sexta-feira, 29 de julho de 2022

O TESOURO DO POSSIDÔNIO



 

Embarcação - Arquivo JRS

    Seo Possidônio, pescador do Saco do Sombrio, era um grande contador de histórias. Eu o conheci lá mesmo, no Sombrio, quando a Regina foi trabalhar como professora na escola local. Isso já completou 30 anos. Dessa época vem a minha amizade com Vera e Pedro Antônio, outrora professores na Ilha dos Búzios, parte do mesmo arquipélago da Ilhabela.  Para desembarcar lá era feita uma manobra que exigia agilidade e pernas boas: uma estiva de paus roliços se espalhava sobre a costeira, por onde subiam as pessoas, as mercadorias e as canoas para serem guardadas nos ranchos. Assim se repetiam os embarques e desembarques na Serraria,  Búzios e Vitória, outras ilhas vizinhas onde ainda temos os parentes caiçaras. Ou seja, lugares sem praias. Conforme eu comecei, Seo Possidônio, dentre tantas histórias, me contou do naufrágio do navio espanhol Príncipe das Astúrias. 


     "Foi assim, meu filho: eu era criança de tudo quando aquele mundo de navio bateu na laje, ali na Ponta da Pirabura, naquele lugar que sempre foi bom de peixe. Garoupa então, ai, ai, ai... Neste tempo, desde sempre, é em volta da laje que a gente que pesca está se acabando na espada. O menino do Élcio me disse ontem mesmo que eles levaram para o porto [centro da Ilhabela] uma quantia que encheu quinze caixas no mercado. Já pensou?! Então, foi lá que aconteceu o infortúnio. Era começo de março, logo depois do carnaval. Os mais velhos diziam até que foi castigo de Deus por eles terem farreado demais, fazendo coisas que não se deve. Eu hoje penso que pode até ter sido devido à grande festa que falavam de ter acontecido a bordo. Vai saber! De repente o comandante bebeu demais, o timoneiro adormeceu, passou perto da costeira...e...o destino foi a pedra rasgando aquilo tudo, levando a pique quase que imediatamente aquela carga toda, aquela gentalhada. Só sei dizer que muitos corpos foram encalhando por todo quanto era lado. Dizem que até em Ubatuba a correnteza levou defuntos. Nem tinha como enterrar tanta gente. Urubus, guaiás e outros bichos fizeram a festa”. Nessa hora eu intervi na prosa, contando das histórias dos meus antigos a respeito dos corpos encalhados na Bela Vista, entre as praias da Santa Rita e Enseada. “Pois é, meu filho, foi assim. Depois eu cresci, me tornei um bom mergulhador, mas nunca tive equipamento para ir naquela profundidade, ver se alcançava alguma coisa de valor. Você acha que, entre tantas cargas afundadas, não deve haver ainda um monte de coisas que vale a pena uns mergulhos? As notícias falavam de quase quinhentos mortos nessa viagem que partiu da Espanha e seguia para a Argentina. Coitada dessa gente! Agora eu estou velho, mas ainda sinto vontade de mergulhar nas profundidades para vasculhar o que resta de tudo aquilo. Quem sabe eu não encontre um tesouro, né?”. E terminou tudo em uma gostosa gargalhada.

 

Nota histórica: o Príncipe das Astúrias naufragou no dia 5 de março de 1916. Oficialmente tinha capacidade para transportar mil e novecentas pessoas, mais a tripulação. Tudo isto se compõem no Tesouro do Possidônio. Certamente que muita gente já vasculhou os destroços na Ponta da Pirabura. Seo Possidônio faleceu há alguns anos levando o sonho do tesouro.

 








   

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