Canoas na barra - Arquivo Tempos d'antes |
Capa do livro - Arquivo Santiago |
Canoa emborcada – para quem não sabe - é canoa virada, descansando
depois de uma tarefa cumprida pelo povo do mar, das águas. Assim considero que
deve estar se sentindo o estimado Santiago Bernardes, o “Santi”, ao finalizar
mais uma obra literária. A canoa chega ao fim de sua viagem, mas a peleja dos
caiçaras continuará contra os desdobramentos da especulação imobiliária e
enfrentado crises na própria comunidade que se contagia com o fermento da
discórdia, da cobiça, da tentação de copiar o opressor. A CANOA EMBORCADA pode
ser um farol importante nessa navegação.
Desde o começo da leitura eu percebi um lado fantástico entremeado de
fatos históricos, cujo pano de fundo era a construção da BR-101, a Rio-Santos.
Personagens reais se teceram pela história, nomes conhecidos e familiares se
compuseram pela escrita talentosa do Santi. Eu me vi nas linhas vivendo
importantes momentos, tal como admirar “o imensurável mar de estrelas frias e
alheias às pelejas mundanas”, mas me orgulhando de pertencer ao “pequeno mar de
gente” a se recolher “em si mesmo pelas recortadas costas do litoral
atlântico”. Imaginei o autor de CANOA EMBORCADA no seu tranquilo refúgio no
morro do Cambury. Quantas décadas se passaram desde quando, se arranchando na
praia da Barra Seca com sua família, ele foi crescendo nas alegrias e
resistências embalado pela maresia? E assim, conforme escreveu, “um tempo vai
pagando o outro”. Tal como o povo do lugar descrito, eu vivi episódios
parecidos: com jagunços em chão de Ubatuba, fui barrado com armas em punhos nas
praias da Lagoa e do Simão, vi estradas destruírem patrimônios culturais e
naturais. Em várias ocasiões, ao contemplar pescadores na labuta, imaginei-os
em seus retornos “numa remada lenta para sua praia e, ao se aproximar, o escuro
da praia foi sumindo dando lugar a um clarão de luzes de grandes casas e píeres
tomando toda a orla onde havia os ranchos e telhados de sapê e as bananeiras”.
A vida do povo do lugar era assim e agora é desse jeito. É preciso refletir a
partir da memória do povo, talvez desemborcar e se recolher numa canoa. Afinal,
“afastado da terra o homem começa a pensar”, se desapega, conversa em silêncio
com personagens de outros tempos carregados da mística que nos fez brotar da
terra que existe entre a serra e o mar.
Assim como o meu amigo escritor, eu desejo que a gente descomplique a
vida e cultive uma essência genuína conforme costume dos nossos antigos ao
olharem o mundo “por uma janelinha de pau em suas madrugadas de vigília à
espera do retorno das canoas”. De hábitos assim vem a força para ultrapassar as
ondas, as arrebentações “no mar das gentes do mundo, onde os portos vão ficando
distantes uns dos outros, os faróis se apagando, as canoas emborcando, o povo
pelejando, pelejando e perdendo os remos pelo caminho”.
Conforme eu já confidenciei ao Santiago, a Ilha dos Sumidos se torna a
partir dessa sua obra literária uma ilha mítica caiçara, lugar onde muitas
histórias precisam ser lembradas e contadas. O que mais poderíamos acrescentar
e/ou descobrir no “jeito de ser do Antônio Rabequeiro”? O que fazer para
redescobrir, reforçar a mística do povo que se fez entre roçados, pescarias e
festejos? Como nutrir nossos espíritos para evitar que o nosso território não
se torne um inferno aos seus moradores e visitantes?
Enfim, desejo a cada pessoa que, ao ler CANOA EMBORCADA, consiga se
imaginar na proa de uma canoa caiçara “conversando em silêncio com um outro
vulto sentado no banco da popa”, se sentindo como um urutau “de olhos fechados,
mas olhando profundamente o mundo”. Um cordão feito com um dente da tintureira
herdado de meu pai, talvez muito parecido com aquele feito pela avó Manu (que
tanto se assemelha à minha saudosa vó Martinha), me relembra do quanto é
importante juntar nossas memórias caiçaras e nossas leituras para “conseguir
ver o que muitos não veem”. O relato, ouso dizer, pode nos servir de farol
enquanto “navegamos a nossa cota de existência”. Prezado Santiago: CANOA
EMBORCADA cumpriu a sua tarefa! Prova primeira são todas as citações acima que
me auxiliaram neste texto. Gratidão mesmo!
Obrigado imensamente amigo por todo aprendizado durante o percurso da travessia da canoa da história caiçara!
ResponderExcluirNão foi nada demais perante esse seu talento. Continue firme e saudável na paz por justiça, por um mundo melhor.
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