

                De vez em quando eu fico pensando na maravilha que é a nossa fala, o quanto é determinante as palavras no nosso ser, aos seres humanos. Imagino, ao longo do tempo de nossa vida na Terra, os grunhidos virando palavras, constituindo linguagens e línguas, dando significado ao estar  juntos, formar famílias, guerrear, sair pelo mundo, estudar, trabalhar etc. Não é pelas palavras que justificamos os nossos comportamentos a cada dia? Tomemos o exemplo da justiça. Não tem como discordar que, para o sucesso da vida em sociedade, é necessário que a justiça prevaleça. E, já entro em sucesso, que lembra coisa boa, algo que deu certo, causando a felicidade. Assim, a vida em sociedade, para ser um sucesso, precisa ser constantemente aperfeiçoada. Neste processo, a justiça é o farol.

                O que é um farol? É uma luz a iluminar uma rota, um caminho. Quem nunca fez a experiência de precisar de uma luz, uma lanterna para poder caminhar na escuridão, entre obstáculos? Um farol é a principal referência ao navegante errante nos vagalhões do mar da vida. Um dia, o saudoso Hilário me contou a aventura em romper o mar na cerração: “Eu e minha amada combinamos de, na madrugada, deixar a casa dela, a praia onde nasceu e se criou. Escolhemos um lugar longe dali, onde faríamos a nossa família. Fizemos isso porque o pai dela não permitiria nunca o nosso casamento. Rolamos a canoa para baixo e embarcamos tendo apenas as roupas do corpo. Só que fomos surpreendidos por uma cerração, onde nada se enxergava. Gastamos o dobro do tempo para alcançar nosso destino porque não se via nada. As sombras que passavam nos enganavam, os sons distantes também não eram verdadeiros. Sorte nossa que eu tenho um nariz muito bom, capaz de sentir cheiros bem de longe. Assim soube que estava chegando na Ponta da Fortaleza, pois ali perto, no Saquinho, havia um chiqueiro de porco da Velha Maria, mãe da Carmelina e do Zacarias. Foi a nossa livrança. Aurora veio, foi acolhida pela minha gente. Dali em diante nenhuma cerração poderia nos atrapalhar. No fim tudo deu certo.  Aí estão nossos filhos e netos para comprovar o nosso sucesso. Era para ser assim”.


            Pode-se pensar tudo? Lógico que pode! Pode-se falar tudo? Não, lógico que não! Por exemplo, não podemos permitir a livre expressão de ideias discriminatórias, de injúrias, de perseguições, de negação de direitos essenciais etc.  Se queremos uma sociedade feliz para todos, palavras que contrariam ou deturpam a justiça não podem se multiplicar livremente. Palavras que espalham ódio menos ainda! Jamais poderia ocupar um poder de fala, um cargo público, um sacerdócio, quem dá destaque a tais discursos de ódio que resultam em infelicidade geral, em ruína na sociedade.



                Agora são tempos difíceis! Remamos numa cerração de palavras que merecem banimento, sobretudo aquelas dirigidas contra as minorias, aos mais pobres e fragilizados da nossa sociedade. Aurora aguardada. Remamos ao compasso da pergunta: Onde está o farol da justiça?

sexta-feira, 14 de agosto de 2020

AINDA ENXERGO FOLHAS BRILHANDO

Grande do Bonete (Arquivo JRS)

Quintal nosso (Arquivo JRS)

         Bonitas imagens estão por todo lado! Geralmente a gente repara mais quando o Sol domina  a paisagem, mas hoje eu quero recordar de folhas brilhantes, molhadas por chuva,  orvalho, serração... Quero lembrar de água, de crianças pulando de barrancos de rios, de caiçaras mergulhando para tirar ostras e outras iguarias que o nosso meio ambiente oferece.


                Em meus caminhos, a água sempre foi fartura, exceto quando passei um tempo em Crateús, no Ceará. Foram dias medonhos, com um grande rio resumido em poças com girinos. O subsolo tinha água salobra, apenas usada para lavar roupas. Olhando das bocas das cacimbas, bem longe se enxergava um brilho. Com uma lata de 18 litros com água, três pessoas tomavam banho. Água potável aos pobres dependia de um sargento do Exército que controlava um chafariz diante do quartel. De vez em quando ele decidia ficar ali apenas meio período. Quem se danava era o povo pobre.  Naqueles momentos eu me lembrava das fragatas da Marinha brasileira, recém-chegadas da Inglaterra, pois cada uma delas possuía um aparelho para dessalinização, mas aquelas comunidades paupérrimas nem sonhavam com tal recurso. Água é vida!

                                Muito ainda continuam afirmando que, após a pandemia, as coisas serão diferentes, com pessoas mais solidárias, querendo mais justiça, sendo menos gananciosas etc. Mas...expressivo mesmo, nessa direção, vejo apenas as distribuições do movimento dos trabalhadores sem-terra (MST). Porém, tenho passado dias ruins, assistindo as investidas daqueles que cobiçam terra somente para especulação imobiliária ou monocultura à base de venenos. Agora estou em comunhão com os assentados do acampamento Quilombo Campo Grande, no sul de Minas Gerais. 450 famílias estão sob pressão e opressão das forças policiais do Estado,  das forças do ódio que se apossaram do governo do Brasil. Quem sustenta tudo isso? Os trabalhadores! Quantos vivem maravilhosamente bem às custas de quem trabalha? Um por cento! Quem paga os altíssimos salários desses que controlam a situação, desses algozes? Nós que trabalhamos!

                Novamente me vêm imagens de tranquilidade, de folhas molhadas, de águas brotando e correndo límpidas.  Neste momento, remexendo na memória, tenho a imagem do saudoso caiçara Dito Coimbra, morando sozinho no lugar do Perequê-mirim chamado de Sertãozinho, onde mora hoje a minha colega Kátia. Na porta da cozinha dele, um água permanente sustentava uma plantação de agrião, couve, alface, tomate... A  cada dia ele juntava alguns produtos na cesta de taquara e saía para negociar com os demais moradores do lugar. Quando passávamos por ali, ele sempre nos oferecia algo para comer e nos abençoava na despedida. Éramos nós vivendo naquele espaço.

                 Mais tarde vi que, fora dali, era tempo de dureza... Tempo de opressão...

                 Gostaria de dizer que isso era nós, mas não consigo. Isso continua sendo nós!

terça-feira, 11 de agosto de 2020

MÃES DA PESCARIA

Mamãe em Santos (Arquivo JRS)


Luzita e Gertrudes (Arquivo JRS)

O poeta do alto do morro do Cambury, Santiago Bernardes, na poesia abaixo, consegue dizer umas particularidades especiais das mulheres caiçaras, principalmente daquelas que viviam e ainda vivem no regime da pesca. Nós teríamos que passar muito tempo buscando as melhores palavras que ele apresenta em instantes de inspiração. Salve a arte que nos permite enfrentar as verdades! Grande Santiago!



Nas madrugadas de vento grande e de grandes ventos, 

as mulheres é que sabiam mais do mar do que os homens, 
menos apenas do que os peixes.


Elas sabiam costurar os caminhos na água para os barcos voltarem. 

Com palavras e silêncios, 
elas sabiam convencer as ondas a parar. 

Sabiam que as águas têm sede de almas às vezes e pelas almas dos 
filhos ofereciam as delas no lugar”. 

(O Livro do Mar – Santiago Bernardes)

domingo, 9 de agosto de 2020

PEDRO, PROFETA DA TERRA SEM MALES

         
Pedro Casaldáliga - 1928-2020 (imagem: metalúrgicos,org,br)

       Pedro Casaldáliga partiu. Porém, deixou o mundo melhor do que encontrou. Fez poesias, músicas...Escreveu lindos e convictos textos...Denunciou as injustiças e comemorou as lindas vitórias dos povos marginalizados e perseguidos. Pedro era catalão de nascimento, mas brasileiro de verdade! Um bispo coerente com aquilo que falava. A ditadura fez de tudo para expulsá-lo, mas ele  já era cidadão brasileiro em 1968.

                Eu conheci Pedro Casaldáliga faz tempo, por ocasião de uma palestra aos estudantes na primeira faculdade onde estudei. Era bispo católico, um dos expoentes da teologia da libertação, uma pedra no sapato de quem queria justificar a opressão aos pobres. Passou a vida sendo ameaçado pelos poderosos, pelos ricos fazendeiros do Brasil. Na ocasião da primeira palestra em que eu tive o prazer de participar, ele ainda estava muito sentido pela morte do padre João Bosco Burnier, um dos seus parceiros de luta e de fé. Os dois estavam juntos no momento do assassinato. Os pistoleiros foram contratados para matar ele, mas se confundiram. Segundo ele, “o padre Burnier era gordo e eu magro. Na certa, eles deduziram quem, pela aparência, era o bispo. Ouvimos os disparos, e logo estava no chão o meu irmão. Nós tínhamos ido até a delegacia para fazer uma denúncia”.

                Pedro Casaldáliga faz parte de uma geração de religiosos católicos que tiveram importantes ações na pastoral popular, na luta em defesa dos mais fracos. Fez parte do selecionado, atuava junto com Fragoso, Dorothy Stang, José Mahon, Clarice, Cláudio Hummes, José Maria Pires, Angélico Bernardino, Paulo Arns, Josimo, Alfredinho Kunz,  Margarida, Erwin, Tomás Balduino etc. Toda essa gente apostou que valia a pena e valia a própria vida viver o amor pela causa da justiça.

                Pedro Casaldáliga e seus parceiros Pedro Tierra e Martín Coplas compuseram o belo conjunto que recebeu o título de Missa da Terra sem males. Confesso que o adquiri assim que foi lançado, pois sabia do  tesouro que estava ali. Vale a pena ouvir tal preciosidade! Segue abaixo,  alguns endereços relacionados ao tema. Certamente tem muitos outros, mas tenta conseguir o original.


         Pedro Casaldáliga, parceiro dos pobres e dos indígenas nos deixou aos noventa e dois anos. Pedro: pai da esperança de nossas lutas! Pedro, parceiro de tantos Pedros, Marias, Josés, Margaridas.... 

      Pedro Casaldáliga, inspirador de tantos pais e mães. Pedro, profeta da Terra sem males. Memória, perdão e compromisso. Sua luta continua!